Nova posição sobre a hipossuficiência financeira na judicialização da saúde – Por Clenio Jair Schulze

20/08/2016

Todas as decisões do Supremo Tribunal Federal – STF assinalam que é possível o fornecimento de medicamentos a pessoas hipossuficientes financeiramente[1].

E as pessoas que não são carentes e que possuem condições econômicas para adquirir os medicamentos ou tratamentos podem postular judicialmente o seu fornecimento gratuito pelo Estado?

As decisões do STF não abordam este ponto. Inexiste, portanto, posição da Corte Suprema sobre o tema.

De qualquer forma, é possível afirmar que na via administrativa, ou seja, perante o SUS, não se pode negar o atendimento ao cidadão alegando que não se trata de pessoa carente. É que os direitos sociais não podem, de plano, ser excluídos das pessoas a partir de critérios exclusivamente econômicos.

Na via judicial, contudo, a situação pode mudar. É que no processo judicial geralmente são postulados medicamentos, produtos e tecnologias que não estão incorporados, ou seja, não são fornecimentos voluntariamente pelo Sistema Único de Saúde. Assim, abre-se espaço para exigir a hipossuficiência financeira como requisito para a procedência do pedido veiculado em processo judicial.

Neste sentido já decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. LEGITIMIDADE PASSIVA DOS ENTES DA FEDERAÇÃO. ADEQUAÇÃO E NECESSIDADE. HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO CONFIGURADA. HONORÁRIOS. 1) União, Estados e Municípios são responsáveis solidários pelo fornecimento de prestações relacionadas à saúde. 2) Faz jus ao fornecimento de medicamento o paciente que comprova a necessidade e a adequação de uso através da prova pericial. 3) A princípio, a hipossuficiência financeira do paciente não é requisito para a concessão ou não de prestação de saúde. Entretanto, o autor não pode ser considerado hipossuficiente para fins de prestação de medicamentos, face ao seu amplo patrimônio e ao baixo custo do medicamento requerido. 4) Afastada a condenação em litigância de má-fé e de restituição dos valores em face da revogação da liminar. 5) Honorários advocatícios mantidos no valor fixado. [grifado]  (TRF4, AC 5000730-32.2010.404.7208, QUARTA TURMA, Relator CANDIDO ALFREDO SILVA LEAL JUNIOR, juntado aos autos em 10/07/2015)

Do voto do relator é interessante transcrever o seguinte trecho: “pleiteando o autor medicação diversa daquela fornecida na rede pública, deve comprovar a efetiva necessidade do fármaco requerido além da impossibilidade de uso e a inadequação da medicação disponibilizada pelo SUS. In casu, entretanto, tenho que também não restou cabalmente comprovada a indispensabilidade do tratamento prescrito por médico particular, tampouco de que o autor já fez uso de todas as alternativas terapeuticas na rede pública. E, nessa circunstância, optando o autor por medicamento diverso, deve arcar com os custos, mormente se possui condições para tanto.”

Em outro caso o entendimento também não foi diferente:

ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO ONCOLÓGICO. LEGITIMIDADE DAS PARTES. SUBMISSÃO A TRATAMENTO EM CACON/UNACON. NECESSIDADE. HIPOSSUFICIÊNCIA. 1. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido da responsabilidade solidária da União, Estados e Municípios nas ações onde se postula fornecimento público de medicamentos ou tratamento médico, sendo que a solidariedade não induz litisconsórcio passivo necessário, mas facultativo, cabendo à parte autora a escolha daquele contra quem deseja litigar, sem obrigatoriedade de inclusão dos demais. 2. Os estabelecimentos credenciados junto à Rede de Atenção Oncológica não detém legitimidade para figurar no polo passivo das ações onde postulado a disponibilização de tratamento pelo Poder Público. 3. Necessária a submissão, do paciente que pretende obter o fornecimento de medicamento oncológico, a tratamento perante unidades de CACON ou UNACON. Precedentes. 4. A princípio, a hipossuficiência financeira do paciente não é requisito para a concessão ou não de prestação de saúde. Entretanto, no caso específico, o autor não pode ser considerado hipossuficiente para fins de prestação de medicamentos, em face da discrepância entre seu patrimônio e o valor do fármaco postulado. [grifado] (TRF4, AC 5002054-69.2015.404.7212, TERCEIRA TURMA, Relator MARCUS HOLZ, juntado aos autos em 27/07/2016)

Estas decisões trazem nova reflexão à judicialização da saúde. Ou seja, considerando a inexorável escassez de recursos orçamentários do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), a exigência da hipossuficiência se apresenta como elemento de preservação do princípio da isonomia, já que não caberia ao SUS fornecer na via judicial medicamento a pessoa com razoável poder aquisitivo em detrimento e em prejuízo das pessoas carentes (que muitas vezes não possuem sequer condições de acessar o Judiciário).

