"Neonaturalismo": possibilidade e limites da experiência neurojurídica (Parte 1)

18/04/2015

Por Atahualpa Fernandez  18/04/2015

                                                                                            

“La filosofía ha muerto; en este caso, la han matado los mismos profesores de filosofía,… los filósofos profesionales, esos especialistas en todo y en nada que, sin dominar ninguna técnica científica, tienen la insolencia de atreverse a hablar de todo lo divino y lo humano”.

Manuel Sacristán

Parte 1 

O cérebro se impõe, ao menos para uma ampla quantidade de cientistas e pensadores, como a referência principal para compreender e explicar todos os matizes da conduta humana ao tanto que as técnicas de scanner ou imagem cerebral passam a ser as novas lentes desde as que decifrar, e inclusive prever, o pensamento e a ação. O prêmio Nobel Francis Crick já assinalou o que ele qualificou “hipótese espantosa”, a saber, que não somos mais que um pacote (“pack”) de neurônios.

Assim que um exame preciso do funcionamento cerebral (e das características próprias de cada um) equivaleria finalmente a uma análise, segundo alguns absolutamente fidedigna, do que realmente somos. Não deve surpreender, portanto, a pujança que nesses últimos anos têm as neurodisciplinas, tão inovadoras como ambiciosas. Entre elas, por suas repercusões práticas, merece destaque as recentes tendências que colaboram com uma “neurologização” da filosofia e do direito.

De fato, são poucas as dúvidas de que os estudos da natureza da mente e do funcionamento do cérebro começam a chegar à filosofia moral e ao direito de uma maneira cada vez mais “ameaçadora”. A cada dia que passa aumenta drasticamente a capacidade para observar, cada vez de maneira mais detalhada e exata, o funcionamento e a atividade do cérebro humano. Isto, graças ao aperfeiçoamento de técnicas de verificação cerebral que evolucionaram desde as iniciais observações da atividade elétrica de amplas áreas neuronais, até a observação acurada da atividade de neurônios isolados. Cada vez se conta com maiores fundamentos teóricos e empíricos que corroboram a importância das variáveis (neuro) biológicas na conduta dos organismos, isto é, que já parecem indispensáveis para compreender, entre outras coisas, quem somos, o que nos motiva e a maneira como funcionamos enquanto criaturas neurobiológicas e sociais (K. Evers).

E uma vez que a teoria e prática do direito não estão imunes a esta situação,   tudo isso sugere um cenário propício para conjecturar até que ponto é necessária (e possível) uma nova naturalização do direito, um “neonaturalismo” – para distinguir este dos jusnaturalismos históricos - baseado nos fundamentos naturais e neurobiológicos da conduta humana, toda vez que “la visión de la naturaleza humana que ha ido evolucionando durante las cuatro últimas décadas ha cambiado sistemáticamente la explicación de lo que somos y por qué hacemos lo que hacemos.” (M. Banaji). E a resposta a esta questão é, a meu juízo, afirmativa ao menos em parte.

A razão é simples. A hipótese mais razoável estabelece que a natureza humana e, consequentemente, o sentido do eu, é em grande medida o resultado de uma mescla similar ao do caso da linguagem: um amálgama em que genes e neurônios por uma parte, e experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa vida sociocultural, por outra, confluem para dar o resultado final de um indivíduo inseparável da sociedade. Quando se fala de natureza humana e dos efeitos práticos de suas implicações jurídicas, é, pois, viável — e inclusive exigível — o desenho e o desenvolvimento de novos critérios para que os setores do conhecimento próprios do direito sejam revisados à luz dos estudos provenientes de outras disciplinas que buscam entender em que consiste nossa natureza como espécie.

Esse conjunto de ciências “ponte”, baseadas todas elas na dupla perspectiva indivíduo-sociedade, nos ensina que o comportamento humano se origina a partir da intercessão de nosso sofisticado programa cognitivo de raiz filogenética com o entorno sociocultural em que transcorre nossa ontogênese. Também nos indica que as representações culturais devem ser vistas como algo que se sustenta em mecanismos próprios de nossa arquitetura cognitiva inata. A estrutura e o funcionamento desses mecanismos regulam de que modo as representações específicas se transmitem de um indivíduo a outro, distribuindo-se dentro da comunidade como resposta a condições sociais e ecológicas distintas. Em síntese, é a natureza humana a que impõe constrições significativas para a percepção, transmissão e armazenamento discriminatório de representações culturais, limitando as variações sociais e morais possíveis.

