Clássico da literatura mundial, Admirável Mundo Novo, foi escrita por Aldous Huxley por volta da década de 1930. Desde a sua gênese, a obra vem sendo alvo de diversas discussões, sejam as de cunho literário, científico ou até mesmo nos mais diversos ramos das ciências exatas e humanas.
Juridicamente, a obra vez ou outra é citada com rápidas pinceladas sob a ótica do Direito, no entanto, não há nenhuma publicação que tenha revisto a obra de Huxley pelo prisma jurídico. Vislumbrando tal lacuna, o que de fato é prejudicial, tentaremos então demonstrar algumas passagens do livro e em cima delas fazer os comentários jurídicos possíveis.
Vale ressaltar que a edição consultada e a partir de agora comentada faz parte da coleção “Globo de Bolso” da editora Globo e teve sua impressão no ano de 2010.
Fazendo um rápido resumo do enredo, podemos dizer que a escrita futurista de Aldous Huxley tratou de um mundo onde as pessoas não são mais geradas por vias naturais, isto é, através da cópula entre macho e fêmea, e sim a partir de experimentos químicos efetuados por máquinas avançadas. Com base nessa premissa, já podemos prever o rumo da história que se passa em um futuro hipotético, onde desde o início denuncia-se os perigos que o progresso científico pode trazer.
Na página 42, há o diálogo:
“Quanto mais baixa é a casta – disse o Sr. Foster – menos oxigênio se dá.”
O primeiro órgão afetado era o cérebro. Em seguida, o esqueleto. Com setenta por cento de oxigênio normal, obtinham-se anões. Com menos de setenta por cento, monstros sem olhos.”
Acabamos de ler passagem onde um dos diretores do centro de encubação humana relata os pormenores da geração de um feto, para adolescentes que faziam sua primeira visita ao lugar de onde vieram. Observa-se que ele inicia a exposição falando: “quanto mais baixa é a casta, menos oxigênio se dá”. Trata-se de uma flagrante discriminação diante das condições sociais das pessoas que ali são geradas.
É lógico que no Brasil não há a menor possibilidade de ocorrer evento da mesma natureza, entretanto, assiste-se em muitas ocasiões o desrespeito e a indiferença com cidadãos brasileiros de setores mais humildes. Por exemplo: nas filas de hospitais, nos atendimentos de serviços básicos etc.
Mesmo a Constituição Federal deixando de forma indelével em seu artigo 5º. caput, a seguinte lição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
Destarte, jamais em plagas tupiniquins, admitir-se-iam condutas discriminatórias em relação a nenhum serviço ou conduta estatal. Portanto, se no Brasil houve máquinas para gerar humanos, o seu manipulador não poderia a “bel-prazer” e com atitudes preconceituosas, aumentar ou diminuir o oxigênio necessário para gerar mais uma vida humana.
O Sr. Foster depois de explicar aos visitantes o procedimento de geração de humanos, passa ao próximo setor, onde crianças recém-nascidas ou com idades de até 5 anos, são mantidas para receber lições de como viver a vida neste mundo novo.
É nesta passagem que reside umas das partes mais hediondas da obra:
Várias crianças eram colocadas em um grande cercado. Algumas começavam a engatinhar e outras ficavam assustadas e estáticas. Eis que a enfermeira-chefe do setor baixa uma pequena alavanca: há uma explosão violenta seguida do som ensurdecedor de uma sirene. As crianças começam a gritar desesperadas com a situação. Vislumbra-se o terror estampado em suas pequenas faces inocentes. Para encerrar o diretor ordena que apertem o botão do choque elétrico. Todas são atingidas e desmaiam.
E essas sessões eram repetidas diuturnamente até as crianças partirem para o lar de seus pais.
A Constituição de nosso País em seu art. 227 preconiza: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito [..] além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, e opressão”.
Corrobora com tal pensamento, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) quando exorta: “A criança e adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.” (art. 7, Lei 8.069/90).
Por isso, tais expedientes nefastos contra as crianças e os jovens são terminantemente vedados em nosso ordenamento jurídico. Jamais prosperariam em nosso solo brasileiro condutas dessa natureza.
O autor faz questão de lembrar que as crianças do admirável mundo novo eram criadas distantes dos pais em centros de Condicionamento do Estado. (p. 58).
Entramos agora em outra seara importante. Cito a tão sonhada e famigerada liberdade de expressão.
Neste ponto, a sociedade do futuro exposta nos escritos de Huxley, concordam com nossos anseios e até defendem intransigentemente a liberdade de ação e de comportamento. Na página 233, as personagens conversam: “O homicídio mata apenas o indivíduo. Nós podemos produzir um indivíduo novo com a maior facilidade; tantos quantos quisermos. A falta de liberdade, porém, ameaça mais do que a vida de um simples indivíduo; ela atinge a própria sociedade.”
Lemos também nessa passagem a total desmoralização da vida humana. Não era necessário repreender o homicídio, uma vez que na hora que queriam geravam uma nova vida para repor a antiga. E os laços afetivos e morais por onde andavam?
A sociedade vivia a base de uma substância conhecida como soma. É patente nas páginas do livro o total incentivo por parte de todos ao uso indiscriminado de drogas, ou melhor, de soma.
