O AGENTE PÚBLICO E OS CRIMES DE DISPENSAR/INEXIGIR E FRUSTRAR/FRAUDAR O PROCESSO LICITATÓRIO      

24/02/2022

O presente artigo visa abordar sobre a necessidade de o autor da denúncia individualizar a conduta do agente, devendo, ainda, apresentar os elementos mínimos que comprovam a participação do denunciado no evento criminoso.

De mais a mais, nos crimes licitatórios é indispensável a comprovação da conduta dolosa do agente público ou do terceiro envolvido, tendo em vista que os crimes tipificados artigos 337-E e 337-F do Código Penal Brasileiro, incluídos pela Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, não são punidos a título culposo.

Feitas essas considerações, será feito um rápido estudo sobre o agente público, a individualização da conduta e a justa causa na ação penal e, posteriormente, será abordado sobre os crimes tipificados artigos 337-E e 337-F do Código Penal Brasileiro a necessidade de comprovação do dolo do acusado.

 

1. A INDIVIDUALIZAÇÃO DA CONDUTA E A JUSTA CAUSA NA AÇÃO PENAL

De início, vale registrar que o artigo 41 do Código de Processo Penal estabelece que “a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas”.

Destarte, a denúncia acusatória deve expor de forma pormenorizada a conduta do acusado, sendo este um dos requisitos necessários para que a ação penal tenha desenvolvimento válido e regular, tendo em vista que, na ausência destes requisitos, faltará justa causa necessária para o exercício da ação de natureza penal condenatória.

O processualista Afrânio Silva Jardim faz a seguinte ponderação acerca da justa causa na ação penal, eis os comentários do renomado processualista:

justa causa, aqui, quer dizer um lastro probatório mínimo que dê suporte aos fatos narrados na peça inicial de acusação. Esse suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova da antijuridicidade e culpabilidade. Somente diante de todo este conjunto probatório é que, a nosso ver, se coloca o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal.[1]

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC nº 461.468/SP, tendo como relatora a Ministra Laurita Vaz, reafirmou seu entendimento de que “A denúncia deve, ainda, apontar elementos, mínimos que sejam, capazes de respaldar o início da persecução criminal, sob pena de subversão do dever estatal em inaceitável arbítrio. Faltando o requisito indiciário do fato alegadamente criminoso, falta justa causa para a ação penal”[2], tendo em vista que não basta a simples afirmação de ter havido uma conduta criminosa para deflagração da ação penal.

Nas palavras de Gustavo Henrique Badaró[3], a justa causa é uma condição da ação, exigindo-se suporte probatório mínimo que se relaciona com os indícios de autoria, materialidade de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade. Na inexistência desses elementos não é possível o oferecimento da denúncia.

O Processualista Afrânio Silva Jardim, citado por Rogério Greco em seu Curso de Direito Penal[4], entende que a justa causa é o “suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova da antijuridicidade. Somente diante de todo este conjunto probatório é que, a nosso ver, se coloca o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal”.

Segundo Maria Thereza Rocha de Assis Moura[5], para que alguém possa ser submetido a julgamento deve existir a justa causa para a acusação, sob pena de este se transformar em instrumento de coação ilegal contra a liberdade jurídica do acusado, passível de ser mediada por meio de habeas corpus.

Assim, a denúncia formulada pelo Ministério Público deve descrever minuciosamente a real participação do requerido no evento criminoso. Segundo Vicente Greco Filho[6] “o importante na acusação e a descrição da conduta, mais do que o enquadramento legal”, por conseguinte, não devem ser aceitas descrições genéricas, até porque a descrição genérica acerca da suposta participação do acusado inviabiliza o efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa.

Nesse sentido, posicionou-se o Superior Tribunal de Justiça no RHC nº 36.562/SP, de relatoria Ministra Maria Thereza de Assis Moura:

[...] 3. De outra parte, o pretendido trancamento, por falta de justa causa, que depende da certeza da inexistência do elemento subjetivo e da total ausência de prejuízo, não está demonstrado sem maiores digressões, necessitando de revolvimento fático-probatório, não condizente a via eleita, mandamental por excelência.

4. Recurso parcialmente provido, apenas para anular a denúncia por inépcia, ressalvando a possibilidade de uma nova ser apresentada, desde que, dentro dos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, seja demonstrado o dolo específico e o efetivo prejuízo aos cofres públicos (RHC 36.562/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 27/11/2014).

Na mesma trilha, foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do HC nº 315.494/GO, de relatoria do Ministro Felix Fischer:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. INEXIGIBILIDADE INDEVIDA DE LICITAÇÃO.

INÉPCIA DA DENÚNCIA. OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE DESCRIÇÃO DO DOLO ESPECÍFICO CONSISTENTE NO PREJUÍZO AO ERÁRIO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICO PROBATÓRIA INVIÁVEL NA VIA ELEITA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

I - A Primeira Turma do col. Pretório Excelso firmou orientação no sentido de não admitir a impetração de habeas corpus substitutivo ante a previsão legal de cabimento de recurso ordinário (v.g.: HC 109.956/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 11/9/2012; RHC 121.399/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 1º/8/2014 e RHC 117.268/SP; Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 13/5/2014). As Turmas que integram a Terceira Seção desta Corte alinharam-se a esta dicção, e, desse modo, também passaram a repudiar a utilização desmedida do writ substitutivo em detrimento do recurso adequado (v.g.: HC 284.176/RJ, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 2/9/2014; HC 297.931/MG, Quinta Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe de 28/8/2014; HC 293.528/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 4/9/2014 e HC 253.802/MG, Sexta Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 4/6/2014).

