O AMOR ACABOU, QUERO MEUS PRESENTES DE VOLTA!

20/03/2024

Uma análise jurídica sobre a revogação das doações após o fim de relacionamento afetivo

Introdução

Nem sempre as expectativas criadas em razão de um relacionamento amoroso são correspondidas. Nesse contexto, em que não é possível pegar de volta o amor ofertado, muitos se questionam se os objetos doados para o ex-amor poderiam ser recuperados.

Antes de responder à pergunta é preciso esclarecer que o presente trabalho tem por escopo analisar juridicamente a possibilidade de revogação das doações realizadas nos casos de rompimento amoroso.

A partir da investigação jurídica sobre a (im)possibilidade de exigir a devolução dos presentes em razão do fim do relacionamento, sem adentrar nos aspectos morais e afetivos que envolvem a temática, será possível entender o alcance do instituto, as exceções e seus desdobramentos.

Outrossim, o recorte metodológico proposto restringe-se ao rompimento dos relacionamentos amorosos que não configuram casamento ou união estável, uma vez que a configuração de tais entidades familiares atrai a incidência do regime de bens, o que pode afetar o resultado, apresentando solução jurídica diversa, cuja análise extrapola os objetivos do presente artigo.

Feitas as delimitações necessárias, será possível enfrentar a temática com a utilização da legislação, doutrina e jurisprudência.

 

Do arrependimento das doações

O Código Civil estabelece, como regra, a impossibilidade de se arrepender das doações realizadas, haja vista que apenas excepcionalmente admite a revogação por ingratidão do donatário ou por inexecução do encargo.

Portanto, a pretensão de reaver as doações feitas em razão de término de relacionamento afetivo não costuma prosperar,[i] pois prevalece a irrevogabilidade das doações, ressalvadas as hipóteses de ingratidão do donatário.[ii]

Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele;

II - se cometeu contra ele ofensa física;

III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;

IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.[iii]

Como se observa, em nenhuma hipótese aparece o término de relacionamento afetivo como causa a autorizar a revogação da doação.

Há que se observar, contudo, que com o advento do atual Código Civil alterou-se a taxatividade das hipóteses de ingratidão, como explicam Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, de tal maneira que o novo rol não é mais fechado, aceitando outras hipóteses, de forma excepcional.[iv]

Apresentada essa perspectiva, entende-se que, ainda que o rol não seja taxativo, término de relacionamento não deve ser considerado como forma de ingratidão, ao revés, trata-se de direito potestativo.

Para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, eventual ampliação das hipóteses de ingratidão deve ter como referência a boa-fé objetiva.

O referencial a ser levado em conta para a perfeita compreensão da tipicidade finalística tem de ser a boa-fé objetiva (a eticidade), afinal de contas a prática de uma conduta ingrata afronta contra os deveres anexos e a confiança presentes valorativamente em qualquer contratação (CC, art. 422). Seria um caso de ruptura da boa-fé objetiva pós contratual.[v]

Ademais, é sempre bom reforçar que o apoio financeiro por mera liberalidade e doações em contextos afetivos não caracterizam ilícito civil ou estelionato sentimental,[vi] de tal forma que a insatisfação pelo término de um relacionamento amoroso, por si só, não enseja direito de arrependimento pelas doações realizadas, nem direito à indenização.

Nesse sentido,

A ruptura do relacionamento, qualquer que seja o nome que se dê, não lesa nenhum direito de personalidade, não configura "estelionato afetivo", "amoroso" ou "sentimental", não tem reflexo jurídico e não gera obrigação nem direito a indenização moral.[vii]

Resta, ainda, investigar a situação de ineficácia da doação propter nuptias, que não se confunde com a revogação da doação, mas autoriza a devolução dos presentes dados em contemplação de casamento futuro.

 

Da ineficácia da doação em contemplação de casamento futuro

Solução diversa pode ocorrer em relação aos presentes/doações que forem feitos em razão de casamento futuro.

Isso porque, em seu artigo 546, o legislador civil estabeleceu que a “doação feita em contemplação de casamento futuro com certa e determinada pessoa, quer pelos nubentes entre si, quer por terceiro, não pode ser impugnada por falta de aceitação, e só ficará sem efeito se o casamento não se realizar.”

Trata-se de hipótese em que a doação realizada condicionou-se à casamento futuro, com específica pessoa, por ter sido vinculada à sua ocorrência. De tal sorte que os presentes comprados na lista de casamento, por exemplo, poderão, caso o casamento não se realize, serem pleiteados pelos doadores, haja vista que perdeu-se o efeito da doação pela não implementação da condição suspensiva, qual seja, o casamento.

Situação que costuma aparecer com mais frequência na jurisprudência é o pedido de devolução de anel de noivado. Desde os tempos mais remotos[viii] aos mais atuais, seja no Brasil ou no exterior, a aliança de noivado vez ou outra torna-se objeto de litígio.[ix]

De um modo geral, a aliança de noivado tem um valor expressivo e muitas vezes é uma joia de família, passada de geração em geração. Se, no exemplo, o casamento não ocorre com o donatário, a tradição familiar não se cumpre caso o objeto não seja devolvido. Será que nessa hipótese, se o relacionamento chega ao fim, sem que tenha havido a realização do casamento, seria possível exigir o anel de volta?