No entanto, defende-se o uso da soma porque ela “não trazia nenhuma das consequências desagradáveis. Proporcionava um esquecimento perfeito, e se o despertar era desagradável, não o era intrinsecamente, mas apenas em comparação com as alegrias desfrutadas. O recurso era tornar contínua a fuga. Avidamente, ela reclamava doses cada vez mais fortes, cada vez mais frequentes.” (p. 242)
Se isso não é uma conceituação perfeita da mistura droga e vício, não sei mais de nada.
O vício era tamanho, que foi usado como meio de controlar as massas e aplacar os impulsos humanos. Uma excelente arma para o Estado se apropriar mais uma vez da vida de seus cidadãos.
Na página 321, o relato de dominação da droga é claro: “Não empurrem! - bradou o subencônomo, furioso. Fechou com estrépito a tampa da caixa – suspendo a distribuição se vocês não se portarem bem. […] a ameaça fora eficaz. A privação de soma era uma espantosa ideia.”.
Acabamos de ler um exemplo pernicioso de educação das pessoas. Educar com o medo. Educar pelo receio de perder algo que não se vive sem. O Estado drogava os seus habitantes como meio de manipular as massas.
Ai vai o alerta, será que os Estados atuais já não fazem a mesma coisa? Será que não diagnosticamos ainda o que seria a soma atualidade?
Um habitante mais perspicaz e esclarecido, conhecido por “selvagem”, certa ocasião clamou em praça pública: “não tomem essa droga horrível. É veneno, é veneno. Veneno para a alma, assim como para o corpo”. (p. 322)
O pior de tudo é que o pagamento pelo trabalho, na maioria das vezes, era através de soma.
“Eles a recebem quando terminam o trabalho. Quatro comprimidos de meio-grama. Seis aos sábados”. (p. 255).
Paralelamente, em nosso sistema jurídico, há a proibição expressa de pagamentos por meio de drogas a trabalhadores brasileiros. A proibição encontra-se veiculada na redação final do art. 458, da CLT: “Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas”.
O mais interessante da sociedade exposta por Huxley é que ela possuía idiossincrasias semelhantes as nossas, como por exemplo: havia no admirável mundo novo a existência de um Poder Judiciário. O autor não revela maiores detalhes sobre a composição e a organização deste poder, no entanto, na página 257 escreve a seguinte informação: “Passara um final de semana com sua Fordeza o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça..”.
Destarte, imaginamos que havia um direito constituído e uma justiça para jurisdicionar.
Outra informação que nos chamou atenção, diz respeito a uma forma de sanção penal: “O negro foi mandado para um Centro de Recondicionamento de Adultos”. Trata-se de um afro-descendente que havia por insanidade atacado uma jovem moça.
Por mais que se hasteasse uma bandeira de liberdade de expressão, havia hermeticamente oculto na mente dos governantes a figura da censura. Em um dado momento, o governante maior chegou a orientar que não fosse publicado um livro que contrariava toda a teoria biológica deles.
“Uma Nova Teoria Biológica era o título do trabalho que Mustafá Mond acabava de ler. Ficou sentado algum tempo, as sobrancelhas franzidas mediativamente; depois tomou a pena e escreveu sobre a página de rosto: “A maneira pela qual o autor trata matematicamente a concepção de finalidade é nova e extremamente engenhosa, mas herética e, no que diz respeito à ordem social presente, perigosa e potencialmente subversiva. Não publicar!”. (p. 273)
A questão da soma era algo tão nocivo e manipulador da existência humana, que nos grandes conflitos sociais, a polícia jogava bombas de soma para acalmar e controlar a multidão ensandecida.
Era uma prática parecida com a dos dias hodiernos, quando a polícia usa “bombas de efeito moral” municiadas com químicas de gás lacrimogêneo.
“Os policiais arredaram-no do caminho e continuaram o seu trabalho. Três homens, que traziam pulverizadores presos aos ombros por correias, espalharam no ar densas nuvens de vapores de soma.” (p. 326).
Drogando a multidão, a polícia conseguia manietá-los e levá-los para a carceragem ou Centros de Reabilitação Humana.
Por fim, a obra deixa-nos excelente lição sobre o Estado Democrático de Direito.
Graças às manifestações públicas dos cidadãos brasileiros, em nosso País, vigora o EDD (Estado Democrático de Direito) que dispõe a seguinte lição: ninguém, nem mesmo o Presidente da República, está acima das leis. Este douto ensinamento está cravado no artigo inaugural de nossa Carta Maior.
Lá no admirável mundo novo, o Estado Democrático não era respeitado, apesar de sua pseudo-existência.
O “todo-poderoso” governante Ford bradou: “O senhor compreende, ele está proibido. Mas, como sou eu que faço as leis aqui, posso também transgredi-las. Impunemente.”. (p. 335)
Como já dito anteriormente, em nossa nação, tal comportamento não encontra guarida, sendo, inclusive, motivo de reprovações contínuas por parte da população.
Ninguém pode se colocar acima das leis.
Essas eram as considerações jurídicas sobre a belíssima obra de Aldous Huxley. Esperamos realmente que esta ficção nunca se concretize em realidade e que, se um dia nos aproximarmos, tenhamos a consciência de recuar e entender que não nos será salutar.
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