Notas sobre o ônus probatório do réu que deixa de apresentar documentos para realização da perícia

17/06/2020

Trata, o presente artigo, de elucidação sobre um tema relevante no que diz respeito a uma situação específica e recorrente (lamentavelmente), nos processos judiciais, qual seja, a do que acontece se a parte a quem incumbia fornecer documentação para que a perícia fosse realizada deixa de fazê-lo.

Explica-se.

Por hipótese em determinada demanda societária, em que o sócio minoritário foi retirado da sociedade e busca saber os seus haveres, para receber os valores corretos decorrentes da sua saída da empresa, diante da falta de affectio societatis ocorrido no momento em que esse deixou de existir. Pois bem. Sobre competir ao autor, sócio retirante o ônus de comprovar os fatos constitutivos de seu direito, não se paira dúvida[1]. De que não possui a documentação necessária para que seus haveres possam ser esclarecidos em perícia, provavelmente é o caso (pelo menos é o típico caso de sócio minoritário que é retirado sumariamente da empresa). Então, peculiar situação é a desse sócio minoritário, qual seja: a esse compete se desincumbir de comprovar seu direito, contudo não detém acesso a documentação para essa elucidação.

O que demonstraremos no presente artigo é o fato de que há fatiamento das incumbências sobre o ônus de prova para o presente caso, uma vez que por mais que seja de competência do autor comprovar os fatos constitutivos de seu direito, compete ao réu disponibilizar toda a documentação para que o perito possa esclarecer os fatos. E, também, como deve ocorrer os impactos sobre o ônus no decorrer do processo, que, em falta de determinação expressa, deve possuir por norte a interpretação extensiva disposta na Seção sobre Exibição de documento[2].

Pois bem, o autor imbuído na missão de comprovar o que alegou requer a perícia contábil e deposita o valor dos honorários periciais a fim de elucidar o valor de seus haveres, competindo réu apresentar a documentação que o perito entender necessária para aludidos esclarecimentos.

A questão sobre a qual o presente artigo pretende se debruçar é a seguinte: Como deve ser aplicado o ônus probatório se o réu deixar de apresentar a documentação que a perícia entender por necessária para elucidar os fatos para os quais a perícia foi designada?

O quanto delineado abaixo possui por premissa de, na ausência de existir específico tratamento no CPC/15, que se aplique por interpretação extensiva o quanto disposto sobre exibição de documentos, que converge com a teoria da possibilidade de inversão do ônus da prova.

Deve-se verificar algumas coisas para que se possa concluir se houve desincumbência do ônus ou não, vejamos: se o réu deixa de apresentar a documentação, dentre os motivos, por (i) aduzir sem fundamento não possui-la; (ii) aduzir fundamentalmente não possui-la; (iii) aduzir e comprovar ser impossível obter a documentação ou qualquer outra que possa servir a perícia e refletir os haveres do sócio retirante. Vamos por partes.

Antes de tudo, a teoria estática e dinâmica sobre o ônus probatória ínsita ao CPC/15 dispõe que ao autor compete comprovar os fatos constitutivos de seu direito, assim como ao réu comprovar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos de seu direito.[3]

Aliado a isso, há a possibilidade de, em sendo preenchidos os requisitos do art. 373 parágrafos primeiro[4], ocorrer inversão do ônus da carga probatória, incumbindo a parte diversa da normalmente esperada pela sua desincumbência. Essa inversão do ônus probatório deve ocorrer em tempo de a parte que recebeu aludido ônus por decisão judicial possa desse se desincumbir, garantindo além do devido processo legal, contraditório, ampla defesa, ampla possibilidade de produção probatória.

Pois bem. Superada uma base legislativa sobre o tema, vamos adentrar a hipótese em concreto.

Como se está diante de caso em que é extremamente mais fácil (isso se não for impossível para o autor) para o réu obter a documentação necessária para esclarecimento da lide, não obstante o ônus pelo fato constitutivo continue sendo do autor, pode ocorrer a inversão de carga do ônus probatório, da seguinte forma: o ônus financeiro sobre a prova continua sendo do autor, tendo esse que realizar o pagamento dos honorários do perito, contudo competindo ao réu apresentar toda a documentação que o perito considerar necessária para o esclarecimento do fato, no caso o valor da empresa no momento da falta de affectio societatis para que se possa verificar os haveres do autor.

A postura do réu, diante desse cenário, como deduzido acima, pode se dar basicamente de três formas, e as analisaremos sob o prisma da carga do ônus probatória, sua desincumbência e eventual forma de solução, principalmente para as posturas que não se curvam ao quanto disposto no art. 378 do CPC/15[5].

Para o primeiro e esperado caso, em um processo cooperativo, o réu que deseja que o processo chegue a um justo fim apresenta toda a documentação que o perito solicita, e após a elaboração do laudo e eventuais impugnações ou complementação, este é concluído e chega-se aos haveres do autor. E para esse caso, por mais que seja a postura esperada, não deixa de ser louvável. Os fatos serão elucidados pelo perito com a análise da documentação e é o que se espera.

São as outras possíveis posturas do réu que são um pouco mais problemáticas, vejamos.

Para a segunda possibilidade de forma de atuação do réu, este aduz não possuir a documentação requerida pelo perito, sem, contudo, fundamentar sua alegação. Vejamos, em primeiro lugar, o processo é cooperativo, isso significa que compete a todas as partes prestar assistência para que se chegue ao esclarecimento sobre os fatos para que possa o julgador aplicar o direito à espécie. Se o réu deixa de apresentar a documentação solicitada, e sequer fundamenta de forma consistente o motivo para tanto, se está diante de caso em que deixa o réu de se desincumbir de seu ônus.

