Ninguém é a favor do caos, você é que não entendeu nada

11/02/2017

Por Carla Joana Magnago - 11/02/2017

No último sábado, dia 04 de fevereiro, a Policia Militar do Estado do Espírito Santo teve suas atividades paralisadas. Familiares e amigos dos agentes se posicionaram em frente aos Batalhões no início da noite e passaram a “impedir”[1] a saída e a movimentação da corporação. As principais reivindicações são de que o ajuste salarial não ocorre há anos, de que não há plano de saúde e as condições de trabalho são degradantes. Em menos de 24h uma cena de caos foi instalada por todo o estado. Algo que pode ser chamado de onda de violência. Arrastões, furtos, roubos, tiroteios e, consequentemente, homicídios. Estima-se mais de 100 mortes. O Instituto Médico Legal (IML) fechou as portas na tarde da última segunda-feira (06/02) por falta de estrutura para receber os corpos que chegavam.

Na mesma velocidade em que as notícias da “guerra” nas ruas corriam, cresciam também, nas redes sociais, os maniqueismos e discursos rasteiros de todo tipo. Uma revolta – não tão estranha às máximas contratualistas - de todos contra todos entre a população.

“Chama o Batman”. Reclamar ou denunciar, até cotidianamente, a truculência policial, o despreparo dos agentes e a sua seletividade não vai de encontro a apoiar amplamente suas reivindicações. É certo que aqueles homens e mulheres fardados que são postos na rua para matar e morrer devem ser valorizados, enquanto aqueles, que para esse papel os enviam, desfrutam da mais alta tranquilidade e qualidade de vida nos cercamentos de sua segurança privada. Concluir que ao reclamarmos de um serviço é dizer o desejo de viver sem ele torna-se peça essencial de um discurso boçal. Quando você reclama da saúde, quer que fechem os hospitais? Quando reclama da educação, quer que fechem todas as escolas? É importante pontuar que ao se desaprovar o modo como determinado serviço opera, o que se objetiva é reivindicar novos funcionamentos às engrenagens para que tal estrutura responda melhor àquilo que se propõe, e não necessariamente que seja um serviço a ser extinto. Ou seja, a crítica passa pela função que se exerce e não sobre o exercício em si. Se você acha que reclamar da truculência policial ou pleitear a sua desmilitarização é, por consequência, ser simpatizante do caos e da barbárie, você não entendeu nada.

No país da desigualdade institucionalizada, a polícia ostensiva assume o papel do “front” de um governo corrompido e elitizado na busca pela paz armada. Sendo ineficaz por propósito em moderar ou abater a miséria, a fome e o desemprego, os donos do poder arremessam para as ruas agentes fardados, para que inibam dos olhares dos moradores do “asfalto”[2] a verdadeira face de sua desgovernança. Em troca, em uma barganha desumana, ante a uma tragédia anunciada, por baixos salários e condições precárias de trabalho, vidas são perdidas e ceifadas, fardadas ou não.

O caos e a barbárie, vividos hoje no asfalto, acontecem todos os dias e há muito tempo longe dele, nos cantos da cidade, para onde a polícia, como braço armado do Estado e do poder punitivo, empurra a miséria, a fome, o desemprego e os corpos mortos. A onda de violência é terreno fértil para todo tipo de extermínio e sacrifício humano, em nome de uma suposta segurança de parcela da sociedade o Estado realiza a sua limpeza social, a face oculta da paz armada que vivemos.

Em meio ao caos, já existente na presença (e que se dilatou com a ausência) da polícia ostensiva nas ruas, se intensificaram os “estereótipos persecutórios”[3], isto é, elementos, através dos quais, tornam-se palpáveis as possibilidades de apontarmos um bode expiatório, aquele que, segundo Girard, funciona como alvo do medidor da sociedade, que a regula a todo instante e permite, quando rompe uma ameaça, que o corpo desordeiro seja expulso do meio social, sem que sua vida seja, sequer, passível de qualquer luto[4].

Para Girard, o sacrifício é o termômetro da sociedade e é realizado quando o Estado transfere a um corpo, de forma arbitraria, todas as culpas pelas quais a sociedade cobra um culpado, simulando assim uma terapia social. Para que a temperatura social volte ao normal, deve-se considerar, no entanto, que para a purificação buscada seja realizada com sucesso, nenhuma parte essencial pode ser retirada do meio, significa dizer que o bode expiatório deve pertencer a um grupo desprezado pela sociedade, um grupo ao qual a sociedade não acredite fazer parte dela, este mesmo que cotidianamente a polícia militar extermina país a fora.

