Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá
O contrato constitui negócio jurídico típico do direito privado, fundamentado, essencialmente, na autonomia da vontade e na concepção de igualdade formal entre as partes, contudo, não se restringe apenas a utilização por particulares, sendo adotado também pela administração pública, com as devidas adaptações necessárias para o ajustamento aos negócios públicos.
Não obstante, a existência de uma teoria geral do contrato, razão que justifica a observância aos princípios gerais dos contratos tanto na área privada quanto à seara pública, os contratos administrativos não se sujeitam “precisa, exata e integralmente ao regime de contratos privados”[1]. Assim, são resguardadas as especificidades dos contratos administrativos públicos, os quais são regidos por normas específicas do regime jurídico público, sendo o direito privado aplicado supletivamente nesses casos[2].
Nessa perspectiva, à luz do regime jurídico público, a priori, pode-se vislumbrar que os contratos administrativos devem ser pautados sempre com fundamento no interesse público, diferenciando-se dos contratos privados que se regulam pelo interesse dos contratantes, todavia, de maneira suplementar poderá o contrato administrativo ser regido por normas de direito privado com objetivo de dar solução a dilema não amparado pelo direito público. Por esse motivo, aliás, constata-se a possibilidade de alteração unilateral de cláusulas de serviço nos contratos públicos, que orientam os aspectos técnicos e administrativos da execução do negócio, diante da necessidade das obras e dos serviços públicos acompanharem o desenvolvimento técnico e os interesses da sociedade[3]. Portanto, diferentemente dos contratos privados, os contratos administrativos não são imutáveis.
Porém, essa premissa não se aplica a todas as cláusulas contratuais, não abrangendo as condições econômicas que definem a remuneração do particular e que garantem o equilíbrio econômico-financeiro do contrato durante toda a execução. Desse modo, caso se modifique o projeto ou ocorra de forma imprevista algum evento superveniente que aumente os encargos de execução e quebre com esse equilíbrio estabelecido inicialmente entre as partes, o ajuste deverá resultar de acordo bilateral entre o ente público e o particular contratado.
Nessa toada, é notório que a crise ocasionada pela pandemia de Covid-19 afetou, em âmbito global, todas as searas sociais, inclusive a econômica, produzindo, em grande parte, desequilíbrio econômico-financeiro nas relações contratuais, devido ao aumento de custos de execução, diante das dificuldades enfrentadas nesse período. Dentre esses diversos fatores, destaca-se a perda do valor da moeda nacional frente ao dólar, a limitação de funcionamento e desenvolvimento das atividades privadas, o aumento dos custos de matérias-primas, entre outros. Assim, é fundamental, diante desse momento atípico, discutir-se sobre o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos administrativos em tempos de pandemia.
Essa equação é definida inicialmente por ambas as partes na celebração do contrato, em que se estipula os encargos suportados pelo particular e sua correspondente remuneração na realização do objeto avençado.
A correlação entre encargo e remuneração pode ser compreendido como direito fundamental daquele que contrata com a administração pública[4], fato que justifica a manutenção desse equilíbrio como norma fundamental dos contratos administrativos, haja vista que as atividades econômicas necessitam de uma previsibilidade, alcançada por meio da segurança jurídica. Além disso, enquanto a administração visa atender às necessidades públicas, o particular tem por meta a obtenção de lucro.
De acordo com a definição legal de contrato administrativo em sentido amplo disposta no artigo 2º, parágrafo único, da Lei 8.666/1993, considera-se contrato “[...] todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que exista um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada[5]”. Assim, conforme leciona Marçal Justen Filho, “a lei indica um tipo de vínculo produzido por manifestação conjunta de acordo de vontades”, por conseguinte, “num contrato, as vontades das partes se conjugam para produzir um ato jurídico único”[6].
Tais premissas também devem ser observadas ao analisar o sistema de concessões de serviços públicos. Assevera Caio Tácito, “constituída a relação jurídica, tem o concessionário não somente o direito à exclusividade no desempenho da atividade concedida como o direito à plena cobertura ao custo do serviço nele compreendida a justa remuneração do capital [...]”[7].
No entendimento de Floriano de Azevedo Marques Neto, pode-se afirmar que a manutenção do equilíbrio econômico representa pressuposto do instituto de concessão. Como define o autor, a concessão fundamenta-se na perspectiva do poder público em fornecer uma melhoria a coletividade sem, em contrapartida, utilizar-se de recursos públicos. Logo, eventuais desequilíbrios financeiros ocorridos nessa relação resultariam em que a Administração Pública obtivesse bens e patrimônio em detrimento do concessionário. Além disso, o desiquilíbrio contratual põe em risco a continuidade do negócio[8].
Nesse tocante, é mister ressalvar que o sistema de concessão é regido, dentre outros, pelo princípio da ininterrupção da prestação e da adequação do serviço, no qual devem ser mantidos os padrões de qualidade da prestação, o que, em regra, se torna inviável diante de um desequilíbrio econômico e financeiro em favor do Estado. Importante destacar que em comparação com os contratos administrativos em sentido estrito, nas concessões esse desajuste pode ocorrer em função de uma gama de fatores muito maior, como ocorre com a “defasagem da tarifa cobrada, da imposição, direta ou indireta, de novos encargos para o concessionário, da alteração das condições de exploração do bem ou do serviço, ou de fatores externos [...]”[9].