Então, tendo-se por premissa o exemplo trabalhado, para essa possibilidade, o réu não simplesmente deixa de apresentar a documentação solicitada, que é seu ônus, como também não traz elementos que demonstrem que deixou de fazê-lo por motivo justo. Assim, não se desincumbe de seu ônus.

Repisa-se: o ônus pelo pagamento da perícia é do autor, de quem busca demonstrar os fatos constitutivos de seu direito, embora tenha uma boa noção sobre seus haveres, tendo colacionado elementos que o evidenciem, contudo o ônus sobre a disponibilização de documentos diz respeito ao réu que é quem os possui ou deveria possuir.[6]

Para essa situação, o réu não se desincumbiu de seu ônus.

Já, para a terceira possibilidade de atuação, o réu alega e comprova não ser possível obter a documentação requisitada pelo perito para elucidação do fato, assim como, ao tentar buscar soluções equivalentes, verifica também não ser possível, demonstrando (atuando na mais escorreita boa-fé e de forma cooperativa, portanto).

Para essa situação, em primeiro lugar se deve verificar se não seria obrigação do réu deter os documentos, em sendo continua não tendo se desincumbido de seu ônus. De outro giro, se na guarda desses documentos não fosse sua obrigação, então deve ser analisada se aludida comprovação é legitima ou não. Não sendo legitima, continua tendo descumprido seu ônus e deve o julgador decidir o caso tendo por certo que o réu não se desincumbiu de seu ônus. Por outro lado, em sendo legitima a fundamentação, então deve-se verificar se existem elementos equivalentes que possam levar a mesma conclusão ou a conclusão mais aproximada possível do que aconteceria se os documentos tivessem sido apresentados. Inclusive, sobre o tema, por interpretação extensiva, Marinoni[7]:

Como já dito, a parte que possui o documento e não o entrega é penalizada com a formação de uma presunção iuris tantum, ou, em outros termos, sofre a inversão do ônus da prova.

Por exemplo, no caso hipotético, havendo outras formas de verificação dos haveres do autor, esses devem ser prestigiados, a fim de esclarecer os fatos da perícia, seja com base no faturamento, seja com base em documentos colacionados pelas partes que possam indicar valores que esclareçam os haveres. Vale dizer, diante da impossibilidade dos melhores documentos para elucidação dos haveres, a perícia deve apoiar no melhor que conseguir extrair, seja no que diz respeito a material para esclarecimento do fato, seja através de técnicas razoáveis para que possa esclarecer os fatos.

Assim, ou se está diante de motivo legitimo para recusa de apresentação da documentação, e deve o autor buscar outros meios em cooperação com os atores processuais (e para esse caso são: Juiz, Autor, Réu, Perito), ou não se trata de motivo legitimo e o réu não se desincumbiu de seu ônus, devendo levar a mesma solução da possibilidade anterior. A perícia deve se apoiar no melhor que conseguir extrair, seja no que diz respeito a material para esclarecimento do fato, seja através de técnicas razoáveis para seu esclarecimento.

E a quarta posição possível do réu, aduz ser impossível obter a documentação ou outra equivalente para que se possa elucidar sobre os haveres do sócio retirante autor da demanda.

Em havendo verdadeira impossibilidade de meio para alcançar a documentação/informação a fim de alimentar a perícia para esclarecer os fatos, se essa impossibilidade pode ser atribuída a parte que deveria apresentar os documentos, então o ônus de sua desincumbência não pode lhe beneficiar; por outro lado, se foram fatos que refogem a sua responsabilidade, então o ônus não pode ser seu de forma isolada.

Assim como na primeira conclusão do caso acima, para o presente caso, devem as partes buscar outros meios para esclarecer como entender o valor dos haveres do autor, sócio retirante, para que possa o caso concreto ser resolvido.

Em resumo, se o réu, imbuído no ônus de apresentar documentos para realização de perícia, deixa de fazê-lo sem motivo razoável, não se desincumbiu de seu ônus e deve arcar com as consequências de sua desincumbência; se deixa de fazê-lo por motivo legitimo, busca-se outra forma de esclarecer os fatos desde que sirvam para a produção probatória; caso se trate de impossível ônus de se desincumbir, então está liberado do ônus (desde que não seja legalmente obrigado a deter as documentação, por óbvio) o ônus deve deixar de ser seu, devendo ser buscado pelas partes forma de a perícia alcançar o fim a que se destina.

 

 

Notas e Referências

[1] Art. 373. O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

[2] Artigos 396 a 404 do CPC/15.

[3] Cabe em coluna própria a distinção entre negar a existência de fato, controvertendo-o e deixando a cargo de quem aduziu sua comprovação, e contrapor com elementos fáticos que buscam o reconhecimento de impedimento, modificação ou extinção do direito da contraparte.

[4] Art. 373: § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

[5] Art. 378. Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade.

[6] De forma ilustrativa, para caso de apuração de haveres para dissolução parcial de sociedade, é extremamente esperável que ocorra perícia contábil, principalmente se desde o início da demanda se sabia (diante da manifestação expressa do autor) e foi controvertido esse fato pelo réu que não reconhece o valor a que o autor atribuiu a sua causa. Assim, deve dignar-se o réu a manter a documentação para que a perícia contábil possa ser feita, ou seja, minimamente os extratos financeiros devem ser mantidos, e isso é fato notório, então, deixar de apresentar sob o fundamento de não possuir a movimentação financeira significa que não se desincumbiu de seu ônus.

[7] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e Convicção. 3ª ed. RT. P. 223

 

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