II - Portanto, não se admite mais, perfilhando esse entendimento, a utilização de habeas corpus substitutivo quando cabível o recurso próprio, situação que implica o não-conhecimento da impetração.

Contudo, no caso de se verificar configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, recomenda a jurisprudência a concessão da ordem de ofício.

III - Os pacientes foram denunciados, respectivamente, pela suposta prática das conduta tipificadas no art. 89 e parágrafo único, da Lei n. 8.666/93 e pretendem o trancamento da ação penal.

IV - A exordial acusatória não atendeu plenamente os requisitos do art. 41, do Código de Processo Penal, notadamente no que se refere à exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, pois não denota o prejuízo econômico decorrente da inexigibilidade da licitação, faltando, nos termos da jurisprudência que atualmente predomina, ressalvado o entendimento do relator, a descrição do especial fim de agir do art. 89, da Lei n. 8.666/93, qual seja, o intuito deliberado de causar prejuízo ao erário, se revelando, portanto, inepta (Precedentes).

V - A jurisprudência do excelso Supremo Tribunal Federal, bem como desta eg. Corte, há muito já se firmaram no sentido de que o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito (Precedentes).

VI - Contudo, ante a aparência de prejuízo ao erário, não descrita na denúncia, como já se reconheceu, prematuro se revela o trancamento da ação penal, dada a necessidade de revolvimento de matéria fático-probatória, inviável nesta via (Precedente).

Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para anular a ação penal n. 0024253-72.2014.4.01.3500, em trâmite perante a 5ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado de Goiás, desde o oferecimento da denúncia, sem prejuízo da apresentação de nova exordial acusatória estribada nos termos do art. 41, do Código de Processo Penal, e da jurisprudência predominante acerca da exigência do especial fim de agir para o crime do art. 89, da Lei n. 8.666/93.

(HC 315.494/GO, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 23/06/2015, DJe 29/06/2015).

 

Como é de conhecimento de todos, o Estado Democrático de Direito resguarda o demandado de se defender de imputações certas e determinadas, sem resquícios de dúvidas, com fulcro ainda nos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa (inciso LV do art. 5º da Constituição da República de 1988).

A ação penal não pode ser recebida quando a denúncia constar imputações evasivas, inexistência de suporte probatório mínimo acerca dos indícios da autoria, bem como em caso de ausência de prova acerca da conduta típica perpetrada pelo agente público ou pelo particular.

Precioso destacar que uma acusação imprecisa, genérica e/ou vazia, induz a erros e, consequentemente, em danos processuais e materiais irreparáveis.

Lado outro, a descrição pormenorizada ou, no mínimo, razoável dos fatos e a indicação jurídica precisa e fundamentada dos dispositivos supostamente violados são dados relevantes e indispensáveis para o devido processo legal, pois definem contornos jurídicos da petição inicial e pauta o trabalho do requerido, principalmente de sua defesa técnica.

Vale registrar que, na relação processual, o representante do Ministério Público deve agir com lealdade e boa-fé[7] processual, devendo cooperar para que se obtenha, em tempo razoável, decisão justa e efetiva[8], até porque o Órgão Ministerial não figura nas ações judiciais apenas na qualidade de parte, acima de tudo ele é fiscal da ordem jurídica, conforme estabelecido no Texto Constitucional de 1988. Assim, o representante do Parquet deve agir de forma responsável e coerente, não podendo distorcer os fatos ou alterá-los, sob pena de configurar litigância de má-fé, nos termos do artigo 80 do CPC de 2015.

Na prática, são ajuizadas ações penais com enquadramento genérico, sem suporte probatório mínimo acerca da prática do crime. Todavia, o autor da ação não é penalizado por ajuizar ações temerárias contra o agente, o que não pode ser admitido, vez que a denúncia deve ser medida excepcionalíssima, podendo ser manejada somente quando existirem elementos mínimos acerca da prática do ato ilícito.

Cabe consignar que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme previsto no artigo 127 da Constituição da República de 1988.

O Ministério Público na ação penal não atua simplesmente como um mero autor, acima de tudo o órgão ministerial é fiscal da ordem jurídica, consequentemente, deve apresentar a denúncia apenas quando existirem elementos mínimos que comprovam a prática do crime. Portanto, aquele que realizar denúncia sem lastro probatório deve ser severamente penalizado.

Dessa forma, o Ministério Público deve apresentar na denúncia os elementos de convicção que justificam o recebimento da ação penal, sendo, portanto, necessária a existência de suporte probatório mínimo acerca da consciência e da intenção do agente em praticar um dos crimes tipificados artigos 337-E e 337-F do Código Penal Brasileiro.

