O «acaso» nosso de cada dia: o largo braço da fortuna (Parte 4)

19/01/2018

 “La vida es una especie de juego de azar, donde todo el mundo piensa que el de al lado sabe qué esta pasando.” Barbara Probst Solomon 

Também deveríamos aprender o que John Keats denominou de “capacidade negativa”. Esta capacidade que consiste em saber existir, com sensatez e equilíbrio, em meio da incerteza, o mistério e a dúvida, sem proceder a “uma busca irritada [e sempre prematura] do fato e da razão”, sem uma ânsia exacerbada de alcançar quanto antes a certeza, mas também (e fundamentalmente), sem deixar de intentar reconhecer nossas limitações ante a baixada aos infernos que às vezes propõe a iniludível aleatoriedade da vida.

Para dizê-lo de uma forma mais despretensiosa: antes que recorrer ao imaginário interpretativo, às ilusões positivas e/ou às distorções ingênuas da realidade, o mais sensato é tomar diretamente o controle de nossas vidas, de tudo aquilo que possa estar baixo nosso controle, esforçar-se duramente, com conhecimento, dedicação e entusiasmo contínuo, com toda a satisfação que isso acarreta. Ser tudo em cada coisa que nós nos proponhamos, pôr quanto somos no mínimo que façamos. Assim, e somente assim, veremos que o realmente importante não é o que obteremos em um hipotético futuro, senão em quem nos transformamos graças a nossos esforços o que faz com que estes valham à pena.

Em que pese o fato de que o êxito dependa de casualidades incontroláveis[1], das circunstâncias em que se apresentam os desafios e da personalidade de quem os enfrenta, o que efetivamente importa é a entusiasmada sensação de que estamos dispostos a perseguir nossos objetivos e convencidos de que, apesar da (ou graças à) fortuna, a cada dia que passa sabemos que estamos dando o melhor de nós mesmos para chegar a ser o melhor que podemos chegar a ser, a melhor versão de nós mesmos.

Não há que permitir que a aflição gerada pela incerteza e/ou pela expectativa antecipada do futuro (como dizia Kant) se interponham em nossos valiosos propósitos. Há que aprender a confiar na vida, educar nosso cérebro a ver o indeterminado e desconhecido porvir com serenidade e moderação, e alcançar escolher cuidadosamente os fatos e as ilusões que queremos crer. Do contrário, a consequência será sempre uma dissonância imensa, uma brecha gigante, entre nossos desejos e a realidade.[2]

Saber que junto ao «sentido de realidade» existe também um «sentido de possibilidade» é precisamente o que nos permite abrir os olhos respeito às múltiplas alternativas com que a vida nos brinda e o que nos motiva a assumir o compromisso de cumprir nossos desejos pessoais; quer dizer, de empenhar-nos na consecução de certas coisas de uma lista de objetivos pelos quais merece a pena esforçar-se. Às vezes, o simples fato de pressentir um destino mais favorável já é suficiente para permitir derrubar os muros que nos aprisionam. Por quê? Porque ao cobrar consciência de que nossa vontade é mais frágil do que pensamos, é a esperança a melhor companheira enquanto se espera, baixo um enorme silêncio, momentos que nunca chegam. [3]

Este é o encanto do que chamamos esperança: fazer-nos penetrar no desconhecido, distorcer a realidade e abrir na trama do tempo uma benéfica fissura. Uma perfeita combinação entre “diligência” e “opções”: estar disposto a “atuar” (diligência) e ter o talento para pensar nos “caminhos” (opções) que podem levar até o objetivo esperado. Se não temos o controle sobre todas as coisas, sim que podemos controlar nossas próprias ações e dedicar nossa energia e esforço a encontrar os meios que conduzem ao que desejamos. Em um mundo cínico, imprevisível e cruel, recorda Bertrand Russell, haverá que cultivar a esperança e a fortaleza do espírito para não cair no derrotismo, na desesperança e no medo, estes monstros da alma humana.

