Notas sobre o cenário ideal à aplicação jurisdicional da Teoria Consequencialista

14/05/2020

Há muito se defende que o Direito é mais que a mera literalidade da lei positiva, como propunha a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen.

Embora não se negue as inúmeras contribuições da Escola Jurídica Positivista, é fato que no campo epistemológico, a pureza almejada negava a notória dependência do Direito com considerações de natureza política, sociais ou ideológicas, próprias do mundo ôntico.

Assim, se as regras positivadas nascem “da e para” a sociedade, ignorar a evidente e necessária dialética entre esses dois mundos é irracional.

Deveras, a realidade afastada do Direito é palco para injustiças e abusividades; o Direito afastado da sociedade é instrumento ineficaz e carente de legitimidade.

Não foi por outra razão que o filósofo Miguel Reale, em sua festejada Teoria Tridimensional do Direito, enaltecendo a imperiosa ligação do Direito com outros sistemas, tratou de relacionar a norma jurídica com o fato (plano do ser) e os valores, como vetores dotados de maleabilidade interpretativa e concretizadores de ideais subjetivos.

A visão dinâmica e aberta do Direito, fruto do diálogo entre regras, axiomas e realidade, permitiu a superação do espectro estático da Teoria Pura do Direito e do Positivismo Jurídico cartesiano e matemático.

A preocupação com a regulação do comportamento humano à luz da racionalidade prática foi o grande legado de Miguel Reale: “Ora, é impossível focalizar-se o problema da funcionalidade de dever ser e ser, como assunto de Teoria do Direito, sem necessariamente se ultrapassar a esfera da Lógica Jurídica, ou seja, sem se correlacionar o que está prescrito na norma jurídica in abstracto com o que ela efetivamente representa no plano concreto dos comportamentos humanos”.1

Sob tal prisma, o magistrado, que há muito deixou de ser a “boca da lei”, um replicador de dispositivos legais, exerce um papel fundamental de realizador do Direito.

Nesse sentir, a atividade jurisdicional pressupõe um diálogo efetivo entre a lei positiva, as particularidades do fato e os valores/princípios envolvidos e merecedores da devida ponderação.

De outra forma e na onda da inteligência artificial, poder-se-ia substituir o magistrado por meras máquinas replicadoras de dispositivos legais, em evidente afastamento do ideal de justiça, do sentimento de segurança jurídica e da razão de ser do Poder Judiciário.

Desde as mais tenras origens do Direito, nos primórdios da Roma Antiga, já se entendia a atividade julgadora como resposta à análise dos fatos que contextualizavam a lide.

A palavra “sentença” provinha do verbo latino sentire, enquanto resultado dos sentimentos e sensações experimentados pelo juiz ao analisar as circunstâncias da causa, apto a lhe permitir proferir a decisão.

Como advertia Eduardo Couture, “a sentença não é um pedaço de lógica, nem tampouco uma norma pura. A sentença é uma obra humana, uma criação da inteligência e da vontade, isto é, uma criatura do espírito do homem”2.

A atividade de internalizar as peculiaridades das causas e submetê-las ao filtro da ampla legalidade é obrigatória ao julgador, somente captada no registro dos fundamentos decisórios, ou seja, das causas de decidir contidas na fundamentação.

A sentença, pois, é um ato personalíssimo, composto de motivos fáticos e jurídicos.

Com maior rigor, nos dias contemporâneos, em que se vive sob o manto do Estado de Direito, reclama-se do julgador não só a aplicação da lei, mas a proteção dos valores eleitos pela Constituição Federal, estampados como objetivos e princípios da República Federativa do Brasil, elencados nos seus artigos 3º e 4º 3.

É, pois, inconcebível que as sentenças proferidas pelo Poder Judiciário ainda ignorem a imperativa integração dos elementos axiológico, fático e técnico formal na experiência jurídica.

Segundo Miguel Reale, tal prática “revela-nos a precariedade de qualquer compreensão do direito isoladamente como fato, valor ou norma, e, de maneira especial, o equívoco de uma compreensão do direito como pura forma suscetível de albergar com total indiferença as infinitas e conflitantes possibilidades dos interesses humanos”4.

De igual forma, ainda que a decisão se edifique sobre princípios, a escolha de valores abstratos que não encontrem o adequado encaixe fático, igualmente não atende a adequada atividade julgadora estatal.

Na tentativa de aproximar ainda mais o julgador das vicissitudes da vida mundana, no ano de 2018, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro foi alterada pela Lei Federal 13.655 para nela incluir o festejado artigo 205 de acordo com o qual se prescreve que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”.

Com isso, quis-se evitar o uso indiscriminado de abstrações nas razões de decidir, sem o devido comprometimento com as circunstâncias sobre as quais se deitam o conflito posto.

Abominação ainda maior é a decisão baseada em “valores jurídicos abstratos”, a partir de fórmulas genéricas como argumento de autoridade hermenêutica, sem se atentar aos seus efeitos práticos, ou seja, como o 

jurisdicionado e a sociedade irá suportá-la no mundo real.

