As crianças se vão tornando adultas tendo que realizar cotidianamente uma prova de amor requerida pelos pais: obedecer. Obediência é prova cabal de amor. A criança não delibera com fundamentos; ela obedece ou desobedece.
Desobedecer, seja ativamente, cometendo o interditado, seja passivamente, descumprindo ordem, é desamar. A criança, sob a ameaça da imputação de desamor e das penas decorrentes, viverá um processo de sujeição.
Acontece a introjeção de uma disciplina não justificada: a criança não será obediente por compreender uma situação hierárquica, mas porque subjetivou sujeição. Uma submissão afetuosa. Submissão correlacionada a carinho.
As afeições adultas contêm, talvez reproduzindo o aprendizado infantil dos significados do amor, um sofisticado e abrangente sistema de controle das vontades, dos corpos; da liberdade de ir e vir, de pensamento, de expressão.
Esferas da vida privada. Os indivíduos e as compreensões da vida privada que estão inscritas em suas histórias constituirão, articulados, a esfera da vida pública. A vida pública será a soma de vontades individuais, ou será multidão.
Há enorme diferença: a soma de vontades individuais faz a cidadania que se profere como república. Só um cidadão tem vontade política deliberada. A massificação de vontades faz as hordas, os sectários, os fascismos.
Na república o amor às coisas de interesse geral pede um tipo de submissão: a advinda da vontade. O cidadão renuncia a parte de sua soberania e submete-se à deliberação da maioria porque aderiu a um (suposto) contrato.
O cidadão voluntariamente submete-se à vontade da maioria dos cidadãos porque essa é a vontade de cada cidadão. Numa república a soma final de vontades permanece sempre pluralidade, adição de distintas posições.
Numa república que esteja à altura do conceito as vontades individuais não se dissolvem em opiniões de multidão, não seguem populistas, não obedecem líderes, não são estabelecidas por logaritmos de redes sociais.
Ora, uma adição de distintas posições jamais fará uma soma igual ao total das partes. A vontade geral considerará os diversos pensamentos, sendo, portanto, sempre maioria, jamais (uma indesejada) totalidade.
Com ou sem “razão”, a maioria ganha, a minoria perde. Essa tem sido a regra do jogo nas democracias ocidentais. A regra do jogo está insculpida em constituições. Há muitas teorias constitucionais.
Há alguns consensos formados: as constituições não são eternas, só devem valer enquanto fizerem sentido histórico; as constituições, contudo, jamais ficam ao sabor do momento exaltado ou ao gosto irado da multidão.
Na Tradição Ocidental as constituições preveem quem as interpreta e quem as reforma. As constituições estabelecem em si mesmas Poderes adequados para tanto. As constituições se abstraem da “vontade das ruas”.
Há um livro: Poderes Selvagens – A Crise da Democracia Italiana, Luigi Ferrajoli, tradução de Alexander Araújo de Souza, Coleção Saberes Críticos, Coordenação de Alice Bianchini e Luiz Flávio Gomes, Editora Saraiva.
Nele há a sugestão fundamentada de submissão adulta à vontade da constituição. Não será submissão afetiva, mas pensada, legitimada, consensuada. Ela perseverará também nas crises, ou principalmente nas crises.
Ora, que o Brasil está em desgosto com seus governantes, não há dúvida. O combo PTMDB ganhou uma eleição às custas da ladroagem às verbas públicas e, então, aos votos. Bem, o TSE acaba de absolver a chapa Dilma/Temer.
Suponho que isso contente e descontente coxinhas e mortadelas, o que pouco se me dá. O problema – e isso me importa – é que esse resultado também desagrada a grande parte dos brasileiros que não se filia a esses fascismos.
Então, que fazer? A mim me parece que só há um caminho sensato: Constituição. Por sobre quaisquer paixões (política apaixonada beira o fascismo), amor às regras do jogo: uma republicana obediência à constituição.
Poderes Selvagens, o livro. Ferrajoli explicita os equívocos que levaram a Itália ao berlusconismo: esse estranho amor ao antipolítico, esse insensato ódio à política, esse afeto infantil à autoridade pessoal.
As instituições representativas intermedeiam e devem intermediar a vontade popular. O esvaziamento da dimensão constitucional da democracia dissolve a política como representação da vontade republicana.
Mexer nas regras do jogo para agradar jogadores é temerário. Jogar para as arquibancadas não é a melhor recomendação. E, pior, quando as torcidas jogam para si mesmas, complicam o sistema de jogos. Melhor não.
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