Coordenador: Marcos Catalan
A Constituição Federal de 1988 é clara quanto ao chamado direito à cultura. Em seu artigo 215, a Carta Magna garante a todo cidadão brasileiro o “pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”. Afirma, ainda, que “apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” e que o Estado brasileiro “protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
A proteção à cultura não é um fenômeno somente brasileiro: aparece em outras legislações do mundo. Para ficarmos apenas em duas, veja-se o artigo 27 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que garante a proteção aos direitos culturais de grupos étnicos minoritários; e o artigo 15 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que garante ao indivíduo o direito de participar da vida cultural de seu país.
Diante de tantas menções à proteção à cultura, à arte e ao patrimônio dos países, a pergunta é: proteção contra o quê? Por que se fala na proteção à cultura nacional? O que é a cultura que deve ser protegida pelo Estado? Por que deve o Estado protegê-la? Quem a ameaça? O direito à cultura pode ser algo novo nos ordenamentos jurídicos, mas a ideia de que a cultura está ameaçada preocupa filósofos, sociólogos e ensaístas há já algum tempo.
Um deles é o escritor peruano Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura de 2010. Em seu ensaio “A civilização do espetáculo” (2013), ele aponta a publicidade, o consumismo desenfreado e a superficialidade daí decorrente como grandes inimigos da cultura – e, quando Llosa fala de “cultura”, fala, sobretudo, da que ele conheceu quando começou sua formação, aquela cujos produtos “pretendiam transcender o tempo presente, durar, continuar vivos para as gerações futuras [...] (2013, p.26)”. A ela seguiu-se a celebração do mero entretenimento, que não busca a perenidade, e sim apenas o consumo instantâneo e fugaz.
O quadro que Llosa descreve é sombrio:
Quando a cultura relega o exercício de pensar ao desvão das coisas fora de moda e substitui ideias por imagens, os produtos literários e artísticos são promovidos, aceitos ou rejeitados pelas técnicas publicitárias e pelos reflexos condicionados de um público que carece de defesas intelectuais e sensíveis para detectar os contrabandos e extorsões de que é vítima. [...] (2013, p.33-34)
Sobre o papel da publicidade neste contexto, ele diz:
A publicidade exerce influência decisiva sobre os gostos, a sensibilidade, a imaginação e os costumes. A função antes desempenhada, nesse âmbito, por sistemas filosóficos, crenças religiosas, ideologias e doutrinas [...] hoje é exercida pelos anônimos ‘diretores de criação’ das agências publicitárias” (2013, p.33).
Fica, portanto, clara a diferenciação entre o entretenimento, que a sociedade do espetáculo proporciona aos cidadãos, e a cultura propriamente dita, que esta sociedade ameaça. É esta última que deve ser alvo de proteção.
O ponto de vista de Llosa encontra eco em um pensador com formação intelectual completamente distinta da sua: o marxista Guy Debord. Segundo ele, a sociedade do espetáculo tende a transformar a cultura – no sentido que Llosa emprega o termo – numa mercadoria. Mas não em uma mercadoria qualquer: para Debord, ela será mesmo a mercadoria vedete da sociedade espetacular (1997, p.126), com um papel decisivo a cumprir: tornar-se a ciência geral da falsa consciência (DEBORD, 1997, p.127), que pouco tem a dizer acerca do homem, mas muito sobre as representações ideológicas que a sociedade do espetáculo cria.
São estes perigos que fazem Llosa, um liberal que geralmente desconfia da ação moderadora do Estado, apoiar a proteção (e a promoção) estatal da cultura e da arte (2013, p.117). O mundo moderno, onde o consumo é a norma e o espetáculo eclipsa o verdadeiro cultivo do espírito, é um adversário poderoso para a subsistência da cultura - e fala-se mesmo de uma batalha mundial entre os defensores da cultura e os do livre-mercado (PAGER, 2011).
O liberal Llosa escolheu lado nesta batalha; o marxista Debord, também. E nós também devemos nos posicionar.
Notas e Referências:
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Trad. Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
PAGER, Sean A.. Beyond Culture vs. Commerce: Decentralizing Cultural Protection to Promote Diversity Through Trade, 2011. Disponível em: <http://digitalcommons.law.msu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1417&context=facpubs>. Acesso em: 13 dez. 2016.
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