Ao que parece, o caso narrado atrai a incidência do mencionado artigo 546 do Código Civil, como pode ser observado em caso semelhante julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

BEM MÓVEL – Reintegração de posse – Anel de noivado – Casamento não realizado – Aplicação do artigo 546 do Código Civil – Doação feita em contemplação a casamento futuro.

Irrelevante para o deslinde da ação a data de aquisição do anel (R$50.000,00), especialmente por ter sido antes das partes se conhecerem, posto que o presente somente foi entregue quando surgiu o desejo de compromisso de casamento. E, a ordem cronológica dos fatos corrobora para a natureza do presente, como símbolo de compromisso entre as partes, que planejavam contrair matrimônio.

E, nestas circunstâncias, aplica-se ao caso o disposto no artigo 546 do Código Civil. Trata-se, portanto de doação sob condição suspensiva, ou seja, o casamento é condição 'sine qua non' para a eficácia da doação. E, no caso, não tendo sido realizado o casamento, não ocorreu a condição suspensiva para a convalidação da doação do anel. Recurso não provido.

(TJSP;  Apelação Cível 1002483-39.2016.8.26.0482; Relator (a): Sá Moreira de Oliveira; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Foro de Presidente Prudente - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/07/2019; Data de Registro: 16/07/2019)

Ainda nessa ordem de ideais, se porventura o doador pleitear a devolução do objeto doado em razão do casamento que não se consumou, e tal objeto estiver perdido, deteriorado ou deixado de existir, será possível a reparação por danos materiais e, a depender da hipótese, será possível até a compensação por danos morais, como no caso de uma joia de família.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - ROMPIMENTO DE NOIVADO - RATEIO DE DESPESAS COMUNS - RESSARCIMENTO DEVIDO PELO EX-NUBENTE BENEFICIADO - ALIANÇA DE NOIVADO - ART. 546 DO CÓDIGO CIVIL - DEVOLUÇÃO DEVIDA AO ADQUIRENTE, SOB PENA DE CONVERSÃO EM PERDAS E DANOS - DANOS MORAIS.

No tocante ao anel de noivado, estando provada a sua entrega em contemplação de casamento futuro e ausente a demonstração de sua devolução quando do rompimento, deverá, por aplicação do art. 546, do Código Civil, ser restituída no prazo de 10 dias, sob pena de a obrigação converter-se em perdas e danos pela metade do valor do recibo correspondente ao par de alianças.

(TJMG -  Apelação Cível  1.0000.23.021959-4/001, Relator(a): Des.(a) Sérgio André da Fonseca Xavier , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/07/2023, publicação da súmula em 05/07/2023)

 

Todavia, cabe esclarecer que se o casamento foi realizado, houve o implemento da condição e, portanto, não há que se falar em ineficácia ou devolução dos bens doados, ainda que ocorra o divórcio.

Ressalta-se que, em qualquer hipótese que se pretenda a devolução de presentes, sob o fundamento da ineficácia de doação propter nuptias, será necessário produzir a prova de que a doação foi feita em razão da realização de casamento futuro, ainda que se trate de uma aliança.

Em relação aos pedidos reconvencionais do réu, para devolução em dinheiro referente aos anéis e do suposto valor emprestado para compra de motocicleta, a Turma consignou que não há evidências de doação sob condição futura, tampouco quanto à celebração de contrato de empréstimo, e que a pretensão quanto à devolução dos bens representaria, em verdade, o arrependimento do requerido pelos presentes ofertados à então noiva. Além disso, destacaram que, instado pela autora para apresentar o meio adequado para a devolução das joias, a fim de evitar contato entre as partes, o reconvinte não se manifestou. Dessa forma, por não reconhecer ato ilícito apto a legitimar a reparação por danos morais nem lastro probatório para o pedido reconvencional, o Colegiado negou provimento aos recursos, para manter íntegra a sentença.

(TJDF - 07104363620228070001, Relator: Des. FABRÍCIO FONTOURA BEZERRA, Sétima Turma Cível, data de julgamento: 7/6/2023, publicado no DJe: 16/6/2023).

Como se observa, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu, em outro caso envolvendo aliança, que os anéis doados para a ex-noiva configuraram doação pura e simples, haja vista que não restou comprovado que as joias estavam vinculados ao casamento futuro dos noivos envolvidos na disputa.

 

Considerações Finais

Enfrentadas as problematizações jurídicas sobre a devolução de presentes após o fim do relacionamento, foi possível compreender que apenas excepcionalmente será possível recuperar os objetos doados.

Para tanto, será necessário demonstrar que houve ingratidão do donatário, hipótese que não se confunde com o término de relacionamento amoroso, como foi analisado.