A um nível mais profundo, a existência desses mecanismos também implica que existe em nossa espécie uma considerável carga de conteúdo mental universal. Como sustentam as primeiras intuições de Darwin (1871) acerca da natureza humana, “hemos nacido con determinados instintos morales, en un marco en que la educación interviene para graduar los parámetros y guiarnos hacia la adquisición de sistemas morales y jurídicos particulares”. Há algo, pois, no cérebro humano que nos permite adquirir um sistema de valores e princípios ético-jurídicos e que permite sustentar a existência de universais morais em um sentido forte do termo (E. Tugendhat; M. Hauser). Para certas coisas, portanto, há uma só moral universal.

Se é assim, também haverá que aplicar ao caso dos valores humanos mais apreciados — justiça, liberdade, igualdade, autonomia, dignidade — a ideia de que somente através do conhecimento da mente, do cérebro e da natureza humana, podemos ter a esperança de fazer uma contribuição significativa à compreensão do ser humano e da cultura por ele produzida (S. Zeki). Quero dizer, que não parece razoável pretender compreender o sentido profundo do direito sem abordar antes a complexidade de nossa mente e do cérebro que a habilita e que a sustenta, um conjunto que gestiona e gera o sentido da identidade e personalidade, a percepção do outro e a intuição de nossa autonomia própria.

Existe de fato uma natureza humana capaz de fazer tudo isso? Não poderia ser indiferente, que qualquer programa jusnaturalista, inclusive de cariz religioso, se bastasse para estabelecer o conteúdo da natureza humana? A resposta é negativa. Qualquer concessão ideológica está ameaçada ou contagiada dos erros produzidos pelo desconhecimento. A história recente indica bem que a condição humana, e seus atributos ligados à possessão de valores, deve ser definida em termos evolutivos, antropológicos e neurobiológicos e não políticos ou religiosos, metafóricos ou meramente especulativos. E as hipóteses menos arriscadas são as que podem chegar-nos graças a esses enunciados descritivos procedentes das ciências que a falácia naturalista ansiou desqualificar.

Desnecessário dizer que um programa assim não somente supõe um câmbio de rumo radical na história das ciências sociais, senão que também põe em tela de juízo muitas de nossas suposições básicas sobre alguns postulados do direito (e do próprio entendimento acerca da natureza do pensamento e da conduta humana), com consequências profundas no domínio próprio (ontológico e metodológico) do fenômeno jurídico. Agora, o grau em que seja possível realizar esta “revolução naturalista” dependerá, fundamentalmente, do calibre das resistências que encontrará por parte dos que se negam a pôr-se ao dia com os descobrimentos e valores do século XXI; coisa que, de momento, não podemos prever.

Mas, como não parece haver uma instituição humana mais fundamental que a norma jurídica e, no âmbito do científico, algo mais instigante que o estudo do cérebro (da natureza humana, em suma), a união destes dois elementos (cérebro-norma) representa, seguramente, uma combinação naturalmente fascinante e estimulante, uma vez que tanto a norma jurídica (sua elaboração, interpretação e aplicação) como o comportamento que procura regular são, depois de tudo, produtos da atividade cerebral. Para dizê-lo do modo mais simples possível, investigar se os valores e as normas estão incrustados no cérebro ou se, tendo uma base cerebral, surgem da cultura é sem dúvida um dos mais apaixonantes desafios: “The study of morality is one of the most exciting and dynamic areas of cognitive science today”, afirmam P. Churchland e C. Suhler.

Apesar de tudo isso, parece igualmente importante que se tenha o devido cuidado à hora de avaliar as incessantes promessas que se sucedem nos noticiários acerca das novas descobertas neurocientíficas: novas substâncias moduladoras da atividade cerebral, novas promessas de aniquilação de flagelos antigos como a depressão, a obesidade, a infelicidade, a perda de memória, novas concepções sobre a liberdade, a responsabilidade pessoal, os juízos morais, etc. Todas essas promessas gritam desde as portadas sensacionalistas de livros, revistas, blogs, jornais..., todos “inspirados” nos mais recentes resultados procedentes das investigações detalhadas do cérebro em funcionamento (já há, inclusive, autores que, com certo otimismo, falam do espectro de uma nova área do conhecimento jurídico: “Neurodireito”).

Embora a “neurocultura” esteja definitivamente de moda, parece sensato evitar a simplória assunção de que a neurociência pode, por si só, descrever e prescrever a conduta e o pensamento humano em toda a sua dimensão. É bastante provável que a coisa não funcione de modo tão simples assim. Da mesma forma como toda religião condena aos humanos a uma menoridade permanente, assim também pensar que a relação “cérebro-direito” é tudo pode levar-nos a olvidar que, a esta altura da história, a medida do direito, a própria e essência do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma complicadíssima combinação  de genes e de neurônios, senão também de experiências, aprendizagens, histórias vitais específicas e as influências que nos brindam o meio físico e social.