Os homens elegem seus objetos de desejo através da imitação, isto é, o objeto não tem um significado ou valor em si mesmo, ele apenas foi escolhido por um homem e, por ter sido escolhido, sobre ele nasce uma iluminação, a qual por consequência irá gerar desejo em outro homem, o que, por si só, realiza a manutenção do interesse do outro. Tal relação entre o homem, o objeto e o outro homem, gera a estrutura de desejo mimético, através do qual se torna possível perceber como um desejo individual pode se tornar coletivo. Os homens tornam-se “gêmeos de violência”[5].

A escolha da vítima, embora seja ela possuidora de certas características desprezadas pela sociedade, se fará com ênfase quando lhe for atribuído um crime ou um ato facilmente reprovável por todos, ainda que não seja verdadeiro, ainda que os indivíduos pertencentes à sociedade tenham cometidos crimes mais graves. Dito uma vez, ele ganha uma tênue camada de credibilidade, que já transfere a todos os membros da sociedade certeza satisfatória para se tornarem, a partir de então, mais um seguidor atrás do alvo, não mais ouvindo, nem vendo. A busca pela vítima e o anseio por sacrificá-la toma conta de todos os sentidos da sociedade, o que só cessa quando o alvo é atingido.

Em um país onde cargos com salários acima do teto constitucional têm auxílios exorbitantes e todas as ordens partem dos que se trancam em suas salas, suas residências luxuosas e seguras e seus carros blindados, o sistema de segurança pública carece de uma revolução, para que os agentes fardados na rua sejam valorizados tais quais àqueles que decidem, à quatro paredes, seus destinos, mas também para que sejam conscientizados de que, no asfalto, não somos inimigos, nem os que matam, nem os que morrem.

O Estado, detentor legitimo do sacrifício, faz parecer natural eleger um indivíduo ou grupos de indivíduos e dele retirar todos os direitos e a vida a fim de afagar uma sociedade sobre a qual ele mesmo impõe todas as tensões. Feito o sacrifício ele se torna o último suposto suspiro da violência, até que novas tensões se formem e um novo alvo seja escolhido para um processo de purificação falido e sem fim.

Por último, não por ordem de importância, mas para que se destaque: as mulheres que estão nas portas dos Batalhões não são responsáveis pelo caos, pela violência e pela barbárie, mas pela luta de condições melhores de vida para seus companheiros, para que eles não mais saiam às ruas para matar e morrer em nome daqueles que lhes pagam um salário tão miserável quanto a vida daqueles que morrem por esses gatilhos.

É importante, contudo, trazer à luz que o movimento formado pelas companheiras dos policiais não se reduz apenas à característica de luta e resistência, mas também carrega um sintoma revelador: o androcentrismo, institucional e jurídico, brasileiro. Estamos, nós mulheres, em tal intensidade ignoradas pela lógica funcional das corporações militares e do sistema jurídico que a hipótese de que pudéssemos, nós, interromper todo o funcionamento sequer foi pensada ou prevista. Por consequência, foram elas, as companheiras dos agentes, que serviram de instrumento e escudo ao movimento.

Incrivelmente a resistência se tornou praticável porque as mulheres não pertencem, em momento algum, à base epistemológica de todas as instituições do Estado. Eis então as duas faces dos movimentos, como este, encabeçados por mulheres: ser instrumento até então inexistente e passar a existir enquanto front e peça essencial ao movimento. É nessa conjuntura que se torna possível e assustador perceber que resistimos porque não pertencemos e pertencemos porque resistimos.

A ausência de ponderações acerca da participação (essencial) das mulheres no movimento que parou o estado do Espírito Santo também pode ser notada nos diversos artigos de opinião escritos por homens ao longo da semana no estado. Estamos, até nas notícias e opiniões, fora da lógica e inexistentes.

Quando a luta é por direitos dos homens e de todos, as mulheres estão no front, quando a luta é feminista “nós por nós”. Que fique a lição para todos e, inclusive, para nós mesmas, que estamos por nós e por vocês resistindo às opressões.


Notas e Referências:

[1] Policiais Militares não têm, constitucionalmente, direito à greve e como baixo é contingente em frente aos Batalhões, onde se instala uma polícia treinada e acostumada a dispersar milhares de pessoas, torna-se clara a aderência dos agentes ao movimento, caracterizando, sim, uma greve.

[2] Popularmente conhecidos todos que não moram em favelas ou comunidades periféricas.

[3] GIRARD, René. A violência e o Sagrado, São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 116.

[4] BUTLER, Judith. Vida precária: El poder del duelo y la violencia.

[5] GIRARD, René. A violência e o Sagrado, São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 116.


Carla Joana Magnago. . Carla Joana Magnago é Advogada Criminalista.. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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