NOVAMENTE A DESASTRADA PEC 50. SOBRE A AUTORIDADE DO STF E A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

30/09/2023

Coluna Por Supuesto

Fazem já alguns anos que no Brasil foi lançado abertamente o desafio de se manifestar rebeldia ante o projeto constitucional e a proposta política de convivência democrática para a comunidade brasileira edificada em 1988. Esa postura está embutida e disseminada por setores que ocuparam o executivo e hoje participam do cenário do Congresso. E parte dessa provocação constante consiste em colocar em teste a capacidade jurídica do STF de fazer respeitar a Constituição.

Desde logo, também já faz um bom tempo que o STF não demonstra a docilidade ante o Legislativo nem ante o Executivo que os democratas do século XVIII que subsistem no Brasil pretendem que tenha. Pelo contrário, o STF tem firmado trincheiras técnicas, fazendo escolhas caso a caso e estabelecendo prioridades. Advirta-se que nem sempre as escolhas são do agrado de todos e todas, nem mesmo daqueles que defendem sua decisão na causa pautada. E isso já foi notado pelos mais variados setores, incluindo os mais conservadores.    

Esta situação não é fortuita. Há fatores cumulados que possibilitaram a situação e que já comentamos em outras colunas. Mas, vamos hoje partir da base de que os Ministros do STF, órgão arquitetado para ser o guardião da Constituição, não saem pelas ruas procurando leis ou atos normativos para declara-os inconstitucionais nem fazem avocatória de processos. O STF julga quando provocado, prévio reconhecimento de legitimidade. E deve julgar porque é assim que obedece o mandamento constitucional expresso de efetivar o acesso à justiça. Até porque a lei não pode excluir lesão ou ameaça a nenhum direito e ele é órgão de cúpula do Judiciário e Corte Constitucional.

Por outro lado, é de se reconhecer que para o STF não representa nenhum ganho se envolver em provas de força com qualquer outro órgão, muito menos com o Legislativo e o Executivo. Não precisa de vitrine nem depende de favorecimento popular ainda que em fases da história atue em sentido majoritário ou contra-majoritário. E, finalmente, que o próprio STF tem reconhecido que julga no processo, mas que não tem a última palavra no debate público. 

Ainda assim, o desafio lançado no Brasil não é propositivo em sentido alvissareiro, senão em retrocesso. A onda de desinformação sobre o alcance de decisões do STF, as manifestações rasas e sem argumentos sólidos ou em sentido contrário ao interesse público, oriundas de atingidos com as suas principais decisões, somente ratificam o descompromisso destes setores, e não raro, como hoje de apresenta, de alguns legisladores, com a construção de uma sociedade más inclusiva e pautada por claros objetivos estampados no artigo 3º da Carta em vigor.

A situação é peculiar dentro do Constitucionalismo da América Latina. Logo dos conhecidos e infelizes fatos de 8 de janeiro deste ano, a Corte no Brasil cumpre função que em tese, dentro do constitucionalismo como modelo de funcionamento estatal fundado na desconcentração do poder político e a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais, somente se realiza em situação peculiares e excepcionais.

Apontava o juiz Learned Hand na Corte dos Estados Unidos que “uma sociedade tão destroçada e na qual o espírito de moderação desapareceu, nenhum juiz pode salvar, porém, em uma sociedade onde este espírito prospera, nenhum juiz tem necessidade de a salvar”. O caso é que logo de uma sociedade castigada pela pandemia e o descaso governamental da época para com o direito à vida, cabe ao STF decidir sobre a responsabilidade penal de pessoas que intentaram praticar um autêntico assalto às instituições de governo. O objetivo naquele momento era, a partir do caos, desconstituir desde o resultado eleitoral até provocar consequências em detrimento da intangibilidade constitucional e o Estado fundado no Direito. E antes e sempre coube e cabe ao STF decidir em casos nos quais o “perigo claro e atual” sustentado por Oliver Holmes, também nos EUA, com relação á liberdade de expressão, se tornou concreto e específico.

O papel do STF é de se pronunciar sobre a proteção da integridade da Constituição em seus princípios basilares e no que tange ao amparo dos direitos fundamentais de qualquer pessoa ou coletividade. Não consiste em orientar sobre a discricionaridade política que exige o cumprimento das funções típicas de executar e legislar, a não ser quando chamado a fazê-lo, em sede de controle de constitucionalidade em circunstâncias especialíssimas. 

Lembro que no ano passado, nesta mesma coluna, em 20 de junho, advertíamos sobre o fato de que um grupo de deputados federais buscavam desesperadamente assinaturas para uma PEC cujo teor consistia em que as decisões do STF que não fossem unânimes ou que fossem consideradas “extrapolando os limites constitucionais” fossem revogadas pelo Congresso Nacional.

