"Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, nem mesmo as crianças?: A fala do Presidente da República e o Tema 1103 de Repercussão Geral

19/09/2020

Coluna Espaço do Estudante

No dia 31 de agosto de 2020, segunda-feira, o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, respondeu ao pedido “Ô Bolsonaro, não deixa fazer esse negócio de vacina, não, viu? Isso é perigoso”, feito por uma apoiadora, com “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. A frase foi replicada pela Secretaria de Comunicação do Poder Executivo Federal no Twitter, contendo na imagem os dizeres: “O Governo do Brasil preza pelas liberdades dos Brasileiros”. A frase repercutiu na mídia e nas redes sociais, ou como apoio às liberdades ou como críticas ao movimento antivacina e a sua tolerância pelo Presidente da República quanto à futura vacina da COVID-19.

Entretanto, pouco se falou que três dias antes o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade (três ministros não votaram) a repercussão geral de um tema extremamente correlato à fala, a saber: Possibilidade dos pais deixarem de vacinar seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais. O Tribunal Constitucional irá decidir a constitucionalidade ou não dessa tese e, nos moldes do Novo Código de Processo Civil, o entendimento deverá ser seguido por todos os magistrados do Brasil (ou seja, uma vinculação além das partes envolvidas no processo). Para melhor entender a tese, passo a abordar o caso concreto.

Conforme a manifestação do relator, Ministro Luís Roberto Barroso, um casal é adepto a uma corrente da filosofia vegana que inadmite procedimentos invasivos, como a vacinação, e, por isso, deixaram de vacinar seu filho que hoje possui 5 anos de idade. O Ministério Público de São Paulo, então, ajuizou uma Ação Civil Pública contra os pais para obrigá-los a vacinarem a criança, com fundamento no Art. 14, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe que:

Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos.

[…]

§1º É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

Os pais, então, contestaram a ação alegando que não haveria nenhum ato ilícito por parte deles porque não haveria negligência, já que a criança estaria sendo acompanhada por médicos que prescrevem seu estilo de vida conforme a filosofia vegana e ela possui boas condições de saúde, como provado nos autos do processo. Além disso, quanto à obrigação do ECRIAD, ela não se aplicaria ao caso deles, porque sua corrente filosófica não comporta a vacinação e a Constituição assegura a liberdade de consciência, a escusa de consciência e ainda que os pais criem seus filhos conforme suas próprias convicções:

Art. 5º […]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

[…]

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[…]

§7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Considerando a liberdade de consciência e a boa condição de saúde da criança, o juízo de primeiro grau julgou a favor dos pais. O Ministério Público, então, recorreu ao Tribunal de Justiça, que acordou pela obrigação dos réus em vacinarem seu filho. Por fim, os pais interpuseram um Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, a fim de reformar a decisão do Tribunal de Justiça e firmar uma tese em repercussão geral.

O Ministro Luís Roberto Barroso reconheceu a questão constitucional e disse que, em oposto à liberdade de consciência dos pais está o dever do Estado de promover o direito à saúde por meio de políticas públicas, como de vacinação, (Art. 196 da CR/88) e o dever da família e do Estado de proverem, conjuntamente, o direito à saúde (Art. 227 da CR/88). Mediante esse conflito de direitos fundamentais e a relevância do tema pela ascensão de movimentos antivacinas, o Ministro reconheceu e propôs a fixação da tese na constitucionalidade ou não da "Possibilidade dos pais deixarem de vacinar seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais”. Ele não entrou no mérito sobre poder ou não, somente demonstrou o conflito.

Essa tese a ser firmada, como já dito antes, será vinculante e deverá ser observada por todos os magistrados do Brasil. Devemos ficar atentos, portanto, não somente pela relevância da matéria, como também que, se não for modificada a redação da tese, ela servirá tanto para crianças que tenham ou não uma boa condição de saúde, quanto para casos envolvendo vacinas de outras doenças, como a COVID-19, se surgir uma vacina que seja recomendada pelas autoridades sanitárias.

Aí entra a relevância da discussão sobre a fala do Presidente da República e a sua relação direta com ao Tema que será analisado pelo STF. Além disso, mostra-se necessária abertura do Supremo Tribunal Federal ao diálogo com a sociedade civil, principalmente da área médica. Não se trata de um conflito político-ideológico entre o Chefe do Poder Executivo e os ministros do Tribunal Constitucional, até porque o recurso não se tratava da COVID-19 e a repercussão geral foi reconhecida antes da fala de Bolsonaro, mas sim da efetivação concreta dos direitos à liberdade de consciência e do direito à saúde. Não se trata somente da opinião da maioria sobre o assunto, porque além de ser um tema técnico e objeto de processo judicial – não de decisão “puramente" política –, deve haver a função contramajoritária da Corte Constitucional.

Por fim, ressalta-se a necessidade de haver um diálogo profundo com Academia Jurídica e Médica, representantes de comunidades que sejam contra procedimentos de vacinação, órgãos de proteção à criança e outros setores da sociedade, não somente na fase de definição sobre a aplicação da vacina da COVID-19 (que pode ganhar legislação especial), como da situação no caso concreto. Isso é, na realidade, a efetivação do princípio democrático (direito de terceira dimensão que possui seu embrião nos próprios direitos de primeira, com a consagração dos direitos políticos). Esse diálogo é tanto na fase legislativa, por diversos instrumentos positivados (referendo, plebiscito, iniciativa popular, audiências públicas, consultas populares), quanto na fase judicial (peritos e a intervenção dos amici curiae no processo).

A democracia no Brasil é considerada participativa e o titular do Poder Constituinte, que dá sustentáculo à toda Ordem Jurídica Brasileira, é o povo. Portanto, nas palavras cirúrgicas de Daury Cesar Fabriz, em sua obra “A Estética do Direito”:

Desde a elaboração da norma ou princípio jurídico, às suas aplicações aos casos concretos, devem os cidadão participarem de maneira direta, a partir de canais democráticos institucionalizados” (página 166).

Assim, nos limites temporais razoáveis em consideração ao direito à duração do processo judicial e ao presente tempo de pandemia com surgimento iminente de uma vacina contra a COVID-19, deve haver o máximo de debate possível sobre a temática. Concluo que, dependendo do fruto do debate, pode o STF mudar a redação da tese, para, por exemplo, excluir da decisão final certas categorias de doenças ou crianças com determinadas condições de saúde.

 

Notas e Referências 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 5 out. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 5 set. 2020.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 5 set. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Manifestação sobre o Recurso Extraordinário nº 1.267.879. 6 ago. 2020. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=8954252. Acesso em: 5 set. 2020

CARVALHO, Daniel; URIBE, Gustavo; CANCIAN, Natália. Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina, diz Bolsonaro. Folha de São Paulo. 1 set. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/09/ninguem-pode-obrigar-ninguem-a-tomar-vacina-diz-bolsonaro.shtml. Acesso em: 5 set. 2020. 

FABRIZ, Daury Cesar. A estética do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO. O Governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos […]. Brasília, 1 set. 2020. 13h50. Twitter: @secomvc. Disponível em: https://twitter.com/secomvc/status/1300838424526626820. Acesso em: 5 set. 2020.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Temas Finalizados no Plenário Virtual: Preliminar de Repercussão Geral. Repercussão Geral em Pauta, Brasília, v. 120, Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoInformacaoGeral/anexo/Edio130.pdf. Acesso em: 5 set. 2020.

 

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