Passados mais de um ano e quatro meses da entrada em vigor do Código de Processo Civil atual (CPC-15), algumas interpretações sobre ele ainda não alcançaram unicidade na doutrina, talvez por ser essa a magia do processo civil, estando este sempre em evolução, a demandar atenção redobrada daqueles que com ele trabalham. Uma das mudanças mais significativas instituídas pelo CPC-15 está na ampliação dos limites objetivos da coisa julgada (art. 503, §§ 1º e 2º), merecendo, inclusive, regramento de direito transitório, conforme dicção do art. 1.054 do CPC-15, evitando-se, assim, maiores problemas acerca de tão controverso instituto (coisa julgada).
Analisando-se o referido artigo 503 do CPC-15, percebe-se que houve uma ampliação dos limites objetivos da coisa julgada, que passou a englobar, também, a resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, desde que preenchidos certos requisitos cumulativos previstos no mesmo dispositivo (Enunciado nº 313 do Fórum Permanente de Processualistas Civil – FPPC).
Diante dessa ampliação dos limites objetivos da coisa julgada, passando a se tornar imutável e indiscutível também a resolução da questão prejudicial, algumas controvérsias surgiram ao real alcance do dispositivo em comento, dentre elas, se houve realmente a extinção da ação declaratória incidental no atual diploma processual[1], bem como se a imutabilidade alcançaria a fundamentação da decisão judicial[2] ou se o juiz, ao decidir a questão prejudicial, deveria fazê-lo na parte dispositiva da sentença.[3]
Essas duas controvérsias merecem uma atenção mais detida, não sem antes se delimitar o real alcance do que seria uma questão prejudicial, pois “qualificam-se como prejudiciais as questões atinentes à existência, inexistência ou modo de ser de uma relação ou situação jurídica que, embora sem constituir propriamente o objeto da pretensão formulada (mérito da causa), são relevantes para a solução desse mérito”.[4] Vale dizer, a questão prejudicial, para os fins do § 1º do art. 503 do CPC-15, deve ser entendida como aquela que poderia ser objeto de uma ação declaratória (art. 19, I e II do CPC-15).
Por não mais haver necessidade de uma ação declaratória com a finalidade de ampliar o objeto do processo, tendo em vista a opção legislativa de dar um regramento diferente aos limites objetivos da coisa julgada no atual diploma, alcançando a resolução de questão prejudicial, parte da doutrina vem afirmando que a ação declaratória incidental foi extinta no CPC-15.[5]
Não parece, contudo, que essa seja a melhor interpretação. Não há dúvidas, que a ação declaratória pode ter como objeto a existência, inexistência ou o modo de ser de uma relação jurídica, mas também não há que seu objeto pode ser a autenticidade ou falsidade de um documento (art. 19, II do CPC-15), persistindo, nesta hipótese, a ação declaratória incidental (art. 430, parágrafo único e art. 433 do CPC-15), como também no caso da reconvenção com natureza declaratória, que pode ter como objeto a questão prejudicial incidental controvertida.[6]
De que forma for, a ação declaratória incidental não mais é a regra no atual diploma processual, embora não haja qualquer limitação na utilização de uma ação declaratória autônoma que tenha como objeto uma questão prejudicial incidental de outro processo, com o que, por via oblíqua, alcança-se o mesmo desiderato da ação declaratória incidental, vale dizer, o julgamento simultâneo das duas demandas.
Isso porque haverá conexão por prejudicialidade entre a demanda originária e a demanda declaratória, o que impõe a reunião das causas para processamento simultâneo (art. 55 do CPC-15), não havendo o que se falar em ausência de interesse no ajuizamento da ação declaratória, tendo em vista o regime da coisa julgada para a questão principal é mais rigoroso.[7] Sobre o tema, tem-se o enunciado n. 111 do FPPC: “persiste o interesse no ajuizamento de ação declaratória quanto à questão prejudicial incidental”.
Persiste ainda, em atenção à delimitação realizada alhures, a necessidade de se analisar onde a resolução da questão prejudicial incidental deve ser realizada, se na fundamentação da sentença, deslocando-se o limite objetivo também para esse elemento da decisão, ou se, a despeito de não ser necessário pedido expresso para a análise da questão prejudicial, a resolução da questão prejudicial deve ser realizada na parte dispositiva da sentença, em atenção ao que preceitua o art. 504 do CPC-15.
Em outras palavras: seria o § 1º do art. 503 exceção ao que preceitua o art. 504, todos do CPC-15 ou para que a coisa julgada pudesse se estender à resolução da questão prejudicial incidental esta resolução deve ser realizada na parte dispositiva da sentença?
