NEGÓCIOS BIOJURÍDICOS EXISTENCIAIS: O CONTRATO DE GESTAÇÃO POR SUBSTITUIÇÃO E A DEFINIÇÃO DA PARENTALIDADE  

29/09/2020

Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá

A personalização do direito como fonte de interpretação e aplicação de institutos jurídicos, sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, ensejou o reexame do conceito de direito subjetivo e a elaboração da teorização denominada de situações jurídicas, as quais se dividem em existenciais e patrimoniais[1].  

O direito subjetivo se estrutura, basicamente, da seguinte forma: a) o poder da vontade; b) a vontade juridicamente protegida; c) o interesse juridicamente protegido para a representação de uma vontade; e, d) o poder de agir na realização do interesse protegido por lei. Sua gênese remonta ao surgimento do Estado liberal, o qual prevalecia a autonomia da vontade do indivíduo, conferindo aos negócios jurídicos caráter meramente patrimonialista.

Com o surgimento do Estado intervencionista, de bem-estar social, a atenção quanto à dignidade da pessoa humana passa a reger a atuação Estatal, assim como, a realização dos negócios jurídicos, que, a partir desse momento devem observar questões referentes à função social do contrato. Por conseguinte, há uma substituição na lógica negocial, superando o individualismo e viabilizando que os negócios jurídicos sejam compreendidos como cooperação entre as partes. Essa nova perspectiva auxilia na superação da problemática verificada na teoria da relação jurídica e do direito subjetivo, em que se constata uma insuficiência de concretude em determinados casos, dado que o direito subjetivo depende do direito objetivo, assim como, a necessidade de existência de uma relação jurídica, o que inviabiliza, em parte, a compreensão de direitos difusos e coletivos.

Nos últimos anos, o grande avanço do progresso científico, medicinal e tecnológico tem possibilitado o surgimento de novos fatos jurídicos concernentes à novas realidades biológicas, produzindo um relevante impacto social. Neste aspecto, destaca-se a gestação por substituição, uma técnica de reprodução humana assistida que consiste em valer-se do “invólucro” de outrem para gestar o embrião, filho dos pais idealizadores[2]. Trata-se de um acordo realizado entre a mulher que irá gerar a criança com àqueles que forneceram o material genético, que receberão a criança após o nascimento.

Contudo, diferentemente de países como Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Suíça e Canadá, por exemplo, que dispõem de tratamento legal direto ou indireto quanto à prática, o Brasil carece de legislação específica que possa atribuir mais segurança jurídica para os envolvidos no procedimento.

Diante disso, o Conselho Federal de Medicina elaborou a Resolução nº. 2.168/2017, com vistas a harmonizar e disciplinar o uso de técnicas de reprodução assistidacom os princípios da ética médica[3]. Ademais, o Provimento n. 63 de 11 de novembro de 2017 do Conselho Nacional de Justiça instituiu os modelos de certidão de nascimento a serem adotados pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e da maternidade socioafetiva e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida.

Nesses dois documentos foram definidas certas restrições à gestação de substituição, que só poderá ser realizada a título gratuito – inviabilizando a prática de barriga de aluguel -, além disso, em regra, a cessão temporária do útero só é permitida no âmbito familiar, com sujeitos que possuam parentesco consanguíneo de qualquer um dos parceiros até o quarto grau colateral. Há também a limitação quanto à idade da cedente temporária do útero que não pode ter mais de 50 anos de idade, ressalvados os casos devidamente justificados pelo médico, ao constatar a ausência de riscos à saúde da cedente[4].

Na prática, diante da falta de legislação específica, o que se constata é a realização de contratos de gestação substitutiva regulamentar, realizados entre as partes envolvidas, suprindo a lacuna legislativa, porém, respeitadas os limites normativos.

No entanto, apesar disso, o Poder Judiciário tem suprido essa ausência de norma por meio da analogia, a fim de conceder maior proteção as variadas formas de famílias e os interesses das crianças e adolescentes.Importante destacar que diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, no ano de 2011, conforme Informativo n. 625, há a possibilidade de gestação de substituição planejada por casais homoafetivos.

Quanto aos termos procedimentais, há uma variação de conceitos utilizados para designar a técnica de gestação por substituição, tais como “mãe substitutiva”, “mãe hospedeira”, “mãe sub-rogada” ou “mãe por sub-rogação”. Todavia, o conjunto terminológico representa uma confusão entre maternidade e gestação. Cumpre ressaltar que por maternidade entende-se um conjunto de sentimentos, responsabilidades e ações que não relacionam-se a mera gestação biológica.

A maternidade relaciona-se com o “complexo de fatores associados a cada um que visa à relação parental com a criança. A ideia de ser mãe e a formação do conceito de maternidade precedem o de ser uma mãe”[5]. “Maternidade é maternidade, já determinada; já a gestação é o estado físico gestacional. Portanto, quando falamos em gestação de substituição, há uma razão de ser”[6]. A utilização de expressões ou denominações equivocadas incorre na possibilidade de correlacionar situações diversas na feitura dos negócios biojurídicos com vistas a disciplinar a gestação substitutiva, haja vista a superação do princípio mater semper certa est.

Dito isto, o artigo 104 do Código Civil brasileiro estabelece os critérios para a celebração dos negócios jurídicos. Para Pontes de Miranda, o contrato para se aperfeiçoar precisa superar os planos de existência e validade para atingir o plano da eficácia[7].

No plano da existência, averígua-se os pressupostos ou elementos de existência, sendo: a) agente (tempo e lugar); b) vontade; c) objeto; d) forma. Por sua vez, no plano da validade os elementos discriminados anteriormente são adjetivados, sendo: a) agente capaz; b) vontade livre; c) objeto lícito; forma prescrita ou não defesa em lei.

Nesse ponto, merece especial atenção a discussão sobre a licitude do objeto. A doutrina não é pacifica quanto à licitude da gestação por substituição, mesmo que não haja o caráter pecuniário. Aliás, mister se faz ressaltar a importância da gratuidade desse acordo, em consonância com o parágrafo quarto do artigo 199 da Constituição da República[8].

O entendimento sobre a ilicitude tem fundamento na concepção de que mesmo sob o pretexto altruístico, em auxiliar determinada pessoa com problemas de saúde que inviabilizam a reprodução, a gestação por substituição “seria um atentado ao princípio da dignidade da pessoa humana [...] tendo em vista que a fixação de um preço por uma criança através de um negócio jurídico ensejaria na coisificação do homem. A vida humana é direito indisponível e não é passível de comercialização”[9].

Tal argumentação não se sustenta pelo fato de estarmos tratando de um negócio jurídico existencial, relacionado ao ser e não ao ter, não constitui a essência do contrato o caráter patrimonial, haja visto que é expressamente proibido estabelecer valores. Além disso, de acordo com Maria Helena Diniz, a remuneração decorrente da cessão do útero poderia incorrer na mitigação da dignidade da mulher gestante, uma vez que, em situação de vulnerabilidade social ou estado de necessidade, poderia valer-se da prática para sobreviver, deflagrando a ilegalidade e imoralidade do contrato celebrado[10]. Desta forma, a vedação imposta pelo ordenamento jurídico reside na ilegalidade de estipular contraprestação remuneratória à gestante, sendo nulo de pleno direito os contratos de gestação por substituição que assim forem estipulados.

Quando elucidado que o objeto do contrato de gestação por substituição é a cessão temporária, livre e esclarecida do útero da mulher contratada, e não o embrião. Para Mônica Aguiar, o objeto contratual não é a criança, e sim o direito à procriação, compreendido como direito personalíssimo[11]. Ainda, a vedação prevista no artigo 13 do Código Civil, assim como a do artigo 15 da Lei nº. 9.434/1997 não tornam o contrato ilícito, haja vista que a cessão temporária do invólucro não incorre na diminuição permanente da integridade física da gestante, como também não relaciona-se com a venda de tecidos, órgãos ou partes do corpo, haja vista que a doação do útero é por tempo determinado, não remunerada, não comercializada e não permanente, apenas com fins humanitários[12].

No Brasil, coubeao Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº. 2.168/2017 regular a prática. O intuito do contrato de gestação por substituição consiste em esmiuçar as nuances que podem incidir sobre a situação jurídica, tais como os deveres dos contratantes em relação às despesas médicas, o tratamento, o acompanhamento, as visitações durante a gestação.

Um dos maiores empecilhos a concretização dos contratos de gestação por substituição assenta-se no direito ao arrependimento, podendo se configurar no direito dos pais idealizadores em desistir do procedimento, assim como o da mulher gestante em negar a posterior entrega do bebê aos contratantes. Neste sentido, é possível a fixação de cláusula de arrependimento conforme previsto no artigo 420 do Código Civil brasileiro, desde que respeitada o marco final para o exercício regular desse direito. De acordo com o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida de Portugal, “essa revogação só pode ser operada até a concretização da transferência embrionária”[13].

Em relação ao direito de arrependimento dos pais contratantes, em que pese ser improvável, nestas situações, o bebê poderá ser encaminhado à adoção ou permanecer com a gestante. Todavia, compete aos idealizadores, após a fronteira do arrependimento fixada na transferência uterina, arcar com as despesas e permanecer vinculados a obrigação de sustento do menor. Antes do marco final, o direito de arrependimento poderá ser exercido regularmente, podendo ser indenizável, conforme estipulado na cláusula contratual.

Quanto ao arrependimento da gestante, a hipótese mais discutida na doutrina é quanto a possibilidade de recusa de entrega da criança logo após o parto. Neste caso, “este direito não deve ser reconhecido", não pelo menos quando a gestante não possui vínculos genéticos com o bebê, nisto consiste a necessidade de afastar a relação genética entre a gestora e o embrião gestado[14].  “É no mínimo duvidoso que a gestação, em si e por si, funde qualquer poder sobre o novo ser”. Neste sentido, Vera Lúcia Raposo complementa questionando “[...] porque haveria a livre mudança de opinião da gestante de substituição valor mais do que a vontade que previamente manifestou de forma livre no contrato?”[15].

Neste sentido, não se pode chamá-la de mãe, mas, tão somente, gestante[16]. Assim, o desejo do casal idealizador há de ser o fio condutor do estabelecimento do vínculo de filiação, “não devendo haver dúvidas de que o pai e mãe serão aqueles que se submeteram voluntariamente a tratamento de reprodução artificial, devendo prevalecer à verdade sociológica, afetiva e individual”[17].

Em decisão de 2014, a juíza da Vara de Fazenda Pública e Registros Públicos de Três Lagoas no Estado do Mato Grosso do Sul determinou, após a recusa do cartório, o registro do bebê em nome dos pais biológicos e não em nome da parturiente. A magistrada alegou que “os procedimentos médicos no campo da fertilidade estão cada vez mais avançados, devendo o registro civil acompanhar as mudanças culturais e tecnológicas para que se garanta a efetiva verdade registral”[18].

A decisão foi balizada pela licitude do procedimento, pela declaração de consentimento das partes envolvidas, termo de ciência que afastaram as dúvidas de legitimidade dos pais idealizadores do projeto parental. A magistrada completa que “nada mais autêntico do que reconhecer como pais aqueles que agem como pais, que dão afeto, que asseguram proteção e garantem a sobrevivência”[19].

A dogmática civilística tradicional previa o princípio da “matersemper certa est”. Entretanto, tal princípio precisa ser mitigado e dar vazão para a realização do indivíduo e da família enquanto base da sociedade. A ausência de legislação não pode impedir a concretização dos dispositivos constitucionais que asseguram a família como palco da realização pessoal, em que indivíduos se unem por laços de afetividade e solidariedade para, em conjunto, almejarem a realização pessoal e a busca pela felicidade.

 

 

Notas e Referências

[1] ANANIAS, Vanessa Drumond Patrus. Situação Jurídica patrimonial e existencial. 2019. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8120/Situacao-juridica-patrimonial-e-existencial

[2]OTERO, Marcelo Truzzi. Contratação da barriga de aluguel gratuita e onerosa: legalidade, efeitos e o melhor interesse da criança. Disponível em: http://pasquali.adv.br/public/uploads/downloads/microsoft_word_contratosgestacionais_27_01_2010.pdf.

[3]BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 2.168/2017. Brasília: DiárioOficial da União, 2017.

[4] MARINHO. Pedro Henrique Carreiro. Gestação por substituição x barriga de aluguel. Jusbrasil, 2020. Disponível em: https://phcmarinho.jusbrasil.com.br/artigos/809699757/gestacao-por-substituicao-x-barriga-de-aluguel?ref=serp

[5]MOREIRA, Raquel Veggi; REIS, Verusca Moss Simões dos. Gestação de substituição: implicações filosóficas e redefinição da noção de maternidade. Rev. Em Construção. n. 6. 2019, p. 266.

[6]FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reproduçãohumanaassistida e suasconsequênciasnasrelações de famíliaa filiação e aorigemgenética sob a perspectiva da responsabilização. Curitiba: Juruá, 2011, p. 112.

[7]MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962.

[8] MARTINS, Aline. Gestação por substituição: regime jurídico no direito brasileiro. Jusbrasil. Disponível em: https://alinemartinssantos.jusbrasil.com.br/artigos/334345618/gestacao-por-substituicao-regime-juridico-no-direito-brasileiro?ref=serp

[9] AGUIAR, Mônica apud MARTINS, Aline. Op. Cit.

[10]DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2011.

[11]AGUIAR, Mônica. Direito à filiação e bioética. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

[12]BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm

[13]CNPMA. Fertilização in vitro ou microinjeção intracitoplasmática de espermatozóide. Consentimento informado. Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. 2020, p. 2. Disponível em: https://www.cnpma.org.pt/CNPMA%20Modelos%20de%20Consentimento/CI_02.pdf

[14]RAPOSO, Vera Lúcia. Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (e o legislador teve medo de responder). Revista do Ministério Público. jan./mar., 2017, p. 22 Disponível em: file:///C:/Users/Home/Downloads/2RMP_149_Vera_Raposo%20(1).pdf

[15] Ibidem, p. 16-17.

[16]TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Conflito positivo de maternidade e a utilização de útero de substituição. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo; QUEIROZ, Jeuliane Fernandes (coords.). Biotecnologia e suas implicações técnico-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 321.

[17]FERNANDES, Silvia da Cunha. As técnicas de reprodução humana assistida e a necessidade de sua regulamentação jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 70.

[18]BRASIL. Poder Judiciário do Estado do Mato Grosso do Sul. Vara da Fazenda Pública e Registros Públicos. 2014. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/2/art20150203-01.png

[19] Ibidem.

 

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