Nesta trilha, na vigência dos crimes tipificados na Lei nº 8.666/19933, decidiu o Superior Tribunal de Justiça ao RHC nº 74.812/MA:

O crime previsto no artigo 96, I, da Lei n. 8.666/1993, pune a conduta de fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente: I - elevando arbitrariamente os preços. A conduta de fraudar consiste no ato de iludir, induzir, manter em erro ou enganar, exigindo-se, na denúncia, que seja descrita a conduta do agente que tenha, de qualquer modo, concorrido para a prática de tais atos, colaborando para o efetivo prejuízo aos cofres públicos com a  elevação  arbitrária  dos  preços. 7. Para além da aptidão formal da denúncia, devem estar igualmente presentes as condições da ação, pressupostos processuais e justa causa para o prosseguimento da ação penal, ou seja, que estejam presentes indícios probatórios mínimos  quanto à  autoria  e  materialidade delitiva  em  compatibilidade  com a imputação constante da exordial acusatória,  o  que  não  se  verificou  quanto ao crime previsto no artigo 96, I, da Lei n. 8.666/93.[9]

Em toda e qualquer ação penal, inclusive nas ações penais que versem sobre crimes licitatórios, devem estar presentes as condições da ação, os pressupostos processuais e a justa causa para o prosseguimento da ação penal, ou seja, a peça acusatória deve ser instruída com elementos mínimos quanto à autoria e materialidade delitiva. Do contrário, faltará à ação penal o pressuposto “justa causa”, condição indispensável para regular o processamento da ação, tendo em vista que a justa causa é a condição mínima estabelecida na ordem jurídica vigente para que não ocorram acusações levianas, temerárias, desprovidas de elemento probatório mínimo, movidas por interesses pessoais e não por interesses jurídicos.

Para o agente público de bem, o simples fato de já figurar no polo passivo da ação penal é suficiente para causar danos de ordem psíquica, vez que o agente público honesto ou o terceiro já se sente penalizado pelo fato de responder por um ilícito que não cometeu. Portanto, faz-se necessário que o autor da ação apresente elementos mínimos, o que inclui o pressuposto justa causa, que comprovem que o agente público praticou o ato ilícito.

Segundo Gustavo Henrique Badaró[10] é certo que, do ponto de vista moral, social e mesmo psicológico, o simples fato de estar sendo processado já é um pesadíssimo fardo a ser carregado pelo acusado. Com isso, o Ministério Público somente pode apresentar a denúncia quando existir prova concreta de que o agente praticou ato ilícito.

Por fim, vale dizer que é temerário admitir-se a formulação de denúncia contra alguém com base tão somente em indícios ou suposições sobre o cometimento de determinado ilícito, até porque a propositura de ação penal tão somente com base em indícios afronta ao princípio processual do onus probandi (art. 156 CPP), bem como o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CRB/1988).

 

2. OS CRIMES DOS ARTIGOS 337-E E 337-F DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO E A NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DO DOLO

Conforme será visto, neste estudo, os crimes dos artigos 337-E e 337-F do Código Penal Brasileiro, incluídos pela Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, não são punidos a título culposo, ou seja, não há a possibilidade da consumação dos crimes por negligencia, imprudência ou imperícia, bem como por inobservância das regras legais sem a intenção de fazê-la, portanto, sempre deve ser comprovado o elemento volitivo que é dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de praticar o ilícito penal.

Não há dúvida que a intensão do legislador foi punir com maior rigor àquele que exerce uma função de destaque e de controle sobre o processo licitatório, no caso o servidor que ocupar cargo em comissão ou de função de confiança em órgão da Administração direta ou indireta.

 

2.1. O Crime tipificado no artigo 337-E do Código Penal Brasileiro

O artigo 337-E do Código Penal Brasileiro estabelece que constitui crime “Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”, ou seja, constitui crime dispensar ou inexigir a licitação fora das hipóteses legais.

Na vigência do artigo 89 da Lei nº 8.666/1993, os Tribunais Pátrios vinham decidido que para a configuração do crime do dispositivo então vigente, o órgão acusador deveria comprovar que o agente agiu com dolo, ou seja, deve existir a intenção do agente em lesionar os cofres públicos para a configuração do crime. Eis alguns precedentes neste sentido:

EMENTA Ação Penal. Ex-prefeito municipal que, atualmente, é deputado federal. Dispensa irregular de licitação (art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93). Dolo. Ausência. Atipicidade. Ação penal improcedente.

1. A questão submetida ao presente julgamento diz respeito à existência de substrato probatório mínimo que autorizasse a condenação do réu na condição de prefeito municipal, por haver dispensado indevidamente o procedimento licitatório para a contratação de serviços de consultoria em favor da Prefeitura Municipal do Recife/PE.

2. Não restou demonstrada a vontade livre e conscientemente dirigida por parte do réu de superar a necessidade de realização da licitação. Pressupõe o tipo, além do necessário dolo simples (vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.

3. A incidência da norma que se extrai do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93 depende da presença de um claro elemento subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, pois é assim que se garante a necessária distinção entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que revelam o cometimento de ilícitos penais. No caso, o órgão ministerial público não se desincumbiu do seu dever processual de demonstrar, minimamente, que tenha havido vontade livre e consciente do agente de lesar o Erário. Ausência de demonstração do dolo específico do delito, com reconhecimento de atipicidade da conduta dos agentes denunciados, já reconhecida pela Suprema Corte (Inq. nº 2.646/RN, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe de 7/5/10).