A questão, entretanto, não é pacífica. Envolve a análise das teorias do custo dos direitos, da reserva do possível, da concretização dos direitos sociais e muitos outros aspectos da ciência jurídica que sofrem a mutações inerentes ao tempo (momento da história) e ao espaço (país).


Notas e Referências:  

[1] DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. SEPARAÇÃO DOS PODERES. VIOLAÇÃO. NÃO CONFIGURADA. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. PRECEDENTES. HIPOSSUFICIÊNCIA. SÚMULA 279/STF. 1. É firme o entendimento deste Tribunal de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde. 2. O acórdão recorrido também está alinhado à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, reafirmada no julgamento do RE 855.178-RG, Rel. Min. Luiz Fux, no sentido de que constitui obrigação solidária dos entes federativos o dever de fornecimento gratuito de tratamentos e de medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes. 3. A controvérsia relativa à hipossuficiência da parte ora agravada demandaria a reapreciação do conjunto fático-probatório dos autos, o que não é viável em sede de recurso extraordinário, nos termos da Súmula 279/STF. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, ARE 894085 AgR/SP, Rel Min. ROBERTO BARROSO, j. 15/12/2015, Primeira Turma, DJe 16-02-2016)

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO À SAÚDE. SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERATIVOS. TRATAMENTO NÃO PREVISTO PELO SUS. FORNECIMENTO PELO PODER PÚBLICO. PRECEDENTES. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que, apesar do caráter meramente programático atribuído ao art. 196 da Constituição Federal, o Estado não pode se eximir do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde dos cidadãos. O fornecimento gratuito de tratamentos e medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes é obrigação solidária de todos os entes federativos, podendo ser pleiteado de qualquer deles, União, Estados, Distrito Federal ou Municípios (Tema 793). O Supremo Tribunal Federal tem se orientado no sentido de ser possível ao Judiciário a determinação de fornecimento de medicamento não incluído na lista padronizada fornecida pelo SUS, desde que reste comprovação de que não haja nela opção de tratamento eficaz para a enfermidade. Precedentes. Para dissentir da conclusão do Tribunal de origem quanto à comprovação da necessidade de tratamento não previsto pelo SUS faz-se necessário o reexame dos fatos e provas constantes dos autos, providência inviável neste momento processual (Súmula 279/STF). Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, RE 831385 AgR/RS, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, j. 17/03/2015, Primeira Turma, DJe 31-03-2015)

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. MEDICAMENTOS. FORNECIMENTO A PACIENTES CARENTES. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. I - O acórdão recorrido decidiu a questão dos autos com base na legislação processual que visa assegurar o cumprimento das decisões judiciais. Inadmissibilidade do RE, porquanto a ofensa à Constituição, se existente, seria indireta. II - A disciplina do art. 100 da CF cuida do regime especial dos precatórios, tendo aplicação somente nas hipóteses de execução de sentença condenatória, o que não é o caso dos autos. Inaplicável o dispositivo constitucional, não se verifica a apontada violação à Constituição Federal. III - Possibilidade de bloqueio de valores a fim de assegurar o fornecimento gratuito de medicamentos em favor de pessoas hipossuficientes. Precedentes. IV - Agravo regimental improvido. (STF, AI 553712 AgR/RS, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 19/05/2009, Primeira Turma, DJe 04-06-2009)

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS A PACIENTE HIPOSSUFICIENTE. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. SÚMULA N. 636 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. Paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita. Obrigação do Estado de fornecê-los. Precedentes. 2. Incidência da Súmula n. 636 do STF: "não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida". 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, AI 616551 AgR/GO, Rel Min. EROS GRAU, j. 23/10/2007, Segunda Turma, DJe 29-11-2007)

PACIENTE PORTADOR DE HEPATOPATIA CRÔNICA, CHILD C, DIABETES MELLITUS TIPO 2 E INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA NÃO DIALÍTICA – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEIOS INDISPENSÁVEIS AO TRATAMENTO E À PRESERVAÇÃO DA SAÚDE DE PESSOAS CARENTES – DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, “CAPUT”, E 196) – PRECEDENTES (STF) – RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DAS PESSOAS POLÍTICAS QUE INTEGRAM O ESTADO FEDERAL BRASILEIRO – CONSEQUENTE POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DA AÇÃO CONTRA UM, ALGUNS OU TODOS OS ENTES ESTATAIS – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (STF, ARE 812424 AgR/PI, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 05/08/2014, Segunda Turma, DJe 22-08-2014)


 

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