NUMERUS CLAUSUS NA EXECUÇÃO PENAL: números da desumanização do cárcere

27/07/2021

Coluna Espaço do Estudante

O cárcere é o nosso El Dourado social. Muito idealizado, motivo de debates enviesados, atiça a imaginação da sociedade, mas poucos se importam com as reais e lacerantes agruras ocorridas ali dentro. Diferente da mitológica cidade, que seria coberta de ouro, a única riqueza das prisões é de desumanidade. A realidade vivida dentro de muitas prisões no Brasil passa a léguas de distância do que fundamenta a nossa República: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988).

É para dentro da prisão que o Brasil joga, e aqui este verbo assume um tom literal, não somente sujeitos ativos de crimes, mas também problemas sociais. Tornado o cárcere a cratera onde amontoamos desumanamente os presos, a superlotação se tornou um problema endêmico do sistema prisional brasileiro. Neste cenário, a função preventiva especial positiva da pena, ou seja, a ressocialização, se tornou uma falácia, quando não se distorce o sentido desse termo contra o próprio custodiado (VALOIS, 2020).

A superlotação é um dos diversos problemas do nosso sistema prisional. Ele já foi debatido doutrinariamente e jurisprudencialmente. Na execução penal cita-se a teoria dos numerus clausus, que visa, grosso modo, adequar a quantidade de presos aos números de vagas disponíveis. Projetos legislativos em tramitação no Congresso Nacional objetivam alterar dispositivos da Lei de Execução Penal (LEP)[1] tendo como influência tal teoria. O tema também já chegou no Supremo Tribunal Federal (STF) com debates e declarações do estado de coisas inconstitucional do nosso sistema prisional (ADPF 347 / 2015 MC). Este é um dos problemas sociais que se intensificaram com a pandemia da Covid-19 e que se tentam “resolver” utilizando estratégias rasas e ineficazes.  

 

1. A SUPERLOTAÇÃO

Para Cesare Beccaria[2], “o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já foi cometido” (p.52, 2015). As reflexões feitas pelo autor no século XVIII são bastante atuais e exibem a pouca evolução humanística no instituto das prisões do Brasil. Os números revelam um panorama atroz. Segundo dados mais atualizados do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Sisdepen), em 2020, 678.506 pessoas estavam privadas de liberdade. À época o Brasil dispunha de 446.738 vagas, ou seja, havia um déficit de 231.758 vagas. Ademais, eram 344.773 pessoas cumprindo pena em regime fechado e que, do total da população prisional (759.518), 228.976 eram presos provisórios.

Os números permitem-nos ter a dimensão do problema da superlotação carcerária no Brasil. O cárcere se transformou num ambiente hostil, onde há escassez de suprimentos básicos, como água, alimentos e produtos de higiene, propício à proliferação de doenças infectocontagiosas, problemas físicos e psicológicos aos presos e graves desrespeitos aos direitos humanos.

Em 2015 houve uma tentativa de mitigar a terrível condição carcerária quando foi ajuizada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347[3] visando o reconhecimento da violação de direitos fundamentais da população carcerária, sustentando a existência de um “estado de coisas inconstitucionais” e da determinação da tomada de providências para resolução da questão. Os ministros concederam parcial provimento cautelar, determinando, entre outras medidas, que seja considerado o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento da concessão de cautelares, da aplicação da pena e da execução penal, além da aplicação de penas alternativas à prisão, sempre que possível.

O panorama tende a agravar-se quando inicia a pandemia da Covid-19. O boletim do Conselho Nacional de Justiça de 30 junho de 2021 revelou 87.420 casos confirmados da doença entre os presos e 514 óbitos. Contudo, apresentou um baixo índice de testagem, sendo realizados apenas 334.109 verificações entre custodiados. O contágio do coronavírus torna-se um problema diante da superpopulação carcerária, que já enfrenta outras graves questões sanitárias, devido à alta contagiosidade do vírus, já que se torna inviável o isolamento social, bem como a falta de possibilidade de manter a higienização.