4. Por outro lado, o que a norma extraída do texto legal exige para a dispensa do procedimento de licitação é que a contratação seja de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, desde que detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos. Há no caso concreto requisitos suficientes para o seu enquadramento em situação na qual não incide o dever de licitar, ou seja, de dispensa de licitação. Ilegalidade inexistente. Fato atípico. 5. Acusação improcedente. 6. Ação penal julgada improcedente. (AP 559, Relator(a):  Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 26/08/2014, Acórdão Eletrônico DJe-214 DIVULG 30-10-2014 PUBLIC 31-10-2014)

DISPENSA DE LICITAÇÃO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO E DANO AO ERÁRIO.

A Corte Especial, por maioria, entendeu que o crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 exige dolo específico e efetivo dano ao erário. No caso concreto a prefeitura fracionou a contratação de serviços referentes à festa de carnaval na cidade, de forma que em cada um dos contratos realizados fosse dispensável a licitação. O Ministério Público não demonstrou a intenção da prefeita de violar as regras de licitação, tampouco foi constatado prejuízo à Fazenda Pública, motivos pelos quais a denúncia foi julgada improcedente. APn 480-MG, Rel. originária Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. para acórdão Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 29/3/2012 - STJ.

HABEAS CORPUS. CRIME DE DISPENSA DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI. ART. 89 DA LEI 8.666/93. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO DOLO ESPECÍFICO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA.

1. Não trouxe o Parquet estadual elementos capazes de sustentarem a configuração do prejuízo ao erário, tampouco da demonstração do elemento subjetivo especial na conduta do ora paciente na prática do crime previsto no art. 89, caput, da Lei 8.666/1993.

2. A Corte Especial deste Tribunal Superior decidiu que seria imprescindível a presença do dolo específico de causar dano ao erário e a demonstração do efetivo prejuízo para a tipificação do crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/1993. Nesse sentido: (Apn 480/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/ acórdão Ministro CESAR ASFOR ROCHA, Corte Especial, DJe 15/6/2012).

3. Não se pode simplesmente afirmar que o tal ou qual indivíduo praticou este ou aquele ato previsto objetivamente em lei e por isso merece ser processado criminalmente, sem ao menos indicar o que deixou evidente o dolo de sua ação, nos delitos dolosos, ou a sua negligência, imprudência ou imperícia, nas hipóteses de crimes culposos (AgRg no AREsp 1259376/PB, Relator Ministro ROGERIO SCHIETTI, SEXTA TURMA, DJe 21/11/2018).

4. Habeas corpus concedido para reconhecer a inépcia da denúncia, diante da ausência de demonstração do elemento subjetivo específico de dano ao erário e seu efetivo prejuízo, e determinar o trancamento da Ação Penal 0001104-86.2009.8.26.0624.

(STJ - HC 480.533/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 02/04/2019, DJe 10/04/2019)

 

Na vigência do artigo 337-E do Código Penal mantiveram o mesmo entendimento, vejamos:

EMENTA: PROCESSO DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA - CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - CONTRATAÇÃO DIRETA DE SERVIÇOS DE ADVOCACIA - DENÚNCIA QUE NÃO NARRA A OCORRÊNCIA DE PREJUÍZO - RECEBIMENTO DA DENÚNCIA - IMPOSSIBILIDADE.

Na esteira do entendimento sedimentado no âmbito dos tribunais superiores, o crime previsto no artigo 89, caput, da Lei 8.666/93 (atual 337-E do Código Penal), não se exaure apenas com a contratação direta fora das hipóteses previstas em lei, sendo indispensável a presença de dolo específico do agente público de causar dano à Administração Pública, bem como efetivo prejuízo ao erário. Não se mostra apta a ser recebida a denúncia que não descreve o elemento subjetivo específico do crime de contratação direta ilegal e não menciona a ocorrência de dano aos cofres públicos decorrentes da dispensa de licitação.  (TJMG - Proc. Investigatório MP  1.0000.20.599843-8/000, Relator(a): Des.(a) Maria Luíza de Marilac , 3ª Câmara Criminal, julgamento em 28/09/2021, publicação da súmula em 08/10/2021).

Na mesma trilha são os ensinamentos do doutrinador Cezar Roberto Bitencourt ao afirmar que é necessária a comprovação do dolo específico para a configuração da conduta penal descrita no artigo 89 da Lei de Licitações, hoje revogado:

O tipo subjetivo é constituído de um elemento geral – dolo -, que, por vezes, é acompanhado de elementos especiais – intenções e tendências -, que são elementos acidentais, conhecidos como elementos subjetivos especiais do injusto ou do tipo penal. Neste tipo, antecipando, não há previsão da necessidade de qualquer elemento subjetivo especial, como demonstraremos adiante. [...]. O elemento subjetivo das condutas descritas neste art. 89 da Lei de Licitações é o dolo, constituído pela consciência e a vontade de realização das condutas descritas, quais sejam, dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou a inexigibilidade.[11]

Do mesmo modo posicionou-se o Ministro Felix Fischer do Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus nº 315.494/GO, de 2015:

