NOTAS SOBRE A JURISPRUDÊNCIA DO STJ: HÁ GRATUIDADE DE JUSTIÇA AO RÉU CITADO FICTAMENTE?    

25/06/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

Imagine-se a seguinte situação: alguém é indicado como parte passiva de um processo, mas não sendo localizado de forma alguma, e após os procedimentos próprios, é citado por edital. Essa pessoa, agora efetivamente ré, passa a ser representada por meio de curadoria especial[1], função exercida pela Defensoria Pública ou por advogado(a) dativo(a). É possível imaginar que haverá uma série de peculiaridades nessa representação. De toda forma, o processo segue, até que é preciso interpor um Recurso Especial. Porém, esse é inadmito porque considerado deserto em razão da ausência de apresentação do preparo recursal, visto que não se presume a gratuidade de justiça do réu revel citado fictamente representado por curador especial. O fundamento: evidentemente, não é possível que o curador especial verifique a situação financeira da parte.

Esse, até pouco tempo, mesmo depois da vigência do CPC de 2015, era o entendimento do STJ, que variou entre a não concessão no caso da curadoria especial exercida pela advocacia dativa ou pela Defensorias, e a não concessão da curadoria exercida pela advocacia dativa[2], como nos exemplos abaixo:

PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECOLHIMENTO DO PREPARO NÃO COMPROVADO NO ATO DA INTERPOSIÇÃO DO RECURSO ESPECIAL. DESERÇÃO. RÉU CITADO POR EDITAL. REVELIA. DEFENSORIA PÚBLICA. CURADORA ESPECIAL. PRESUNÇÃO ACERCA DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA.

  1. Não é possível a concessão de assistência judiciária gratuita ao réu citado por edital que, quedando-se revel, passou a ser defendido por Defensor Público na qualidade de curador especial, pois inexiste nos autos a comprovação da hipossuficiência da parte, visto que, na hipótese de citação ficta, não cabe presumir a miserabilidade da parte e o curador, ainda que membro da Defensoria, não possui condições de conhecer ou demonstrar a situação econômica da parte ora agravante, muito menos requerer, em nome desta, a gratuidade de justiça. Precedentes.
  2. Agravo interno a que se nega provimento.

(AgInt no AREsp 978.895/SP, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/06/2018, DJe 19/06/2018)

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DEFESA PATROCINADA POR CURADOR ESPECIAL. NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA 115 DO STJ. PREPARO NÃO DEMONSTRADO. LITIGANTE REVEL. IMPOSSIBILIDADE DE PRESUNÇÃO ACERCA DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO PARCIALMENTE PROVIDO.

  1. É de ser afastada a incidência da Súmula 115 do STJ, porque o recorrente encontra-se assistido por curador especial nomeado pelo juízo.
  2. Ocorrendo nomeação de Curador Especial, o preparo do recurso somente pode ser relevado se o nomeado for a Defensoria Pública ou se deferido o benefício da gratuidade de justiça ao réu revel, o que, na espécie, não ocorreu. Precedentes.
  3. O custeio da causa pela Defensoria Pública não expressa de forma automática concessão dos benefícios da justiça gratuita, devendo ser observadas as condições necessárias para a obtenção de seus efeitos previstas em lei. (AgInt AREsp 1.012.133/RJ, relator o Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/03/2017, DJe 30/03/2017) 4. Agravo interno parcialmente provido para afastar a incidência da Súmula 115 do STJ, mantendo a decisão da Presidência desta Corte no tocante à deserção do recurso especial.

(AgRg no REsp 1555758/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 09/08/2017).

A relevância do NCPC está na presunção de hipossuficiência das pessoas naturais. Assim, não havendo elementos nos autos que suscitam dúvidas sobre suas condições financeiras, que podem ser trazidos pela parte adversária em impugnação, consolida-se a gratuidade requerida, até que surjam fatos novos (art. 98 e ss. do CPC).

Por esse caminho, se não existirem indícios de patrimônio razoável daquele alguém que se tornou réu, então não deveria haver óbice à concessão da gratuidade de justiça[3]. Mas essa é só uma linha de pensamento, que ao final não resolve os problemas: e se o réu fosse pessoa jurídica? Ou se existirem indícios de um patrimônio vultoso, ficará o réu citado fictamente sem representação?

Ainda sob um viés prático, seria preciso voltar ao artigo 98 do CPC. O leitor mais atento deve ter notado que, na segunda ementa citada, noticiou-se a possibilidade de concessão da gratuidade no juízo de origem, benefício estendido até o final do processo, em tese. Na linha daquele julgado, se a gratuidade de justiça não foi concedida antes, não cabe ao STJ fazê-lo.

Ocorre que o parágrafo 5º do art. 98  prevê a possibilidade de concessão da gratuidade para atos específicos e, principalmente, é possível em sede recursal, conforme o art. 99. Ainda, seria o caso do pagamento das custas, como o preparo, ao final do processo, em razão da representação exercida pela Defensoria Pública (art. 91 do CPC).[4]

Então, finalmente, retorna-se à questão da não presunção da gratuidade de justiça no caso do réu citado fictamente. Em especial, soa estranho que o fundamento da exigência do preparo seja redundante: “não é possível contatar o réu revel”. Disso se conclui que é possível um equívoco na interpretação da lei.