A ineficácia de doação em contemplação de casamento futuro é hipótese jurídica que autoriza o doador a pedir de volta o objeto doado, quando o casamento não se realizou. No entanto, necessário se faz o enquadramento inequívoco do artigo 546 do Código Civil, para que seja possível, por exemplo, recuperar o anel de noivado.

Muito embora o Direito não possa se esquivar de dar resposta aos litígios que são judicialmente apresentados, fato é que em matéria de relacionamento amoroso muitas vezes a solução não é de competência do judiciário.

De todo modo, em regra não será possível se arrepender de forma eficaz do amor que foi compartilhado, tampouco dos presentes que se deu quando se estava apaixonado.

 

Notas e referências

FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Contratos, Teoria Geral e Contratos em Espécie. Vol. 4 - 7ª Edição, Editora Jus Podivm.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de direito civil. vol. 4, – Contratos em espécie. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

SILVEIRA, Alípio. O compromisso de casamento no direito compromisso de casamento no direito comparado. Rio de Janeiro, Ed. Forense.  v. 50, n. 145, p. 38–46, jan./fev., 1953.

[i] Nada impede que o donatário, por liberalidade, a pedido do doador ou por conta própria, devolva os objetos recebidos a título de doação.

[ii] AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO. ATOS DE INGRATIDÃO.

Para a revogação da doação por ingratidão, exige-se que os atos praticados, além de graves, revistam-se objetivamente dessa característica. Atos tidos, no sentido pessoal comum da parte, como caracterizadores de ingratidão, não se revelam aptos a qualificar-se juridicamente como tais, seja por não serem unilaterais ante a funda dissensão recíproca, seja por não serem dotados da característica de especial gravidade injuriosa, exigida pelos termos expressos do Código Civil, que pressupõem que a ingratidão seja exteriorizada por atos marcadamente graves, artigo 557 do Código Civil de 2002.  No caso dos autos, as instâncias de origem entenderam, com fundamento na prova dos autos, que a conduta das recorridas não poderia ser classificada como "ato de ingratidão" a que se refere a lei como requisito para a revogação da doação. A pretensão recursal voltada à revisão dessa conclusão choca-se frontalmente com a Súmula 07/STJ. (AgInt no AgInt no AREsp n. 1.593.194/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 19/4/2021, DJe de 26/4/2021).

[iii] Art. 563. A revogação por ingratidão não prejudica os direitos adquiridos por terceiros, nem obriga o donatário a restituir os frutos percebidos antes da citação válida; mas sujeita-o a pagar os posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as coisas doadas, a indenizá-la pelo meio termo do seu valor. Código Civil.

[iv] Tal entendimento foi objeto do enunciado 33 do CNJ: “O novo Código Civil estabeleceu um novo sistema para a revogação da doação por ingratidão, pois o rol legal previsto no art. 557 deixou de ser taxativo, admitindo, excepcionalmente, outras hipóteses.” GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de direito civil. vol. 4, – Contratos em espécie. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

[v] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Contratos, Teoria Geral e Contratos em Espécie (Vol. 4) - 7ª Edição, Editora Jus Podivm, p. 797.

[vi] Sobre o tema, “estelionato sentimental”, permita indicar: BERLINI, Luciana. Responsabilidade Civil por Estelionato Sentimental. Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/370997/responsabilidade-civil-por-estelionato-sentimental.

[vii] TJSP; Apelação Cível 1012067-20.2018.8.26.0011; Relator (a): Celso Pimentel; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XI - Pinheiros - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/06/2020; Data de Registro: 25/06/2020.

[viii] No Direito Romano, por exemplo, quando dissolvidos amigavelmente o noivado, os esponsais devolviam o que haviam recebido um do outro em razão do casamento que não se realizou. Se o rompimento, no entanto fosse culposo, a parte inocente poderia reter o que ganhou. (MACKELDEY, “Manual do Direito Romano”, parágrafos 540 e 542 apud SILVEIRA, Alípio. O compromisso de casamento no direito comparado. Rio de Janeiro, Ed. Forense.  v. 50, n. 145, p. 38–46, jan./fev., 1953.

[ix] Alípio Silveira apresenta dois casos norte-americanos que ilustram disputas antigas sobre anel de noivado: “No caso Cohen v. Seller, decidiu-se que o noivo não tinha direito à restituição do anel de noivado, uma vez que rompera o noivado sem justo motivo (“Harvard Law Review”, ano de 1926, vol. 40, pág. 135). No caso Yubas v. Vitaskis (“University of Pennsylvania Law Review”, ano de 1929, vol. 78, página 272), decidiu-se que a noiva de menor idade não era obrigada a devolver o anel de noivado, ainda que tivesse havido a condição expressa de que o devolveria se ela rompesse o compromisso.” SILVEIRA, Alípio. O compromisso de casamento no direito comparado. Rio de Janeiro, Ed. Forense.  v. 50, n. 145, p. 38–46, jan./fev., 1953.

 

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