[...]. Com efeito, a simples leitura do caput do art. 89 da Lei nº 8.666/93 não possibilita qualquer conclusão no sentido de que para a configuração do tipo penal ali previsto exige-se qualquer elemento de caráter subjetivo diverso do dolo, entendido como a consciência e a vontade de realização dos elementos objetivos do tipo penal. Dito em outras palavras, não há qualquer motivo para se concluir que o tipo em foco exige um ânimo, uma tendência, uma finalidade dotada de especificidade própria, e isso, é importante destacar, não decorre do simples fato de a redação do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93, ao contrário do que se passa apenas a título exemplificativo, com a do art. 90 da Lei nº 8.666/93, não contemplar qualquer expressão como "com o fim de", "com o intuito de", "a fim de", etc. Aqui o desvalor da ação se esgota no dolo, é dizer, a finalidade, a razão que moveu o agente ao dispensar ou inexigir a licitação fora das hipóteses previstas em lei é de análise desnecessária [...].[12]

Para o administrativista Marçal Justen Filho, a ausência de observância das formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade da licitação somente é punível quando acarretar contratação indevida e retratar o intento reprovável do agente (visando produzir o resultado danoso). Se os pressupostos da contratação direta estavam presentes mas o agente deixou de atender à formalidade legal a conduta é penalmente irrelevante[13], vez que, para a configuração do crime de dispensar ou inexigir licitação é necessário comprovar que o agente agiu dolosamente visando produzir um resultado danoso ao erário.

O agente público e o terceiro podem ser punidos quando simularem os requisitos para a contratação direta e, com isso, realizar o contrato administrativo por inexigibilidade ou por dispensa de licitação, tendo em vista que a contratação será considerada fraudulenta e contrária aos interesses da Administração Pública.

Pode acontecer que somente o agente público responda pelo ilícito, pois o particular não tomou conhecimento ou cometeu qualquer ato para o aperfeiçoamento do evento criminoso, ou seja, inexistiu a vontade do contratado contribuir para evento criminoso. Portanto, mesmo que o contratado tenha se beneficiado com a contratação fraudulenta, não pode ser responsabilizado, pois não estava em conluio com o agente público na empreitada criminosa. Nesse sentido, posicionou-se o doutrinador Guilherme de Souza Nucci:

Esta é a razão pela qual, no parágrafo único desde artigo, inseriu-se que, quanto ao contratado (não servidor), deve-se buscar, além do dolo, a específica vontade de se beneficiar da dispensa ou inexigibilidade da licitação, tendo tomado parte na concretização da ilegalidade. É lógico que o particular, ao fornecer bens ou serviços à Administração, sem ter tomado parte na ilegalidade cometida pelo servidor, que agiu por interesses escusos quaisquer, ainda que tenha lucro, não pode ser responsabilizado criminalmente (...). Assim, no caso o servidor dispensa a licitação, mas o particular não tome parte em qualquer ato ilegal, que lhe diga respeito, ainda que se beneficie da contratação indevida, é incabível a punição.[14]

Destarte, o contratado não pode ser punido quando não restar comprovada sua participação na contratação indevida, até porque, por força da prerrogativa de legitimidade e veracidade dos atos administrativos, presume-se que todos os atos administrativos são tidos como legais até que haja prova em contrário. Portanto, não assemelha razoável o contratado ser condenado em razão de ato ilícito praticado pelo servidor público, mesmo que o contratado tenha se beneficiado com a contratação irregular, pois lhe faltará o elemento subjetivo que é o dolo e a vontade de se beneficiar com a dispensa ou inexigibilidade indevida de licitação.

De mais a mais, cabe unicamente à Administração Pública, através do agente público, averiguar se a contratação se encaixa como dispensável ou inexigível, não competindo ao contratado fazer tal avaliação, tendo em vista que trata-se de ato afeto à Administração Pública. Portanto, o particular não pode ser responsabilizado nos casos que foi dispensada e inexigida a licitação fora das hipóteses legais, a não ser que o particular tenha alguma participação no evento criminoso.

Na ausência de comprovação da participação do contratado para a consumação da ilegalidade este não deve sequer ser denunciado. Uma vez recebida a ação sua absolvição é medida que se impõe, conforme decidiu o Tribunal Regional Federal da Quarta Região –TEF4, ao julgar a Apelação Criminal[15] nº 2000.72.00.001156-9.

Conforme verificou acima, a doutrina e jurisprudência tinha posicionado que para a configuração do artigo 89 da lei nº 8.666/1993 era necessário a comprovação da conduta dolosa. Ora, a mesma exigência deve permanecer para a configuração do tipo penal previsto no artigo 337-E do Código Penal, visto que o tipo penal apenas foi transferido para o Código Penal, permanecendo incólume a necessidade da comprovação da conduta dolosa, consistente na vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito.

 

2.2. O crime do artigo 337-F do Código Penal Brasileiro

O artigo 337-F do Código Penal estabelece que: “Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório”, constitui crime apenado com reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa, tendo o legislador aumentado a reprimenda em relação da pena prevista no revogado artigo 90 da Lei nº 8.666/1993.

No presente caso, o legislador buscou reprimir os ajustes ou combinações que objetivam frustrar ou fraudar o caráter competitivo do certame. A intenção do legislador foi tutelar os princípios inerentes à Administração Pública, especialmente os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade e probidade administrativa.

