O absurdo kafkiano de todos os processos penais

02/10/2015

Por João Victor Mingorance - 02/10/2015

"O rastelo começa a escrever; quando o primeiro esboço de inscrição nas costas está pronto, a camada de algodão rola, fazendo o corpo virar de lado lentamente, a fim de dar mais espaço para o rastelo. Nesse ínterim as partes feridas pela escrita entram em contato com o algodão, o qual, por ser um produto de tipo especial, estanca instantaneamente o sangramento e prepara o corpo para novo aprofundamento da escrita. Então, à medida que o corpo continua a virar, os dentes na extremidade do rastelo removem o algodão das feridas, atiram-no ao fosso e o rastelo tem trabalho outra vez. Assim ele vai escrevendo cada vez mais fundo durante as doze horas. Nas primeiras seis o condenado vive praticamente como antes, apenas sofre dores. Depois de duas horas é retirado o tampão de feltro, pois o homem não tem mais força para gritar. Aqui nesta tigela aquecida por eletricidade, na cabeceira da cama, é colocada papa de arroz quente, a qual, se tiver vontade, o homem pode comer o que consegue apanhar com a língua. Nenhum deles perde a oportunidade. Eu pelo menos não conheço nenhum, e minha experiência é grande. Só na sexta hora ele perde o prazer de comer. Nesse momento, em geral eu me ajoelho aqui e observo o fenômeno. Raramente o homem engole o último bocado, apenas o revolve na boca e o cospe no fosso. Preciso então me agachar, senão escorre no meu rosto. Mas o condenado fica tranquilo na sexta hora! O entendimento ilumina até o mais estúpido. Começa em volta dos olhos. A partir daí se espalha. Uma visão que poderia seduzir alguém a se deitar junto embaixo do rastelo. Mais nada acontece, o homem simplesmente começa a decifrar a escrita, faz bico com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com olhos; mas o nosso homem a decifra com seus ferimentos. Seja como for exige muito trabalho; ele precisa de seis horas para completá-lo. Mas aí o rastelo o atravessa de lado a lado e o atira no fosso, onde cai de estalo sobre o sangue misturado à água e o algodão. A sentença está então cumprida e nós, eu e o soldado, o enterramos".

O texto acima diz respeito a um trecho da novela de Franz Kafka – "Na colônia penal" -, história que retrata a visita de um explorador estrangeiro a uma sessão de tortura e execução de um soldado que teria, em tese, cometido o crime de desobediência e insulto ao seu superior hierárquico. Na história, o soldado que será executado não teve o conhecimento de sua sentença e nem tampouco teve a oportunidade de se defender. Para o comandante e juiz da colônia penal, a presunção de culpa é sempre indubitável, insuperável. Nosso Judiciário não é tão diferente da perspectiva de Kafka. A sentença penal é um desafio hermenêutico ao condenado. José foi condenado a 05 anos e 04 meses de reclusão, em regime inicial fechado, por ter roubado. Subtraiu, com violência ou grave ameaça a pessoa, coisa alheia móvel, de modo que a sua condenação já se efetivou antes mesmo do trânsito em julgado da sentença, pois foi preso em flagrante e teve todos seus recursos negados. José é pobre, negro e não tinha passagem pelos órgãos penais. José não sabe ler e não pode concluir seus estudos quando criança. Tinha emprego como ajudante de serviços gerais e fazia bicos como garçom. José não sabe o que é comer no Burguer King. José não sabe o que é fator previdenciário. José nunca foi aplaudido num evento acadêmico, somente em seus aniversários. O que faz sentido, para José, em sua sentença? O que José entende por dosimetria da pena, gravidade abstrata do delito, bem jurídico tutelado, ordem pública como fundamento de sua prisão, qualificadoras? José só soube sentir o peso do rastelo.


Joao Victor Mingorance da Silva

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João Victor Mingorance é advogado (OAB 366.082) e membro do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos - LEIPSI/UNICAMP.

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Imagem Ilustrativa do Post: Kafka // Foto de: Tom Hilton // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/tomhilton/2667937798/

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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