Mais do que uma reverência ao consequencialismo jurídico, o referido dispositivo se remete e reforça a premissa de que o julgador também é chamado a ponderar, de forma fundamentada, as possíveis consequências do édito que proclama, permitindo-se a sindicabilidade e censurabilidade das razões decisórias, além de avocar responsabilidade sobre os seus reflexos extra muros do Poder Judiciário.

Não seria descomedido afirmar que a teoria consequencialista humaniza o julgador e o aproxima do dever de condicionar a Lei às circunstâncias de cada sociedade, a partir de motivados “processos de opção ou de preferência entre os múltiplos caminhos que se entreabrem no momento de qualquer realização de valores 6”.

Em conjunturas extremas, de evidente insegurança social, econômica, política e também jurídico, o Poder Judiciário tem potencializada essa mister responsabilidade.

Daí o ensejo de o parágrafo único do referido artigo 20 da LINDB prescrever que “a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.

Os tempos atuais são de incertezas de infinitas naturezas: o ano de 2020 revelou uma pandemia sanitária que acomete todos os cantos do planeta, trazendo com ela múltiplos embates que já estão a desaguar nas portas do Poder Judiciário pátrio.

Não há contexto mais adequado, ideal, a se exigir a cautela e a atenção dos Magistrados, que, atentos têm se posicionado de forma salutar, sob o enfoque do lema consequencialista do Direito.

Em recente decisão proferida pelo Juízo da Vara da Fazenda do Foro Regional de Pinhas, Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Paraná7, concedeu-se medida liminar em favor de unidade franqueada de grande rede de chocolates para o fim de suspender as obrigações decorrentes do contrato de franquia e vencidas a partir da decretação da pandemia, bem como a suspensão de cobrança de taxas de royalties pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias e a 

abstenção da Ré Franqueadora de enviar produtos para atualização de estoque.

Atenta ao contexto em que se postulou a tutela de urgência, a decisão fez constar que: “Assim que o Governo Federal decretou estado de calamidade pública no país (DL nº 06/2020), os primeiros efeitos econômicos decorrentes do distanciamento social e fechamento dos estabelecimentos comerciais foram percebidos, tais como a paralisação de contratos de trabalho e demissões. Ainda que nos Estados tenham sido adotadas medidas econômicas emergenciais para preservação do emprego e dos ganhos dos indivíduos (como é o caso da MP 936/2020 e do PL 1.066/2020), o que se tem verificado é a perda de empregos em massa e a redução dos ganhos pessoais e faturamento de empresas em decorrência da pandemia.”

Destacou que: “Os efeitos econômicos têm sido sentidos com especial força no comércio varejista pela soma de pelo menos dois fatores importante: i) a quase inexistente circulação de pessoas diminuiu sensivelmente as vendas diárias, mesmo daquelas lojas que se mantiveram abertas; ii) o estado de cautela causado pelo medo do desemprego e as incertezas quanto ao tamanho da crise que se avizinha, automaticamente freiam o consumo das famílias em relação à itens não essenciais. Essa queda de faturamento, para pequenos comerciantes, sabidamente dependentes do caixa diário, gera o caos financeiro que inevitavelmente redunda na quebra.”

A louvável decisão também se pautou em estudos estatísticos realizados pelo Sebrae e concluiu, citando a Lei de Instrução às normas do Direito Brasileiro que: “No atual cenário, as decisões do poder judiciário devem considerar estas normas, como medida de resguardo do interesse coletivo e individual; o que também se afigura no caso concreto, onde mister e razoável que seja concedido o pedido da autora para a suspensão do contrato e obrigações dele decorrentes, haja vista a evidência do baixo faturamento da autora, no seu maior período de vendas, em comparação ao ano anterior; e que impede o adimplemento das obrigações decorrentes do contrato de franquia firmado com a ré, fato este cujo nexo decorre da crise econômica resultante da pandemia do Covid-19.”

A referida decisão, e tantos outros exemplos, têm demonstrado a feliz e constante aproximação do Poder Judiciário dos preceitos consequencialistas e da imperativa justaposição das particularidades da lide às vicissitudes do contexto em que se insere.

Que os magistrados continuem a trilhar esses caminhos lúcidos, eis que, por opção constitucional, a decisão jurisdicional é a única que guarda a aptidão de tornar definitivos os dramas do ser humano. Que o façam de forma sensata e razoável.

 

Notas e Referências

1 Reale, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.

2 Couture, Eduardo J. Introdução ao estudo do processo civil. Tradução de Mozart Víctor Russomano, Rio de Janeiro: José Konfino – Editor, 1951, p.86.

3 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I - independência nacional;

II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos;

IV - não-intervenção;

V - igualdade entre os Estados;

VI - defesa da paz;

VII - solução pacífica dos conflitos;

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X - concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

4 Reale, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013.

5 Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

 

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