No Brasil, podemos afirmar que a cadeia se constrói num vácuo legislativo e constitucional. Os ditames, princípios e regras, muitos deles suscitados pela Constituição, não adentram de maneira eficaz as prisões. Direitos dos custodiados são entendidos como benefícios e esta forma de interpretar gera mazelas e sofrimentos dentro do cárcere. O Código Penal[4] e a LEP[5] asseguram todos os direitos aos custodiados, desde que não atingidos pela sentença e a lei pertinente. Mas, pelo cenário citado acima, é notável o desrespeito.

Os números mencionados são indícios de quão degradante o sistema prisional brasileiro é para o custodiado. O cárcere ainda não deixou de ser uma horrível mansão do desespero e da fome, e a piedade humana ainda não penetrou nas masmorras, como supôs Beccaria (2015).

 

2. NUMERUS CLAUSUS NA EXECUÇÃO PENAL

A teoria dos numerus clausus na execução penal tenta alertar sobre a importância de os magistrados se atentarem sobre as condições do local para onde estão mandando os custodiados. Pela ótica desta teoria, a prisão deve comportar até o número exato da capacidade prevista de presos, portanto, para ingressar um preso, outro deveria sair. Essa ideia foi proposta em 1989 pelo deputado francês Gilbert Bonnemaison ao Ministério da Justiça daquele país. (COLNAGO CABRAL, 2019). Desde então, o assunto ainda não é debatido com aprofundamento necessário pela doutrina brasileira (VALOIS, 2019). 

O ministro do STF Ricardo Lewandowski destaca na ADPF 347 / 2015 MC que o desrespeito à capacidade do cárcere coloca o custodiado numa “situação muito mais gravosa do que a sentença determina” (p. 111). A afirmação do magistrado não tange apenas ao que preceitua o inciso XLVIII, do art. 5º da CF/88[6] sobre o cumprimento da pena ser em locais condizentes com a natureza do delito e a situação do autor, mas também versa sobre a dignidade do preso, direito tão escasso no sistema prisional.

Essa omissão do poder público não se restringe à esfera administrativa, mas também legislativa. Desde 2013 tramitam no Congresso Nacional projetos de leis que visam a alteração da LEP. O PLS 513/2013[7], apresentado inicialmente no Senado Federal, objetiva alterar dispositivos da LEP incluindo, dentre outros pontos, normas que coadunam com a teoria dos numerus clausus. A inclusão do art. 114-A veda, por exemplo, no caput, “a acomodação de presos nos estabelecimentos penais em número superior à sua capacidade”. Os parágrafos propõem, como forma de cumprimento a tal dispositivo, a realização de mutirões carcerários e concessão de benefícios pelo juiz de execução penal aos custodiados[8]. De imediato, percebe-se que o projeto de lei, neste dispositivo, não estabelece critérios para a antecipação da progressão (COLNAGO CABRAL, 2019).

Em 2017, o Senado aprovou o PLS 513, quando foi encaminhado para a Câmara dos Deputados. O agora PL 9.054/2017 aguarda Criação de Comissão Temporária pela Mesa Diretora da Casa[9]. A morosidade na aprovação de atualizações da LEP que reforcem o direito do custodiado e tentem minimizar o sofrimento do cárcere demonstra a falta de zelo em garantir os direitos dos presos. É preciso entender que não estamos falando em benefícios, termo que traz consigo uma carga de relativização (VALOIS, 2020). O direito penal e a execução penal têm dentre os princípios a legalidade estrita e a taxatividade que devem sustentar as decisões, estando sempre relacionadas à realidade. Não se pode conceber a letra da lei à parte do real que lhe deve obediência.

Num julgado de sua relatoria[10], o ministro do STF Gilmar Mendes destacou a importância do PLS em questão. O recurso extraordinário citado tratava do cumprimento de pena em regime fechado na hipótese de inexistir vaga. Nessas situações, o magistrado propôs três soluções: saída antecipada do sentenciado no regime, liberdade eletronicamente monitorada e cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride no regime para o regime aberto.

