Ninguém pode ser julgado duas (ou mais) vezes pelo mesmo fato

14/04/2016

Por Jorge Coutinho Paschoal - 14/04/2016

Não pode haver processo criminal para discutir fatos em apreciação ou que foram definitivamente julgados em favor do imputado. Sobretudo em âmbito penal, não é possível haver dupla persecução para apurar eventos fáticos já examinados. Incide, aí, também, com toda a sua força, o princípio do ne bis in idem, previsto no Pacto de São José da Costa Rica (ou Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH)[1].

Tanto a litispendência quanto a coisa julgada visam evitar a duplicidade de processos com o mesmo objeto. Trata-se de pressupostos processuais negativos, ou, utilizando-se de locução técnica preferível, da exigência de originalidade à demanda[2].

No processo penal, interessa o fato (naturalístico) imputado, pouco importando a roupagem jurídica[3] que lhes deem acusador e/ou mesmo o juiz. Haverá litispendência se dois processos forem instaurados para averiguar o mesmo acontecimento, ainda que em um deles seja o acusador o Ministério Público e, em outro, o querelante.

Assim, sendo idêntico o fato, com o mesmo acusado, haverá identidade de demanda, para fins de litispendência e coisa julgada.

Ocorrerá litispendência se um novo procedimento investigatório[4] for proposto quando já estiver em curso um feito anterior (nesse sentido, sintomático o próprio termo litispendência, isto é, lide[5] ainda pendente de apreciação).

Verificada a litispendência logo no início da ação penal, a acusação deve ser rejeitada, por falta de pressuposto processual, consubstanciado na ausência de originalidade da demanda. Caso, mesmo assim, lhe seja dado prosseguimento, os atos eventualmente praticados deverão ser reputados inválidos.

Nem sempre, contudo, havendo litispendência, os atos deverão ser invalidados. Não será possível reconhecer a litispendência quando em um dos feitos já houver prolação de sentença favorável ao acusado, com trânsito em julgado. Trata-se do respeito à coisa soberanamente julgada, ou da vedação de nova persecução penal pelos mesmos fatos, já que ninguém pode ser julgado duas (ou mais) vezes[6].

A jurisprudência, a esse respeito, é bem tranquila, vedando dúplice persecução penal: STJ, HC 36.091/RJ, Rel. Hélio Quaglia Barbosa; STJ, HC 3327-2/SP, Rel. Luiz Vicente Cernicchiaro; STJ, HC 18.078/RJ, Rel. Hamilton Carvalhido; STJ, HC 6059/PA, Rel. José Arnaldo da Fonseca; STF, HC 84253/RO, Rel. Celso de Mello; STF, HC 77909/DF, Rel. Moreira Alves; STF, HC 83346/SP, Rel. Sepúlveda Pertence; STF, HC 86606/MS, Rel. Cármen Lúcia; STF, HC 89592/DF, Rel. Carlos Britto; STF, HC 87.869/CE, Rel. Cezar Peluzo, entre muitos outros.

É importante anotar: a coisa julgada formada, sobretudo em favor do acusado, deve ser respeitada, ainda que assentada em um procedimento que foi posteriormente instaurado em relação a um processo já então em curso, tendo o condão de truncar o seu curso.

O Supremo Tribunal Federal decidiu nessa linha de entendimento, no julgamento do habeas corpus n. 94.982/SP. Nesse precedente, foi exposto na impetração que já havia uma ação penal pública para apurar dado fato, sendo que, ao longo da demanda já deduzida, foi instaurado novo inquérito para apurar idêntico fato; ocorre que, nesse novel procedimento, foi reconhecida a extinção da punibilidade pela decadência do direito de ação (ou seja, apesar de já haver uma ação pública instaurada para apurar mesmo fato, entendeu-se, no inquérito formalizado para também apurá-lo, que o crime seria de ação privada), tendo a decisão transitado em julgado.

No writ impetrado (STF, HC 94982/SP, de relatoria da Min. Cármen Lúcia), sustentou-se a tese de que a coisa julgada formada, mesmo em feito instaurado posteriormente ao processo que já estava em curso (e aqui reside a grande novidade em relação aos demais julgados), teria força suficiente para truncar o andamento do feito anterior, com a qual o Supremo Tribunal Federal concordou[7].