Como já afirmado, não há necessidade de pedido expresso da parte para que a extensão ocorra, ela se dá automaticamente, na esteira do que prevê o enunciado n. 165 do FPPC: “Independentemente de provocação, a análise da questão prejudicial incidental, desde que preencha os pressupostos dos parágrafos do art. 503, está sujeita à coisa julgada”. Ou seja, a coisa julgada é efeito que decorre automaticamente da lei, independentemente da vontade do órgão julgador ou de pedido da parte.
Isso não quer dizer, contudo, que não mereça atenção o aparente conflito entre o § 1º do art. 503 com o art. 504, todos do CPC-15. Afinal, onde será resolvida a questão prejudicial incidental, na fundamentação ou no dispositivo da sentença? Como já anunciado, a doutrina diverge no ponto, com fortes argumentos em ambos os sentidos.
Alexandre Câmara considera que a inclusão da questão prejudicial como objeto do processo (questão principal) se dá por força de um pedido implícito. Havendo o preenchimento dos pressupostos dos §§ 1º e 2º do art. 503 do CPC-15 (juízo competente em razão da matéria e da pessoa, não tendo sido revel o réu, tendo havido contraditório prévio e efetivo e não existindo limitações probatórias ou cognitivas que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial), deve o juiz proferir decisão sobre a questão prejudicial, “a qual integrará a parte dispositiva da sentença e, assim, alcançará a autoridade de coisa julgada material”.[8]
Em suma, os limites objetivos da coisa julgada abarcam todas as questões expressamente decididas pela sentença no dispositivo, seja por força de expresso pedido das partes (art. 503, caput), seja por força de indicação do juiz, nos casos em que essa indicação é expressamente permitida pela legislação (art. 503, §§ 1º e 2º). Todas as demais questões decididas na fundamentação não fazem coisa julgada (art. 504).[9]
Contrariando esse entendimento, tem-se o enunciado n. 438 do FPPC: “É desnecessário que a resolução expressa da questão prejudicial incidental esteja no dispositivo da decisão para ter aptidão de fazer coisa julgada”. Nesta linha, “a coisa julgada estende-se à solução da questão prejudicial incidental que tenha sido expressamente decidida na fundamentação da sentença (art. 503, § 1º)”[10].
Prevalecendo o segundo entendimento, a coisa julgada abrangerá a resolução de questão que não era integrante do objeto litigioso do processo, não parecendo correta a interpretação de que isso se dá pela existência de um pedido implícito. Não há necessidade de pedido (nem mesmo implícito) para que a questão prejudicial decidida expressa e incidentalmente no processo seja acobertada pela coisa julgada, esse regramento diferente foi opção do novo diploma processual, não havendo qualquer óbice para essa escolha do legislador.[11]
Ao que parece, a única exigência legal é que, preenchidos os pressupostos, a questão prejudicial seja decidida expressamente. Se essa decisão vai se dar na fundamentação (como é comum em se tratando de resolução de questão prejudicial incidental) ou na parte dispositiva da sentença (como questão principal), é algo sem grande relevância prática, embora permaneça sua importância acadêmica.
Tanto assim o é, que já se vem afirmando que mesmo que a decisão expressa sobre a questão prejudicial não esteja formalmente na parte final do texto da decisão, mesmo assim ela integrará a parte dispositiva da decisão, evitando-se o inconveniente de não ficar claro para as partes (ou terceiros) os limites objetivos da coisa julgada.[12]
Seja lá onde for, na fundamentação ou no dispositivo, a resolução da questão prejudicial incidental será acobertada pela coisa julgada material quando do trânsito em julgado da decisão, sendo, inclusive, cabível ação rescisória para desfazer a resolução da questão prejudicial acobertada pela coisa julgada, conforme o enunciado n. 338 do FPPC: “Cabe ação rescisória para desconstituir a coisa julgada formada sobre a resolução expressa da questão prejudicial incidental”.
Não se procurou colocar um ponto final na discussão, mas apenas lançar as premissas para uma análise mais aprofundada acerca do real alcance da extensão da coisa julgada à resolução de questão prejudicial incidental, embora não pareça desarrazoado defender a ideia da desnecessidade de pedido, ainda que implícito, a transformar a questão incidental em questão principal, pois não foi essa a opção legislativa, que muito se assemelha ao “issue preclusion” do direito norte-americano, tudo a corroborar com a parcela da doutrina que entende que a resolução será realizada na fundamentação da sentença e a coisa julgada a ela se estenderá, não havendo necessidade de que a resolução se dê na parte dispositiva da decisão.
Notas e Referências:
[1] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 637.
[2] DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 533.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. v. 2. São Paulo: RT, 2015, p. 634.
[4] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2 [livro eletrônico]: cognição jurisdicional: processo comum de conhecimento e tutela provisória. 5ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 416
[5] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 636.
[6] DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p.540.
[7] DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p.540.
[8] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p.331
[9] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. v. 2. São Paulo: RT, 2015, p. 634.
[10] DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 533.
DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 534; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. p. 805.
[12] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p.331-332.
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