Essa preocupação de juízes com a situação do preso demonstra um intento de fazer com que o Direito Penal dialogue eficazmente com a realidade. O desrespeito a um direito básico – dignidade humana – expõe o conflito alardeado por Zaffaroni (2018) entre a legitimidade e a legalidade. Para o argentino, “o discurso jurídico-penal seria racional se fosse coerente e verdadeiro” (p. 16), ou seja, ao mesmo tempo que se deve agir dentro dos limites legais (princípio da legalidade penal), o Estado não deve se apartar do ser humano, na sua mais complexa concepção.  

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como é perceptível, em se tratando de sistema prisional, o Brasil desrespeita as leis da física, matemática e as feitas pelo próprio legislador pátrio. O cárcere se tornou a “solução” para problemas complexos que há anos afligem a sociedade. Ineficiência da segurança pública, criminalidade, homicídios e roubos são algumas dessas mazelas que os governantes tentam solucionar aumentando a população carcerária, acreditando que as celas podem esconder a ineficiência de lidar de maneira eficaz com os problemas históricos.

A teoria dos numerus clausus transcende as barreiras frias da aritmética e do espaço-tempo e atinge a noção da dignidade da pessoa humana. É urgente que a doutrina e os atores da justiça aprofundem as discussões sobre formas de evitar a superlotação no sistema carcerário. O debate deve ser amplo e com a complexidade que o tema exige. A ideia de pena como ressocialização se tornou uma quimera no Brasil. A pena como somente retribuição tende a ser desumana. De nada adianta aumentar o número de vagas nas prisões com o pretenso objetivo de conferir o respeito à vida alheia sem soluções mais profundas e estruturais.

A discussão ultrapassa o sistema carcerário com suas diversas problemáticas e deve atingir a sociedade. O trabalho de mudança deve focar na estrutura social. Um esforço que exige um debate complexo com possíveis soluções também amplas. O amontoamento de seres humanos em cubículos ou a ampliação das celas não têm se mostrado as soluções adequadas.

 

Notas e Referências

[1] Lei 7.210, de 11 de julho de 1984

[2] Um dos principais representantes da Escola Clássica do Direito Penal

[3] A ADPF foi proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)

[4]   Art. 38 do Código Penal (Lei 7.209/1984 que alterou a lei 2.848/1940): O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.

[5] Art. 3º da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984): “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.

[6] Art. 5º, XLVIII, CF/88 - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;

[7] O PLS foi proposto pelo então senador Renan Calheiros (MDB/AL) em 2013.  

[8] Art. 114-A. É vedada a acomodação de presos nos estabelecimentos penais em número superior à sua capacidade.

§1º Sempre que atingido o limite, será realizado mutirão carcerário pela corregedoria respectiva.

§2º Havendo presos além da capacidade do estabelecimento, o juízo da execução deverá antecipar a concessão de benefícios aos presos cujo requisito temporal esteja mais próximo de ser preenchido.

§3º Os mutirões carcerários com a finalidade de redução da população carcerária deverão priorizar a liberdade dos presos sem sentença há mais de 90 (noventa) dias da data da prisão e os presos por crimes sem violência contra a pessoa, aos quais se poderão aplicar, se o caso justificar, medidas cautelares alternativas à prisão.

[9] Para acompanhar a tramitação do PL: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2160836

[10] Recurso Extraordinário 641.320/2016 RS

 

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 9.054, de 08 de novembro de 2017. Brasília: Câmara dos Deputados, 2017. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1619253&filename=PL+9054/2017>. Acesso em: abr. 2021.

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______. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF: STF inicia julgamento de ação que pede providências para crise prisional. Disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298600>. Acesso em: abr.2021.

______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 641.320/RS. Cumprimento de pena em regime fechado, na hipótese de inexistir vaga em estabelecimento adequado a seu regime. Reclamante: Ministério Público do Rio Grande do Sul. Reclamado: Luciano da Silva Moraes. Relator: Min. Gilmar Mendes, 11 de maio de 2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?idDocumento=11436372>. Acesso em: abr. 2021.

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