E, mesmo que a decisão tivesse sido equivocada, ao extinguir a punibilidade, ou o procedimento estivesse eivado de algum vício (no caso, o inquérito não pudesse ser instaurado) – considerando que não houve o dolo dos agentes públicos (o erro não foi proposital), nada mais poderia ser feito, em respeito ao caso julgado, pois não será o acusado que deverá pagar por um erro da Justiça.

Daí decorre apenas um dos exemplos da força da coisa julgada penal, que, em si mesma, impede nova persecução penal para apurar os mesmos fatos, constituindo ela, ao lado da litispendência, pressuposto processual no processo penal.

Se o fato já tiver sido julgado (mérito), evidentemente, não se poderá permitir nova ação penal. Para fins garantísticos[8], haverá proibição de dupla persecução penal[9] quando o mérito da demanda já tiver sido analisado antes (sentença condenatória, absolutória ou extintiva da punibilidade[10]), mediante o trânsito em julgado.

Tal opção legislativa teve por fim resguardar a segurança jurídica do cidadão, uma vez que a paz e sossego das pessoas necessitam da firmeza do julgado proferido, sendo que, ao se admitir a rescisão de sentenças favoráveis ao indivíduo, isso pode levar a uma situação de tamanho temor e de tal insegurança jurídica não condizente com um Estado que se pretenda de Direito, arrastando-se as angústias do cidadão processado e julgado por período indeterminado, situação que, por certo, cabe à Justiça repelir.

Tamanha é a magnitude de tal postulado que, ao ver do Professor Miguel Reale Júnior, “se declarada extinta a punibilidade pela morte, e verifica-se que o réu está vivo, não poderá reverter-se a sentença de extinção da punibilidade transitada em julgado[11]. Em que pese a polêmica do exemplo acima citado, objeto de muitos questionamentos (inclusive quanto à própria existência jurídica da decisão que foi proferida, o que, por certo, implicará outras discussões), não se admite, no ordenamento jurídico brasileiro, revisão criminal contra o réu (pro societate)[12].

Portanto, uma vez havendo coisa julgada, e tal fato puder ser constatado logo no início do processo, a acusação deverá ser rejeitada, por falta de pressuposto processual (da ausência de originalidade), com fulcro no artigo 395, inciso II, CPP. Se, mesmo assim, for dado prosseguimento ao feito, deverá ser obstada dupla persecução penal, em homenagem ao ne bis in idem, reconhecendo-se a invalidade dos atos eventualmente praticados[13], respeitando-se a coisa julgada (soberanamente) formada.


Notas e Referências:

[1] Artigo 8.º, 4, da CADH: “O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.

[2] Preferindo o uso de tal termo, originalidade: BREDA, Antonio Acyr. “Efeitos da declaração de nulidades no processo penal”. Revista de Direito Penal e Criminologia, Rio de Janeiro, v. 32, jul.-dez. 1981, p. 121.

[3] Nesse sentido, utilizando esse termo: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo, Saraiva, 2000, vol. 2, p. 599.

[4] Entende-se na jurisprudência, como regra, que não há litispendência entre processo e inquérito policial. O posicionamento, com o devido respeito, não se sustenta, pois, como consta do próprio termo litispendência, o fenômeno ocorrerá sempre que houver “lide” pendente, de forma que isso basta para obstaculizar qualquer instauração de novo procedimento (seja ele um inquérito, seja processo).

[5] Provavelmente, quem não gosta da utilização do uso do termo lide, no processo penal, também deve não apreciar muito o uso do termo litispendência. Sem desconsiderar a polêmica envolvendo o conceito de lide na seara penal, e sem desconhecer o argumento de parte dos estudiosos afirmando ser a lide um dado irrelevante no processo criminal, entende-se o contrário (e isso será objeto de outro texto), pois se concorda com o Professor Antonio Scarance Fernandes que “a lide como conflito anterior ao processo é um conceito sociológico, não processual. Mas a lide, vista como conflito no processo, que se estabelece entre partes em posições opostas, é conceito útil e aplicável ao processo penal acusatório, pois serve para evidenciar o contraditório, acentuar a posição de parte do Ministério Público e mostrar a necessidade de tratamento isonômico dos litigantes” (FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: RT, 2002, p. 43).

