Novilíngua e os direitos humanos

27/07/2017

Por Guilherme Alcântara – 27/07/2017

Em A Ética da Liberdade, Murray N. Rothbard defende uma concepção de direitos humanos restrita aos direitos de propriedade. Segundo o autor, “esses direitos perdem sua incondicionalidade e clareza e se tornam confusos e vulneráveis quando os direitos de propriedade não são usados como padrão”[1]. A proposta de Rothbard é interessante e merece uma análise mais detida no que tange à sua viabilidade. O que quero ressaltar neste texto é a compreensão do que é linguagem que subjaz à argumentação de Rothbard.

Trata-se de uma concepção de linguagem, a mais tradicional, que remonta a Platão. Desde o Crátilo, existe uma profunda tensão entre palavras e coisas: qual delas teria “vindo primeiro”? Será que cada coisa possui um nome natural, ou estamos livres para “combinar entre nós” como as designaremos? O Crátilo termina em aporia, mas estas perguntas ilustrarão duas grandes doutrinas da linguagem: naturalismo e convencionalismo. Aristóteles, Agostinho, Ockam, Descartes, Hobbes, Locke, Rousseau, todos bebem desta fonte, digamos, bipolar.

Naturalismo e convencionalismo, apesar de suas diferenças, possuem um ponto em comum: ambos cindem palavras e coisas. A função das palavras, independente de surgir antes ou depois da coisa, é de instrumento de designação, razão pela qual podemos incluir naturalismo e convencionalismo no “pacote” da tradição designativa da linguagem. O último arauto desta concepção é o Tratado Lógico-Filosófico de Ludwig Wittgenstein, expressando que, mediante a linguagem, “fazemo-nos figurações dos fatos” (Proposição 2.1), que funcionam como “padrão de medida que se aplica à realidade” (Proposição 2.1512, grifo meu).

Na distopia 1984, de George Orwell (Eric Arthur Blair, socialista crítico dos regimes totalitários), um dos projetos mais ambiciosos do Partido Ingsoc é a novilíngua, a língua do Partido. A obra literária traz o personagem Syme, amigo do protagonista Winston Smith, filólogo da equipe responsável pela edição dos Dicionários da Novilíngua. Em um trecho emblemático do livro, este personagem diz:

"- […] Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar novas palavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras - às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos reduzindo a língua à expressão mais simples."

A quem deseja reduzir a língua à “expressão mais simples” pouco importa o problema “de quem veio primeiro: a palavra ou a coisa”, que movimentava a tradição designativa da linguagem. É possível assim agradar a naturalista e convencionalistas. Obviamente, o projeto de “criação” de uma língua é um projeto convencionalista, que aposta na (re)modelação da realidade através da (re)modelação da linguagem. Ainda assim, separa realidade e linguagem, tornando esta um mero objeto, instrumento para designar as coisas do mundo.

"- É lindo, destruir palavras. Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, que justificação existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. "Bom", por exemplo. Se temos a palavra "bom," para que precisamos de "mau"? "Imbom" faz o mesmo efeito – e melhor, porque é exatamente oposta, enquanto que mau não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais forte para dizer "bom", para que dispôr de toda uma série de vagas e inúteis palavras como "excelente" e"esplêndido" etc. e tal? "Plusbom" corresponde à necessidade, ou "dupliplusbom" se queres algo inda mais forte. Naturalmente, já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade será descrito por seis palavras - ou melhor, uma única. Não vês que beleza, Winston? Naturalmente, foi idéia do Grande Irmão".

A ânsia de reduzir a linguagem ao elemento mais simples na filosofia contemporânea tem sua maior representação na obra de Ludwig Wittgenstein. Ou melhor, do “primeiro” Wittgenstein ou o Wittgenstein do Tratado, o que iguala simplicidade do signo com determinabilidade do sentido. O Wittgenstein crente que o maior problema da filosofia até o séc. XX foi a falta de uma linguagem simbólica que excluísse a possibilidade de palavras designarem “coisas” diferentes, ou da mesma “coisas” possuir vários nomes, e obedecesse à sintaxe lógica (Proposições nº 3.23 a 3.235 do Tratactus).

Esse Wittgenstein foi enterrado, em prol de um futuro alternativo ao de 1984, contudo, pelo próprio Wittgenstein, que posteriormente (e postumamente) publica uma série de livros de crítica ao Tratado, como Da certeza, O caderno azul e o mais importante: Investigações filosóficas. Ora, o que o filólogo Syme – e o Ingsoc – busca(m) com a novilíngua é “limpar a linguagem” de “impurezas”, tornando as palavras “cristalinas” e transparentes.

O problema é que a própria tradição em que se funda o projeto da novilíngua, essa tradição platônica que vive da luta entre naturalistas e convencionalistas, é uma tradição que ignora o caráter expressivo da linguagem, algo posto à luz pelos poetas alemães do século XIX Hamman, Herder e Humboldt e, no século XX, desenvolvido pelo próprio Wittgenstein (pós-Tratado) e Heidegger. A partir daí, a linguagem não designa o mundo. "Na verdade já estamos tão habituados e inseridos na linguagem como estamos no mundo", diz Gadamer[2]. Só se tem acesso ao mundo pela linguagem e só se fala porque se tem um mundo.