André Guilherme Tavares de Freitas, ao comentar sobre o revogado artigo 90 da Lei nº 8.66/1993, aduziu que a norma objetivava resguardar o princípio da competitividade da licitação e o princípio da igualdade entre os licitantes, asseguramento do princípio da competitividade da licitação que a Administração pública seleciona a proposta mais vantajosa, principalmente em relação ao preço, razão pela qual, reflexamente, está se resguardando com esta norma penal o patrimônio público.[16]

Insta destacar que o tipo penal previsto no artigo 337-E do Código Penal foi apenas transferido para o Código Penal, permanecendo incólume a necessidade da comprovação da conduta dolosa, consistente na vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito. Dessa maneira, o agente não incorrerá em crime quando agir com negligência, imprudência, imperícia ou inobservância aos procedimentos legais.

Para a caracterização do delito em questão basta “que o agente frustre ou fraude o caráter competitivo da licitação, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, com o intuito de obter vantagem decorrente da adjudicação do objeto do certame, vantagem essa que pode ser para si ou para outrem”.[17] 

Assim, o crime somente se efetiva se o agente conseguir frustrar ou fraudar o caráter competitivo do certame, ou seja, o crime exige o resultado naturalístico que é a frustração ou fraude da competitividade do certame, exigindo-se, portanto, o dano. Dessa forma, se os atos praticados não resultarem em frustração ou fraude ao processo licitatório o agente não será punido, vez que não se pune a tentativa.

O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento na vigência do artigo 90 da Lei nº 8.666/1993 que o crime seria formal, ou de consumação antecipada, bastando a frustração do caráter competitivo do procedimento licitatório com o mero ajuste, combinação ou outro expediente. Essa constatação fulmina o argumento da necessidade de comprovação de prejuízo ao erário, sendo este mero exaurimento do crime.[18] Assim, pode-se dizer que o crime previsto no revogado artigo 90 da Lei nº 8.666/1993, atualmente no artigo 337-F do Código Penal, necessita da comprovação de dolo específico, todavia não depende da comprovação de prejuízo ao erário, por se tratar de crime formal.

Na mesma trilha, posicionou-se o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais na Apelação Criminal 1.0637.14.004187-1/001, de Relatoria do Desembargador Wanderley Paiva, aduzindo que:

O crime previsto no artigo 90 da Lei nº 8.666/93 é formal, ou seja, não exige efetivo prejuízo à Administração como consequência de resultado naturalístico, tampouco se demanda a obtenção da vantagem ao agente, pois a tutela circunda a moralidade pública, assegurando o caráter competitivo do procedimento licitatório, como princípio específico insculpido na seara das licitações e contratos.[19]

Para o doutrinador Cezar Roberto Bitencourt não é necessária a efetivação do prejuízo para consumação do crime frustrar ou fraudar o processo licitatório, eis os comentários do doutrinador:

Não se pode confundir, para efeito de consumação, a materialização da frustração ou da fraude com a efetiva obtenção da vantagem referida no dispositivo legal, na medida que dita vantagem representa somente o fim especial da ação, que, como tal, não precisa de concretizar, sendo suficiente que exista no psíquico do agente, isto é, que seja o móvel da ação. Na verdade, tampouco é necessário à consumação que ocorra o prejuízo econômico, o qual, se vier a existir, representará somente o exaurimento do crime.[20]

A realização de procedimento licitatório, deliberadamente, sem a observância das formalidades devidas, por si só, não configura o crime de frustrar ou fraudar o processo licitatório, tendo em vista que, para ser penalmente relevante, depende da demonstração do dolo, que consiste na vontade consciente de frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do certame, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.

Vale dizer que a invalidação do certame licitatório pela Administração Pública não afasta a configuração do crime de frustrar ou fraudar o certame, foi o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o RHC 18.598/RS, ficando consignado que: “a anulação do certame licitatório, em razão do evidente ajuste prévio entre os licitantes, não afasta a tipicidade da conduta prevista no art. 90 da Lei n.º 8.666/93”.[21]

 

2.3. Sujeito ativo e passivo nos crimes previstos nos artigos 337-E e 337-F do Código Penal Brasileiro

Antes de iniciar o Estudo dos sujeitos passivos e ativos nos crimes tipificados artigos 337-E e 337-F do Código Penal, vale fazer um breve estudo sobre o agente público.

Segundo José dos Santos Carvalho Filho os “agentes públicos são todos aqueles que, a qualquer título, executam uma função pública como preposto do Estado. São integrantes dos órgãos públicos, cuja vontade é imputada à pessoa jurídica”.[22]

Para o saudoso Hely Lopes Meirelles “agentes públicos – São todas as pessoas físicas incumbidas definitiva ou transitoriamente do exercício de alguma função estatal”.[23]

O professor Celso Antônio Bandeira de Melo ensina que os agentes públicos são “os sujeitos que servem ao Poder Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação, ainda quando o façam apenas ocasional ou episodicamente”.[24]

Vale destacar que “o agente público não se limita àquele que exerce função na Administração Pública ou função Administrativa[25]”, englobando também a função legislativa, as funções dos detentores de cargo no executivo, os membros do Poder Judiciário e os membros da Advocacia Pública, do Ministério Público, os detentores de cargos comissionados e os servidores civis e militares. Ou seja, todos os que atuam em nome do Estado, percebendo remuneração ou não.