[6] Cabe anotar, contudo, que, para que haja litispendência – ou alegação de coisa julgada – o fato deve ser, rigorosamente, o mesmo: a mesmíssima imputação de lavagem, a mesmíssima imputação de crime contra a administração pública, a mesmíssima acusação de crime doloso contra vida, observando-se que, às vezes, dentro de um mesmo contexto delituoso, pode haver inúmeras (e, frise-se, diversas) imputações, não se podendo confundi-las como sendo indicativas de um mesmo fato.

[7] Talvez esse seja o único caso representativo da hipótese aludida (de coisa julgada formada em um procedimento instaurado depois da dedução de uma ação penal já em curso (para apurar mesmo fato), tendo a coisa julgada força suficiente para truncar o curso do processo penal antes deduzido), pois, como disse a Ministra Relatora Cármen Lúcia, “a tese, como disse Vossa Excelência, é nova, nós nunca vimos”, observação que foi referendada pelo Ministro Ayres Britto (STF, HC 94.982/SP, Ministra Relatora Cármen Lúcia, 1.ª T., j. 31.03.2009)(p. 605, do acórdão).

[8] CARVALHO, Américo A. Taipa de. Sucessão de leis penais. 2.ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1997, p. 214.

[9] A respeito do tema, consulte-se - com algumas reservas de nossa parte - o excelente estudo de: CRUZ, Rogério Schietti Machado. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. No direito norte-americano, o doubre jeopardy clause, da 5.ª Emenda à Constituição estadunidense, faz o papel da coisa julgada. A respeito do tema, vide: RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: RT, 2006, p. 134. Entre os Autores norte-americanos, consulte-se: EMANUEL, Steven L. & KNOWLES, Steven. Criminal Procedure. 19th ed. New York: Emanuel Publishing Corporation, 1999, p. 360 e ss.

[10] A doutrina lista a sentença extintiva da punibilidade como sentença de mérito apenas em sentido lato. Para nós, que reputamos a punibilidade como mais um elemento do delito (ao lado da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), trata-se de sentença de mérito, consubstanciada em absolvição (pois, sem punibilidade, não há, a rigor, crime). Nesse sentido, segue o entendimento do sempre genial Professor Vicente Greco Filho: “‘data venia’, não tem sentido dizer-se que um crime pode não ser punível. Há, no caso, uma ‘contradictio in terminis’. Se um fato não é punível, por qualquer razão, não é crime, ou seja, não é aquela conduta que merece pena (...) todas as circunstâncias, quaisquer que sejam, que levem à não punição, nelas incluindo-se as chamadas excludentes supra-legais, a insignificância e o perdão judicial” (GRECO FILHO, Vicente. “Crime: essência e técnica”. Boletim do Instituto Manoel Pedro Pimentel, ano 5, n. 21, 2002, p. 11)(grifamos). Portanto, por essa visão, não deixa a sentença extintiva da punibilidade de constituir uma sentença absolutória, o que também decorre da presunção de inocência. José Henrique Rodrigues Torres muito bem ensina a esse respeito: “em homenagem à garantia da “presunção de inocência”, se o Poder Judiciário encerra a relação processual sem proferir uma sentença condenatória definitiva, seja porque houve declaração da improcedência da pretensão condenatória, seja porque houve extinção da punibilidade, a inocência do acusado deve ser proclamada” (TORRES, José Henrique Rodrigues. “Extinta a punibilidade, réu absolto”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 19, n. 221, abr./2011).

[11] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro, Forense, 2003, vol II, p. 185.

[12] MÉDICI, Sérgio de Oliveira. Revisão criminal. São Paulo: RT, 1998, p. 220-221.

[13] Insista-se: se a falta de pressuposto é causa de rejeição da demanda (artigo 395, II, CPP), uma vez se tendo dado prosseguimento ao feito, a conclusão que se deve chegar é que os atos praticados são inválidos, pois o processo não poderia ter prosseguido. Sendo a originalidade da demanda pressuposto de validade, uma vez inexistindo, haverá invalidade de toda persecução instaurada em duplicidade.


Jorge Coutinho Paschoal

. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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