Assim as coisas, é importante traçar metas e ter objetivos, que nos darão o que queremos lograr ou onde queremos chegar. Mas, sem dúvida, é vital saborear a vida, trago a trago, com a certeza de que não podemos controlar o incontrolável. O azar existe como existe a coragem, a dor, o medo e o sofrimento. Podemos queixar-nos ante Deus por haver criado um mundo tão aleatório, mas, lamentavelmente, a sorte ou o azar não são invenções que (somente) existem na fértil imaginação dos sapiens.

Somos seres frágeis, limitados em quase tudo e temos que aceitar nossa impotência quando nos topamos com situações que nos superam. Possivelmente nos sintamos mais incômodos e inseguros, mas é infinitamente mais honesto e digno reconhecer que a realidade (“compleja, llena de incertidumbres, y con un sometimiento terrible al azar” – Gregorio Luri), sem a necessidade de convertê-la em um drama ou uma desgraça metafísica, nos vem dada, ainda que intentemos interpretá-la ou manipulá-la a nossa maneira.

 

[1] Robert H. Frank (Success and Luck. Good Fortune and the Myth of Meritocracy, 2016) propõe que, ainda que nos encante pensar ou crer que vivemos em um mundo justo (M. J. Lerner, 1980) onde às pessoas boas lhes passam coisas boas e às pessoas más lhes passam coisas más, a sorte joga um grande papel no êxito econômico e profissional (e em tudo na vida). Por isso defende que as políticas sociais há que desenhá-las com a convicção de que ninguém  escreve seu próprio destino.

[2] Recordemos que o que chamamos «stress» não é outra coisa que o conflito ou o desequilíbrio que com frequência tem lugar entre nossos discrepantes desejos e nossas possibilidades, isto é, entre nossas contraditórias emoções  e nosso débil razoamento (é querer – emoção –  mais do que é possível – razão –, esperar, imaginar ou propor-nos continuamente mais do que podemos, e experimentar com regularidade a frustração e a melancolia de não haver ocorrido ou conseguido o que anelávamos).

[3] Não podemos viver sem realidade e nem sem expectativas otimistas. Nosso mundo é uma mescla de crua realidade e reconfortante esperança. Ademais, as crenças e as expectativas acerca do futuro determinam em boa medida o que ocorre no presente e contribuem a como pensa, sente e atua a pessoa. Como disse Daniel Dennett (1996), o cérebro humano é uma “máquina de antecipação”, e “criar futuro” é o mais importante que faz: a predição constitui a verdadeira entranha da função cerebral (R. Llinás, 2003). Também deveríamos não olvidar  a ideia da falsa esperança, quer dizer, a que vai contra toda possibilidade realista, em cujo caso se considera que é uma forma não desejável de enfrentar-se a um fracasso potencial. Nao tem nenhum sentido pensar na esperança somente quando as possibilidades de êxito estão a nosso favor. A esperança não quer dizer que tudo vai sair bem, senão simplesmente que é «possível». No prólogo ao livro de sua esposa, Seymour Epstein, o marido de Alice, dissipa com notável fortuna esta visão negativa da esperança: “Algumas pessoas temem as «falsas esperanças». Nunca entendi o que é uma falsa esperança. Toda esperança é «falsa» no sentido de que aquilo que se espera pode que não se materialize. No momento de ter esperança ninguém pode saber o resultado. Se a esperança serve para melhorar a qualidade de vida e não causa que se evite tomar uma ação de adaptação quando isso é possível, nem que se sinta ressentimento se o resultado esperado não se materializa, então obviamente é algo desejável”. (R. S. Lazarus & B. N. Lazarus, 1994). Em resumo, a esperança é uma virtude independentemente de seus resultados; é um valor intrínseco, um fim em si mesmo, aliada da coragem e da imaginação, uma atitude repleta de possibilidades e aspirações. Isso é esperança. Por essa razão se descobre mais acerca de uma pessoa quando se conhece suas esperanças que quando se conhece seus logros (A. C. Grayling, 2001).

 

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