Argumentamos na oportunidade, que uma leitura rasa e literal do artigo 60 da CF de 1988 permite enxergar limitações explícitas às matérias que podem ser objeto de EC. As cláusulas pétreas estampadas no parágrafo 4º do artigo 60 incluem, no inciso III a “separação de funções”. O Constituinte, dizíamos, foi explícito ao determinar que qualquer PEC tendente a abolir a separação de funções ou qualquer cláusula pétrea, “não será objeto de deliberação”. Ou seja, existe uma vedação de debater, de abordar o tema por qualquer uma das Casas.

O fato é que passados alguns meses, se apresenta novamente a PEC, agora PEC 50/2023, para alterar o leque de competências do Congresso estipuladas no artigo 49 da Carta brasileira, dentro do marco de uma espécie de contestação a decisões do STF, especialmente a decisão no RE 1.017.365 SC, relatada pelo Min. Edson Fachin, que determinou que a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam os indígenas no Brasil independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988. 

À apresentação da PEC deve-se também acrescentar a aprovação do projeto de lei no Senado que abertamente cria o marco temporal, que o chefe do Executivo diz que vetará.

Da leitura da justificação da PEC se desprendem pontos por sobre quais vale a pena refletir. O primeiro deles, sem dúvida, o da separação e em particular os freios e contrapesos. E estes elementos se entrelaçam com a própria essência do Constitucionalismo.

Como muito bem explica Élisabeth Zoller, no nascedouro da formulação constitucionalista emergiu a doutrina que eleva a Constituição ao grau de lei culminante (Paramount law), reinando a título supremo (supreme Law of the Land) e invalidando pelas vias judiciais toda a norma jurídica inferior contrária, incluindo a lei ordinária feita pelo legislador (judicial review). Por outro lado, esse constitucionalismo, desde suas origens foi colocado concretamente em aplicação com a criação de um órgão jurisdicional que lhe deu forma institucional. Trata-se do Supremo Tribunal, que ocupa uma posição excepcional na organização do sistema, [1]

Em elemento importantíssimo para explicar a ideia de um “Supremo” tribunal está relacionado com a realidade estrutural do federalismo. Para manter a União, no nascimento do modelo de organização política e administrativa, era necessário despolitizar ou, dito de outra forma, jurisdicionalizar os conflitos entre os Estados-membros e os conflitos entre estes e a União. A Constituição, que consagra o pacto federativo, devia e deve ser entendida como ato jurídico e não apenas político, ordenando o sistema de maneira que um órgão com capacidade de dizer o direito assuma a competência para decidir sobre as causas surgidas, sob o domínio da Constituição.

Logo, na decisão em 1803 do caso Marbury vs Madison a Corte Suprema dos Estados Unidos reafirmou sua supremacia, declarando oponível ao Congresso e ao Presidente o princípio da garantia judiciaria da supremacia constitucional que inicialmente foi afirmada com relação aos Estados. Esta situação somente modificou-se na esteira das relações entre a Corte e os demais órgãos quando se adotou a postura de autolimitação (self-restraint) nos tempos das políticas de New Deal.

No Brasil, nenhum dos casos recentes que tem ocasionado desconforto em setores mais conservadores comportariam uma política de reserva jurisdicional ou de auto-restrição: aborto, marco temporal, porte de substâncias para uso pessoal, decretos sobre armas, casamento homoafetivo.

O STF tem um terreno de operações dentro da democracia de massas. Sua apresentação como instituição antidemocrática não se sustenta porque na democracia de massas adota uma política jurisprudencial, que tem variado ao longo do tempo, mas que sem dúvida no período mais recente demonstra diligência e compreensão para gerenciar temas que o Congresso não assume a não ser por reação dos rebeldes.

Portanto, não há censura alguma ao Congresso ao se opinar, vetar ou se ingressar com as ações de controle necessárias para preservar a Carta de 1988. Tampouco parece haver nenhum ânimo no STF de se opor ao Congresso enquanto corpo representativo, mas sim de atuar como o vigilante judiciário com completa independência. 

Se conforme essa PEC, o STF somente puder interpretar a Constituição com medo de que o Congresso o acuse posteriormente de “ultrapassar os limites” então a Corte não teria força nenhuma, perturbando-se não somente a Constituição, mas todo o sistema de direito construído. Mas para os setores rebeldes, não se explica, ao que parece, nenhum desses perigos nem dessa história.  Por Supuesto, dentro dos estudos do constitucionalismo da América Latina, também vale àquela máxima de que o Brasil não é para principiantes.

 

Notas e referências

[1] Esplendores e Misérias do Constitucionalismo Subjudice. N. 12, 1998. P. 3.

 

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