Convém atuar com muita cautela quando um salto técnico assim permite levar a cabo análises e detecções impossíveis com anterioridade. Pois em que pese o fato de que os procedimentos atuais de neuroimagem funcional se limitam a detectar câmbios na atividade neuronal ou na circulação sanguínea cerebral, não resulta difícil deixar-se levar pela euforia, sacando conclusões precipitadas e/ou exageradas[1]. O certo é que a atual investigação neurobiológica de nossas condutas, de nossos juízos morais, de nosso conhecimento do bem e do mal, ainda apresenta importantes limitações.

Por exemplo, a descrição de determinados centros de atividade e a atribuição a essas áreas de determinadas funções ou atividades, em si mesmo, é de pouca ajuda; que tudo suceda em um “lugar determinado” do cérebro não explica coisa alguma. Os métodos atuais não dizem nada acerca de “como” funciona, posto que simplesmente medem e, de maneira indireta, sinalizam donde há uma maior necessidade energética entre centenas de milhares de neurônios. A localização exata no cérebro, que hoje conhecemos graças às técnicas de imagem cerebral, não esclarece como as funções cognitivas e afetivas podem descrever-se por mecanismos neuronais (F. Rubia).

Na verdade, apesar do extraordinário de todos esses avanços, ainda estamos no começo de semelhante processo, quero dizer, que só percorremos muito pouco do longo caminho para uma compreensão fundamental do cérebro. Também é um fato que ainda estamos longe de contar com um mapa preciso das ativações e correlatos neuronais relacionados com nossos comportamentos e/ou os processos cognitivos e emocionais que nos levam a atuar. As investigações na área da boa neurociência estão dando seus primeiros passos e novos estudos refutam, com frequência, as mais recentes descobertas.

E dado que nossa falta de compreensão exata do que faz o cérebro em seus níveis superiores ainda é vastíssima, é sempre aconselhável considerar que inclusive nossas mais caras intuições sobre a função do cérebro e da mente são hipóteses revisáveis e não verdades absolutas transcendentes ou certezas obtidas introspectivamente. Como explica Patricia Churchland, nem sequer sabemos como codificam a informação os neurônios; e isso é muito não saber. Em muitos casos, continua, “la variabilidad natural de la macroestructura no predice nada sobre la función del cerebro (quiero decir, en oposición a las causas de un disparo, por ejemplo). Todavía es más interesante que la variabilidad estructural a menudo no prediga nada sobre microestructura, que es dónde se encuentra la acción. O como lo diría un mercenario político: Es el cableado, estúpido. ¿Los escáneres cerebrales pueden apreciar el microcableado? No. […] Hagamos un brindis por la variabilidad, la adaptabilidad y el cableado del cerebro. Y mientras fluye el Chardonnay, celebremos todo lo que sabemos sobre el cerebro”.


Notas e Referências:

Artigo escrito em colaboração com Marly Fernandez: Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

[1] Aos que D. Chabris e D. Simons denominam “neurocháchara” ou “porno cerebral”; um conjunto de ideias “que pueden inducirnos a pensar que hemos aprendido sobre el cerebro más de lo que en realidad lo hicimos, [...] y que pueden servir más como una herramienta  de ventas  para su ´ciencia´ que como verdadero instrumento cognitivo”.

[2] A neuroética, explica Adela Cortina, “debería ser algo más que una neurociencia de la moral: debería ser una tarea conjunta de éticos y neurocientíficos que consistiría en estudiar las bases cerebrales de la conducta moral, pero se preguntaría a la vez si esas bases proporcionan un fundamento para extraer de él obligaciones morales, es decir, para enunciar qué debemos hacer; o si, por el contrario, de la misma forma que hay bases psicológicas y sociales de la moral, hay también bases cerebrales, lo cual no significa que constituyan el fundamento de la vida moral.[…] Y justamente las neurociencias nos ayudan a entender mejor los mecanismos cerebrales que entran en juego en la toma de decisiones y en el comportamiento moral. Sin embargo, la pregunta es si contando sólo con estas bases es posible responder a la pregunta por las razones de la obligación moral, responder a la pregunta “¿por qué debo?” ante determinadas exigencias morales. La pregunta por el fundamento de la obligación no es la misma que la pregunta por las bases con las que tiene que contar un ser para ser capaz de vida moral.”


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Brain nebula // Foto de: Ivan // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/47476117@N04/8394780999 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura