Nem tudo é o que parece

11/02/2022

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Domitila ficou muito triste quando tudo aconteceu. Os médicos disseram haver uma série, quase interminável, de efeitos mentais e emocionais causados pelo trauma. Um acidente de veículos no qual o único morto fora Francisco.

O menino estava na adolescência. Cheio de planos. A veterinária seria o enredo mais coerente. Tomaria conta das fazendas. A família já esperava por alguém voltado para o trato com os animais. Chico era tranquilo. Um rapaz enorme para dezessete anos. Olhos vivos. Doce. Um adolescente de ouro, enfim.

Domitila não queria casar com festa. Pediu, clamou, quase ajoelhou para que não houvesse uma comemoração. Os festejos já estavam marcados, há muito. Os familiares do noivo estavam vindo de Canterbury, perto de Londres.

Os olhos postos no vestido branco e rodado estavam caídos. As pessoas ao redor tentavam deixar o ambiente mais tranquilo. A linda noiva, com seus quase cinquenta anos, estava deslumbrante. Por dentro, havia uma mãe destruída.

O único filho amado não compartilharia de um dos momentos mais felizes da vida familiar. Rodrigo, pai de Francisco, rascunhara a cerimônia do casamento desde tempos passados. A fazenda do interior da Bahia estava enfeitada de amor.

Um caminho repleto de flores foi feito da porta de entrada da casa maior até o púlpito onde o Padre Antenor iria ministrar uma cerimônia católica, bem tradicional. Domitila sentia frissons desde pequena. Uma sensibilidade incrível. Já tinha visto, raras vezes, animais, vultos, essas coisas de filmes.

Naquele dia ruim, infelizmente, nada sentira. Sempre pensava que talvez não devesse ter saído de carro. Quem sabe mudado a rota. O caminhão estava desgovernado porque o motorista teve uma lipotimia. O senhor Antônio Carlos ficou tristíssimo depois do ocorrido.

Várias pessoas passavam apressadas com panos nos braços. Havia profissionais para os cabelos e maquiagem. Primas com taças nas mãos e celulares escondidos. O ruído no andar de piso da casa estava intenso. Muitos sorrisos, apesar do fundo triste das festas após a passagem do jovem Chico.

- Você está feliz.

- Sim. Gostaria que meu filho estivesse aqui para me ver entrar na cerimônia. Eu queria poder contar com isso.

- O noivo mandou avisar que está tudo certo. Já podemos ir.

Domitila respirava fundo e acalmava o corpo. Orava baixinho e pedia a Maria Santíssima o equilíbrio tão desejado. O momento era muito importante para ela e o compartilhamento com o filho não iria acontecer, ao menos não como ela pensara.

Quando desceu as escadas lembrou de falar com Diego, filho de Dona Augusta, vizinha da fazenda, a respeito da cadeira perto da noiva vazia com o cartão em nome de Francisco. Tinha sido algo muito frisado. Era importante para o emocional dela que o lugar estivesse vazio e com marcação para Chico.

- O cartão foi colocado?

- Sim. Fique tranquila. Está tudo bem. O primeiro assento depois dos padrinhos está reservado para ele.

- Obrigado, meu amigo. Desculpe estar sendo tão chata nisso. Mas acredito ser importante para mim.

- Ora. Nem se preocupe com isso.

A marcha nupcial foi tocada sob sons de trompetes e demais metais. O dia de sábado estava fantástico. A quentura natural daquela cidade do interior da Bahia era equilibrada por um vento fresco vindo do mar. Domitila andou devagar em direção ao altar.

Rodrigo esperava por ela com os braços abertos. Os padrinhos estavam sorridentes. A família tinha feito um esforço grande para partilhar o momento. Todos estavam sensíveis à dor da nubente. O sol descia macio deixando o céu em cores azuladas, avermelhadas e alaranjadas.

Passarinhos rivalizam os sons com a orquestra contratada. Ao fundo, toda a equipe de profissionais já estava a postos para a festa vindoura. Uma banda de alto renome e o buffet engalanado deixavam o conúbio ainda mais chique e bonito. Tudo estava perfeito, como tinha de ser.

Domitila já estava perto dos padrinhos quando fincou os olhos na cadeira de Francisco. Um homem branco, de terno azul, bem alinhado, estava sentado de pernas cruzadas e olhos tranquilos. Um frio na espinha atingiu a jovem senhora. O senhor, aparentando, pouco mais de sessenta anos, sorriu de forma introvertida.

Domitila olhou para o lado, enquanto caminhava, e perguntou, baixinho, a Diego a respeito do porquê aquele homem estava sentado na cadeira de Chico. Diego disse que não sabia porque isso estava acontecendo. Havia tido algo errado. Não podiam acreditar no equívoco.

Quando a noiva estava bem perto do altar a raiva e desalento já tinham tomado conta da alma por dentro do vestido branco cheio de rendas. O noivo aproximou-se ofertando as mãos. Todos levantados para o momento da chegada da mulher. Domitila olhava para Rodrigo pedindo explicações, apesar de saber que talvez não fosse o momento propício para tal clamor.

- Meu amor. Você está linda – sorrindo.

- Obrigada, você está ótimo também – chorando calmamente.

- Domitila. Por favor, antes do Padre Antenor nos consagrar gostaria de te apresentar Gilthon.

- Ora, Rodrigo. Você conhece esse homem?

- Sim, conheço. Eu o convidei para o nosso casamento. Precisamos te contar uma coisa.

- Meu Deus, Rodrigo. O momento talvez não seja esse.

Gilthon aproximou-se do casal. O padre Antenor também desceu do pequenino palco para estar ao lado dos noivos. Alguns padrinhos arrodearam a todos e Diego permanecia com os olhos esbugalhados, sem entender, em absoluto, o que estava acontecendo.

- Domitila. O Gilthon recebeu o coração do Francisco. Ele tinha um problema congênito na aorta. Nosso filho salvou a vida dele.

- Meu Deus.

- Eu trouxe um estetoscópio. Gostaria que você ouvisse o som do coração de Francisco antes de sermos abençoados. Você quer?

- Sim. Como não? – chorando quase copiosamente e abraçando aos soluços aquele senhor de costume azulado.

Todos, naquele dia, choraram com a noiva pelo momento tão especial de escutar, antes do próprio casamento, o som do coração do filho amado já falecido batendo fortemente, vivo. Gilthon chorou. Rodrigo chorou. Domitila chorou. Os convidados choraram. Diego, que acompanhava tudo de perto, também chorou.  

 

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