O amante, o amado, o amor

29/04/2020

– O amor, suas dores, seus dissabores... Os encantamentos os sonhos, as desilusões... Desconhecer o amor é uma desventura? Não seria um bem?

– Poupar-se do amor? O amor... O amor é uma visita não anunciada.

– Mas esperada... E todo mundo quer que a visita se estenda.

– Eis a questão: é que o amor cativa. Para se decidir sobre a permanência do amor, tem-se que saber acerca de se viver aprisionado, ainda que a prisão seja amorosa.

– E as pessoas se querem aprisionadas? Ou aprisionar? Não se fazem essas contas. Vamos e vimos todos de desejos soltos, lépidos e faceiros.

– Visitamos e recebemos de contas feitas. Não sabemos, talvez, mas temos bem postas as vontades. É com meiguice que insinuamos nossos quereres; com doce autoridade. Não te enganes, amor é relação de poder. Amantes renunciam a poder; mais: submetem-se a poder.

– Mas há gosto e conforto nessa prisão amorosa, não?

– Não decidimos por haver conforto ou tormento. A perda da liberdade compõe a relação amorosa. Não é escolha, é a condição para que a visita não apenas bata na porta, mas entre e permaneça.

– Mas... Retomo: o amor é uma aventura tão esperada, até ansiosamente procurada. Há, assim, tanto anseio de submissão?

– Submissão é uma palavra depreciada. Submeter-se por amor não é necessariamente desagradável. Há gozo nisso.

– Mas, há escolha?  A dependência amorosa é uma opção, ou uma necessidade?

– Bem, recebo a visita do amor; posso hostilizá-lo, de modo que ele se vá embora. É possível escolher o não amor. Contudo, se amo, amo com os encargos do amor... Controle e submissão são apanágios da relação amorosa.

– Controle sobre o ser que ama. Mas, damos conta da vontade? Quero dizer: há decisão sobre o amor, sobre o estar amando?

– Ninguém vive o amor sem dar-se a ser amado. Talante teu: permitir ou não que o amor te ame. Aliás, amar é fácil; olha o mandamento cristão: ama o próximo como a ti mesmo. Narcisismo! Difícil é ser amado... Difícil é amar o outro como o outro é. O outro não sou eu; amá-lo como a mim mesmo é narcísico.

– Sempre pensei que eu ser amado dependesse do desejo de outro... Se o outro deseja o próprio desejo... Se eu desejo que o outro deseje o meu desejo... Isso é confronto: um querendo o reconhecimento do desejo do outro; algum desejo vai ser destruído. O vencido se tomará de rancor.

– Coisa intricada... Sobre amar, não há controle. Acontece. Consuma-se por si mesmo. Mas é possível controlar o fazer-se amar. Olha, amo o que vejo no outro, não o outro mesmo.

– Sim... Há muito de imaginação.

– Agora, quando eu me relaciono com o outro, já não me relaciono mais comigo... Quero dizer: com a imagem que inventei do outro, que isso, afinal, sou eu mesmo. Quando acontece a relação real, o outro está presente com a sua realidade.

– Se entendi... O outro que eu amo, pois, sou eu mesmo? O outro desenhado por mim... O amor é sempre narcísico?

– O amar, sim. Quando tu amas, sempre projetas a ti mesmo. Sempre amará a sua fantasia do que o outro é. Mas se te fazes amar, a presença do outro se impõe. Amar é mais fácil, é uma coisa tua contigo, ainda que depois caia. Fazer-se amar envolve o outro, é o querer dele; perde-se o controle.

– Então... Há a imaginação do amante... É arbitrária e deseja constituir o amado. E existe o amado, que não tem compromisso com a imagem que lhe atribui o amante. Que resta disso?  A relação amorosa semelha uma terceira pessoa interveniente, mas descompromissada com os que se amam?

– Bem colocado. Penso que sim. O amor é um metido que às vezes agrada, mas às vezes decepciona os envolvidos na relação amorosa. Intruso... É uma visita que chega simpática, mas tende ao inconveniente.

– Falando em poder... Creio que muitos amantes passam do limite de imaginar e se apaixonar pela própria imaginação. Há amante que ama com tal arbitrariedade que quer formatar o amado, submetê-lo à forma imaginada.

– Olha, as pessoas querem amar, não querem ser amadas. Amar é mesmo arbitrário. Inventa-se alguém para amar; ama-se a invenção. Depois depara-se com alguém de fato, que nunca corresponde ao imaginado.

– O amor, pois, declara reciprocidade, mas a dispensa... A reciprocidade, em verdade, é impraticável. Assim... Não há reciprocidade porque cada qual está amando não o outro, mas o que gostaria e até exigiria que o outro fosse...

– Você pode passar a vida inteira só amando. Difícil é ser alguém capaz de se fazer amar.

– O amar parece incondicional... Só que não. É engano: amo minha imaginação, não o outro real. Tudo parece bem... Aí topo com a realidade.

– O amar é incondicional, porque, de fato, amo a mim mesmo. Agora, o ser amado não é incondicional. O amado é um dado da realidade. Para aceitar ser amada, a pessoa real se impõe, comina condições.

– Isso não faz o amor ser improvável?

– Talvez o amor seja mesmo improvável, ainda que continuamente o busquemos. Quem sabe por isso se o busque tanto! Haverá sempre esse desencontro: o amar é incondicional, o amado inflige exigências.

– Ainda pensando... O amor seria natureza? Ou seria uma moldura social que enquadra amante e amado? Ou o amor é a relação amorosa?

– Retornamos: desconhecer o amor é uma desventura, talvez a mais desgraçada. Não se fazer amar já é perturbador. Agora... Imagina... Não conseguir sequer amar... A condição humana – que não é natureza, pois contém cultura – determina a demanda amorosa.

– Mas... Afinal, isso de amar a imagem do outro, ou o outro...

– Eu amo a imagem que projeto do outro, mas me deparo com o outro real e com as condições que ele impõe para aceitar o meu amor. Decepção... O outro não cumprirá meus devaneios... O amor não se pode realizar. A relação amorosa não existe senão como uma estranha ao amante e ao amado.

– Então... O amor são três...

– Entre dois acontece o amor de um mais um que não somam dois; a relação amorosa é esses dois mais um; o mais um é o feitio que o amor toma entre esses dois, é a coisa metida, com suas próprias vontades, entre o amante e amado. É o amor possível, ou o possível do amor, já não sei eu.

 

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