Conforme os ensinamentos de Waldo Fazzio Júnior, “a locução agente público compreende todas as pessoas que mantêm trabalho temporário ou permanente, a qualquer título[26]” com a Administração direita e indireta, ou seja, todo aquele que exerce atividade típica do Estado deve ser considerando agente público para fins legais.

Destarte, pode-se dizer que o agente público engloba as pessoas físicas que mantém vínculo funcional com a Administração Pública ou aqueles em colaboração, com ou sem vínculo empregatício, que estejam exercendo uma função pública, ou seja, o conceito de agente público é amplo, já que engloba pessoas que não mantém vínculo funcional com a Administração Pública.

Para efeitos legais servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como da administração direta e indireta, no âmbito da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

Feitas essas considerações, passa-se ao estudo dos sujeitos passivos e ativos nos crimes tipificados nos artigos 337-E e 337-F do Código Penal.

O sujeito ativo do crime previsto no caput do artigo 337-E (Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei) somente pode ser cometido por um agente público.

Nessa trilha, posiciona o administrativista Marçal Justem Filho, ao afirmar que “o tipo previsto no caput do artigo 89, hoje 337-E do Código Penal, exige a atuação de servidor público (acepção ampla do art. 84), pois a decisão de efetivar contratação direta incumbe ao agente da Administração Pública. Estarão sujeitos à sanção penal todos os servidores a quem incumbir o exame do cumprimento das formalidades necessárias à contratação direta”[27], ou seja, o crime do artigo 337-E do Código Penal trata-se de um “crime funcional ou próprio”[28].

Segundo o doutrinador Cezar Roberto Bitencourt, é indispensável que o agente público esteja no exercício de sua função pública, devendo ainda ter atribuição especial para conduzir o processo ou procedimento licitatório. Não estando no exercício da função pública e não sendo o responsável pela condução do procedimento licitatório, não terá como o servidor praticar o crime capitulado no artigo 337-E do Código Penal.

Eis os comentários do doutrinador:

É indispensável, ademais, que o agente encontra-se no exercício de sua função pública, e que tenha atribuição especial para a prática do processo ou procedimento licitatório. Evidentemente que não pode praticar esse crime que não se encontra no exercício da função ou, por qualquer razão, encontre-se temporariamente dela afastado, como, por exemplo, de férias, de licença etc. Nada impede, contudo, que o sujeito ativo, qualificado pela condição de funcionário público, consorcie-se com um extraneus para a prática do crime, com limitação, evidentemente, preconizada pelo parágrafo único, conforme demonstraremos adiante.[29]

O crime tipificado no artigo 337-E do Código Penal exige que o sujeito ativo seja um servidor público, ou seja, o tipo penal exige uma qualidade especial do sujeito ativo, tratando-se, portanto, de um crime próprio. Dessa forma, o crime somente pode ser praticado por alguém que seja servidor público e que esteja no exercício da função pública.

O sujeito passivo do crime do artigo 337-E do Código Penal será a Administração Pública, sendo que a norma visa tutelar os interesses da Administração Pública, especialmente a moralidade administrativa e a lisura nos procedimentos licitatórios.

No que tange ao artigo 337-E do Código Penal, o sujeito passivo pode ser tanto o agente público como o particular, não se tratando de crime que somente pode ser cometido pelo agente público. Foi o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça no HC 26.089/SP e HC 26.089/SP:

[...] Delito pelo qual o paciente foi condenado, previsto no art. 90 da Lei de Licitação, que, embora tenha sido praticado à época em que o mesmo seria Vereador-Presidente da Câmara Municipal, não é crime de responsabilidade, tampouco crime funcional ou próprio. Para que se configure a prática do referido crime, não é necessário o desempenho de função pública, a ocupação de cargo público, ou o exercício de mandato eletivo. Qualquer pessoa pode cometê-lo, eis que não há vínculo subjetivo com o funcionário público”. (HC 26.089/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 06/11/2003, DJ 01/12/2003, p. 376)

Delito pelo qual o paciente foi condenado, previsto no art. 90 da Lei de Licitação (...). Para que se configure a prática do referido crime, não é necessário o desempenho de função pública, a ocupação de cargo público, ou o exercício de mandato eletivo. Qualquer pessoa pode cometê-lo, eis que não há vínculo subjetivo com o funcionário público. (HC 26.089/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 06/11/2003, DJ 01/12/2003, p. 376).

Destarte, o crime capitulado no artigo 337-E do Código Penal trata-se de crime comum, tendo em vista que pode ser praticado por qualquer pessoa, não exigindo condição especial do agente.

Vale destacar que o crime tipificado no artigo 337-E do Código Penal envolve concurso de agentes, tendo em vista que exige o ajuste, a combinação ou qualquer outro expediente visando frustrar ou fraudar o caráter competitivo do certame. In casu, para a configuração do crime é exigida a comprovação do dolo específico, consistente no especial fim de "obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação".[30]

Por fim, vale registrar que o sujeito passivo do crime do artigo 337-E do Código Penal será a Administração Pública (União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e respectivas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas, e quaisquer outras entidades sob seu controle direto ou indireto), ou seja, considera-se sujeito passivo do crime todas as pessoas jurídicas mencionadas no artigo 1º, § 5º, da Lei de Improbidade Administrativa.