O que podemos chamar de tradição expressiva da linguagem, portanto, coloca a seguinte pergunta em 1984: a que mundo a novilíngua dá acesso?

"- Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já, na Décima Primeira Edição, não estamos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre um pouco menor. Naturalmente, mesmo em nosso tempo, não há motivo nem desculpa para cometer uma crimidéia. É apenas uma questão de disciplina, controle da realidade. Mas no futuro não será preciso nem isso. A Revolução se completará quando a língua for perfeita. Novilíngua é Ingsoc e Ingsoc é Novilíngua, - agregou com uma espécie desatisfação mística. - Nunca te ocorreu, Winston, que por volta do ano de 2050, o mais tardar, não viverá um único ser humano capaz de compreender esta nossa palestra? - Exceto... - começou Winston, em tom de dúvida, mas parou de repente. Estivera a pique de dizer "Exceto os proles", mas controlou- se, sem ter plena certeza de que essa observação fosse ortodoxa. Syme, todavia, adivinhara o que ele quisera dizer.- Os proles não são seres humanos, - disse ele, descuidado. - Por volta de 2050, ou talvez mais cêdo, todo verdadeiro conhecimento da Anticlíngua terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruida, inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron - só existirão em versões Novilíngua, não apenas transformados em algo diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer "liberdade é escravidão se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar… não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência."

1984 é uma fantasia. É impossível “criar” uma língua conscientemente mediante atualizações dos dicionários, justamente pelo caráter não instrumental da linguagem, que ressalta a tradição expressiva da linguagem. É o homem que vive dela e não o inverso e, assim, ela ultrapassa nosso âmbito consciente. Mas será que neste mesmo nível do inconsciente uma novilíngua não tem sido trabalhada na “vida real”? O professor Lenio Streck alerta, neste sentido, para o fenômeno da “periguetização” da linguagem e, logo, do Direito. “Princípios” como o da “ponderação”, “proporcionalidade”, “verdade real”, “efetividade”, “instrumentalidade das formas” servem hoje como “conceitos sem coisas”, que “nadificam” a linguagem jurídica. Tudo se pondera; o juiz sentencia como quer diante da verdade real; as garantias processuais vão abaixo em nome da instrumentalidade das formas etc.[3]

Também seu professor, Luis Alberto Warat chama a atenção para a função castradora da linguagem jurídica, que assim como pretende o Ingsoc com a novilíngua, nos faz engolir “uma cosmovisão imobilizadora da sociedade[4]. E efetivamente, palavras como “proporcionalidade”, “ponderação”, “verdade real”, “confiança do juiz da causa”, “instrumentalidade das formas”, tornam o juiz do séc. XXI um consumidor de significados castrados, e ele próprio, assim, um sujeito castrado, incapaz de sentir a necessidade do confronto com o instituído, da exposição dos poderes estabelecidos frente aos conflitos que os desestabilizam. Ora, esse é o projeto do Ingsoc! Isso é ortodoxia: não pensar.

Contra este projeto totalitário, que pretende dar um único sentido ou um sentido unívoco aos termos jurídicos, ou então impor uma cosmovisão unívoca ao interlocutor, propõe Warat uma semiologia do poder, que procura “problematizar os sentidos instituintes das práticas de cidadania”, as “significações do Direito na imaginação coletiva”, uma “semiologia do porvir que enfrente, de maneira criativa e superadora [e não como fazem Rothbard e cia ao fazer “regredir” o conceito de direitos humanos], a crise sentido que se instalou como ordem de idealização na modernidade”[5].

Trata-se de subverter a última proposição do Tratado de Wittgenstein. Se antes “o que não se pode(ria) falar, deve(r)-se(ia) calar”, agora devemos buscar meios de dizer o que não se pode falar. Fazer falar os “sem voz” parece ser o maior desafio de uma autêntica teoria dos direitos humanos. Só assim evitaremos a previsão de 1984.


Notas e Referências:

[1] Rothbard, Murray N. A Ética da Liberdade. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 177..

[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, vol. II: complementos e índices. Trad. Ênio Paulo Giachini. Petrópolis/RJ: Ed. Vozes. 2002, p. 177.

[3] Mais em: http://www.conjur.com.br/2012-mai-24/senso-incomum-conhecimento-fast-food-homer-simpson-direito; http://emporiododireito.com.br/a-censura-da-expressao-linguageira-e-a-hipertrofia-do-direito-penal-a-servico-do-politicamente-correto-por-agostinho-ramalho-marques-neto/; http://www.conjur.com.br/2017-jan-12/senso-incomum-30-cirurgias-juridicas-dao-errado-medicos.

[4] WARAT. Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.

[5] WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem, 2 ed. Porto Alegre: SAFE, 1985, p. 106-107.


Guilherme Alcântara. . Guilherme Alcântara é advogado. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Toledo Prudente Centro Universitário. Estagiário docente na mesma instituição. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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