De fato, não há previsão expressa pela concessão da gratuidade de justiça ao réu revel sob curadoria especial. Sequer a Defensoria é isenta do pagamento de custas[5]. Entretanto, é até mais simples lidar com lacunas do que com proibições.

Nesse sentido, a solução estaria na percepção de que não deve haver resistência ao munus público, próprio da curadoria especial, seja pela Defensoria no exercício de uma de suas funções[6], ou pela advocacia dativa.

Próximo a esse entendimento vêm se orientando julgados mais recentes do STJ, que dispensam o preparo recursal em razão da curadoria especial exercida pela Defensoria Pública. Contudo, neles não há discussão direta sobre o ponto da concessão, ou não, da gratuidade de justiça, e sim sobre a observância a preceitos constitucionais:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RÉU CITADO POR EDITAL. REVEL. RECURSO INTERPOSTO PELA DEFENSORIA PÚBLICA COMO CURADORA ESPECIAL. DESERÇÃO. INOCORRÊNCIA. RECURSO PROVIDO.

  1. Tendo em vista os princípios do contraditório e da ampla defesa, o recurso interposto pela Defensoria Pública, na qualidade de curadora especial, está dispensado do pagamento de preparo.
  2. Embargos de divergência providos.

(EAREsp 978.895/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/12/2018, DJe 04/02/2019).

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RÉU AUSENTE. DEFENSORIA PÚBLICA.

CURADORA ESPECIAL. PREPARO. DISPENSA.

  1. "São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (...) exercer a curadoria especial nos casos previstos em lei" (art. 4º, XVI, da Lei Complementar n. 80, de 12/12/1994).
  2. Hipótese em que a exigência do preparo para o conhecimento de recurso interposto pela Defensoria Pública, na condição de curadora especial de réu ausente, representa indevido obstáculo ao livre exercício do munus público atribuído à instituição. 3. Inteligência do princípio constitucional da ampla defesa, o qual também deve ser assegurado na instância recursal.
  3. Agravo interno provido.

(AgInt no AREsp 1233877/ES, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, Rel. p/ Acórdão Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/08/2018, DJe 13/09/2018).

Sem dúvida, trata-se de um avanço a superação daquele entendimento engessado.  É perceptível a tendência de ampliação do espectro de atuação da Defensoria no sentido de salvaguardar indivíduos e coletividades de todo tipo de vulnerabilidade[7], além de que a citação ficta implica uma vulnerabilidade processual, ou pelo menos uma “fragilidade involuntária”[8] no processo.

Contudo, deve-se insistir: nem todos os problemas serão resolvidos (por exemplo: a dispensa seria deferida também à advocacia dativa enquanto curadora especial?). Mas poderiam ser, pois os mesmos argumentos que sustentam a dispensa do preparo recursal serviriam perfeitamente à tese da concessão da gratuidade de justiça, que afinal serve à garantia do acesso à justiça e, assim, da ampla defesa e do contraditório.

Principalmente, porque há no CPC disposições suficientes para compreender que a curadoria especial é a única forma de defesa do réu citado fictamente, e de que a gratuidade de justiça é um instrumento amplo de acesso à justiça[9], além de ser inócuo o silogismo de que não é possível aferir a hipossuficiência do réu revel.

Para a Têmis, tanto faz se o réu é revel ou não, pois todos têm, ou deveriam ter, direito de acesso à justiça.

 

Notas e Referências

[1]             Trata-se de um tipo específico de curadoria, prevista no art. 72, inciso II, do CPC, e é distinta daquela exercida em benefício da pessoa incapaz (sendo que atualmente a incapacidade absoluta ocorre apenas para os menores de 16 anos, conforme a Lei nº 13.146/2015).

[2]               Fiz um mapeamento das análises do STJ e analisei mais detidamente o assunto. O estudo completo ainda não foi publicado, mas deixo link para consulta ao quadro-resumo da pesquisa sobre as decisões.

[3]             Pode-se perguntar como se saberia o patrimônio de um réu revel. Respondo: pela busca de bens em uma execução, ou como medida cautelar na fase de conhecimento.

[4]             Sugestão de Pericles Batista da Silva em Defensoria Pública e curadoria especial no Superior Tribunal de Justiça: a obrigatoriedade de recolhimento das custas de preparo como requisito de admissibilidade do recurso especial”, artigo da Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal.

[5]             Conforme se conclui do art. 91 do CPC. Tampouco consta a Defensoria Pública no rol de isentos da Lei nº 9.289/1996 (art. 4º), que dispõe sobre as custas devidas à União em causas na Justiça Federal.

[6]             Lei Complementar nº 80/1994, art. 4º, inciso XVI.

[7]             Vale conferir: “Princípios institucionais da Defensoria Pública” de Diogo Esteves e Franklyn Roger Silva e “Custos Vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis”, de Edilson Santana, Jorge Bheron e Maurilio Casas Maia.

[8]             Conforme entende Fernanda Tartuce em “Igualdade e vulnerabilidade no processo civil”, 2012, p. 420.

[9]             Pode-se alegar que essa premissa não é verdadeira porque as pessoas jurídicas só fazem jus ao benefício ao comprovarem a hipossuficiência. Nesse caso, porém, opera uma lógica inversa, haja vista que a pessoa jurídica é geralmente constituída às voltas de patrimônio, daí que não se pode pressupor a hipossuficiência. O caso do réu revel, ainda que se trate de pessoa jurídica, é distinto, pois a tutela se dá diretamente sobre a fragilidade processual em que se encontra.

 

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