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos fatos relatados, pode-se concluir que, em se tratando de crimes licitatórios, a denúncia deve individualizar a conduta do agente, conter elementos mínimos que demonstram sua participação no avente criminoso, além de comprovar que o agente agiu de forma dolosa, sob pena da ação não poder ser recebida, tendo em vista que a ausência dos mencionados elementos está em descompasso como Estado Democrático de Direito.

Vale dizer que no Direito Brasileiro vigora a responsabilidade subjetiva (princípio da responsabilidade subjetiva), ou seja, “não basta que o fato seja materialmente causado pelo agente, ficando a responsabilidade penal condicionada à existência de voluntariedade”.[31]

Nos crimes licitatórios a denúncia deve ser lastrada com provas que comprovam que o agente agiu de forma dolosa, tendo em vista que o crime licitatório não é punido a título culposo, ou seja, não há a possibilidade dos crimes tipificados nos artigos 337-E e 337-F do Código Penal Brasileiro se consumarem por negligência, imprudência ou imperícia, bem como por inobservância das regras legais sem a intenção de fazê-la. Isso significa que sempre deverá ser comprovado o elemento dolo para a configuração dos mencionados tipos penais, tendo em vista que não há punição a título culposo, portanto, o agente não incorrerá em crime quando agir com negligência, imprudência, imperícia ou inobservância aos procedimentos fixados na Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

 

Notas e Referências

ALEXANDRINO, Marcelo, Paulo, Vicente. Direito Constitucional descomplicado.16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2017.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4. Ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revistas do Tribunais, 2016.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, 3ª ed. ed., JusPodivm, 2015.

DE FREITAS, André Guilherme Tavares. Crimes na Lei de Licitações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

Greco Filho, Vicente – Tóxicos – Prevenção e Repressão: Saraiva, 1990.

JARDIM, Afrânio Silva, Curso de Direito Penal – 2. ed. RJ: ed. Impetus, 2002

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 1995.

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa Causa para a Ação Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

[1] JARDIM, Afrânio Silva, Curso de Direito Penal - 2ª ed. RJ: ed. Impetus, 2002.

[2] STJ - HC 461.468/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 09/10/2018, DJe 30/10/2018.

[3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4. Ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 175.

[4] JARDIM, Afrânio Silva, Curso de Direito Penal – 2. ed. RJ: ed. Impetus, 2002.

[5] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa Causa para a Ação Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 18.

[6] Greco Filho, Vicente – Tóxicos – Prevenção e Repressão: Saraiva, 1990, p.83.

[7] CPC de 2015 - Art. 5º - “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”.

[8] CPC de 2015- Art. 6º - Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

[9] RHC 74.812/MA, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Rel. p/ Acórdão Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 21/11/2017, DJe 04/12/2017.

[10] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revistas do Tribunais, 2016, p. 171.

[11] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 159-160.

[12] Habeas Corpus nº 315.494/GO, 5ª Turma, Rel. Ministro Felix Fischer, julgado em 23.06.2015, DJe 29.06.2015.

[13] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, 1.399.

[14] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 739/740.

[15] TRF4 – “Em atenção ao princípio do in dubio pro reo, impõe-se a absolvição dos réus quando não existem nos autos provas convincentes da sua participação na "consumação da ilegalidade" (artigo 89, parágrafo único, Lei 8.666/93) ou do intuito de favorecer a parte contratada por meio da omissão de formalidades legais para dispensa/ inexigibilidade de licitação. (TRF4, ACR 2000.72.00.001156-9, OITAVA TURMA, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado, DJ 19/10/2005)”.

[16] DE FREITAS, André Guilherme Tavares. Crimes na Lei de Licitações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 103/104.

[17] AgRg no Ag 983.730/RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, julgado em 26/03/2009, DJe 04/05/2009.

[18] STJ - REsp 1597460/PE, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 21/08/2018, DJe 03/09/2018 / HC 384.302/TO, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 01/06/2017, DJe 09/06/2017.

[19] TJMG -  Apelação Criminal 1.0637.14.004187-1/001, Relator: Des. Wanderley Paiva, 1ª Câmara Criminal, julgamento em 15/05/2018, publicação da súmula em 23/05/2018.

[20] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 208/209.

[21] STJ - RHC 18.598/RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 06/11/2007, DJ 10/12/2007, p. 397

[22] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 18.

[23] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 71.

[24] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 175/176.

[25] GARCIA, Mônica Nicida. Responsabilidade do Agente Público. 2 ed. ver. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 25

[26] FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade Administrativa; doutrina legislação e jurisprudência. 4 ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 46.

[27] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, 1.339.

[28] STJ - Amparo da doutrina, no sentido de que os crimes de responsabilidade ou funcionais são aqueles em que 'a condição de funcionário público é inerente à prática do delito (delito próprio, portanto), não abrangendo outros ilícitos comuns que podem ser cometidos por qualquer pessoa, ainda que a condição de funcionário público intervenha como circunstâncias qualificadora', como ocorre nas infrações previstas na Lei de Licitações. (HC 26.089/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 06/11/2003, DJ 01/12/2003, p. 376).

[29] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 133.

[30] STJ - AgRg  no  AREsp n. 185.188/SP, Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 12/5/2015.

[31] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, 3ª ed. Ed. JusPodivm, 2015, p. 94.

 

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