Quanto aos contratos administrativos em sentido estrito, tem-se duas figuras, compreendidas em contratos de colaboração e contratos de delegação de competência. Segundo a definição apresentada por Marçal Justen Filho, o contrato administrativo em sentido estrito “é um acordo de vontades para constituir relação jurídica destinada ou a satisfazer de modo direto necessidades da Administração Pública ou a delegar a um particular o exercício de competências públicas”[10].
Trata-se de uma modalidade especial de contrato com regime jurídico diferenciado, em razão de sua relevância para a Administração Pública nas prestações pactuadas nesses contratos, as quais resultam em uma relação direta e imediata com o desenvolvimento das atividades estatais, o que justifica a existência de “competências anômalas em favor da Administração Pública e de garantias reforçadas para o particular”[11].
Essas garantidas concedidas ao particular são medidas que visam balancear a relação com a Administração Pública, pelo fato do ente estatal ser revestido de prerrogativas extraordinárias, resultando em uma submissão do particular. Dentre essas medidas, “assegura-se ao particular a manutenção da relação original entre encargos e vantagens, configurando uma contrapartida (e um limite) à existência das competências anômalas da Administração Pública”[12].
Assim, tem-se o equilíbrio econômico-financeiro como a “relação de igualdade formada, de um lado, pelas obrigações assumidas pelo contratante no momento do ajuste e de outro lado, pela compensação econômica que lhe corresponderá”[13]. Portanto, nas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, nas relações contratuais, a Administração Pública deverá atuar com “absoluta lisura e integral respeito aos interesses econômicos legítimos de seu contratante pois não lhe assiste minimizá-los em ordem a colher benefícios econômicos suplementares ao previsto e hauridos em detrimento da outra parte”[14].
Nesse âmbito, a proteção é ampla, englobando diferentes situações de incidentes contratuais, como os decorrentes de agravos econômicos resultantes das sobrecargas decididas pelo contratante no uso de seu poder de alteração unilateral do contrato; os agravos econômicos provindos de medidas tomadas sob titulação jurídica diversa da contratual; os agravos econômicos provenientes da inadimplência da Administração contratante; os agravos econômicos provenientes das sujeições imprevistas; e, com maior relevância para o presente estudo, os agravos econômicos sofridos em razão de fatos imprevisíveis produzidos por forças alheias às pessoas contratantes e que convulsionam gravemente a economia do contrato[15].
Essa última hipótese está relacionada com a Teoria da Imprevisão prevista nos artigos 478 a 480 do Código Civil, em casos que ocorram acontecimentos supervenientes e imprevisíveis no momento da celebração do contrato, que tornem a prestação do contrato excessivamente onerosa para uma das partes[16].
O artigo 65, inciso II, alínea “d”, da Lei n. 8.666/1993, ao regular sobre a alteração dos contratos, por acordo das partes, dispõe que o seguinte:
Para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
O artigo 65 da Lei 8.666, veio com o intuito de prever situações onde nenhuma das partes contribuem ou esperam o resultado, mesmo assim, alheio à sua vontade ele ocorre. E quando se deparam diante da evidencia de desequilíbrio na equação entre despesas e receitas surge a necessidade de equacionar a relação contratual por intermédio do instituto do reequilíbrio econômico financeiro.
Diante de todas essas premissas, é possível concluir que para caracterizar direito à manutenção do equilíbrio econômico financeiro do contrato necessário se faz que as condições iniciais da composição do valor proposto tenham sofrido algum desequilíbrio após firmada a relação contratual. Assim, correto afirmar que não apenas deve ser imprevisível, o fato gerador do desequilíbrio econômico financeiro, como também novo. Pois se o fato gerador existia a época da elaboração da proposta não é motivo que enseje repactuação de valores.
Por derradeiro, importante ressaltar que a comprovação do desequilíbrio financeiro deve ser pautada em minucioso levantamento de informações que demonstrem os elementos já exaustivamente expostos, ou seja, para que o reequilíbrio econômico financeiro ocorra é necessário evidenciar que o fato gerador do desequilíbrio contratual é novo e imprevisível, devendo a comprovação se ater em qual elemento contribuiu para essa necessidade de repactuação e em qual proporção. Pois será a análise desses fatores que trarão novamente o equilíbrio econômico para a relação contratual sem que altere o objetivo da proposta inicialmente obtida, quer seja no tocante aos lucros do contratado ou aos benefícios alcançados pela Administração Pública.
Notas e Referências
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 318.
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Reajustamento e recomposição de preços em contrato administrativo. Revista Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 139:11-21, jan./mar. 1980.
[3] Ibidem.
[4] WALINE, Marcel apud MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit.
[5] BRASIL. Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 26 set. 2020.
[6] JUSTEN FILHO, Marçal. Op. Cit. p. 302.
[7] TÁCITO, Caio. Equilíbrio financeiro nas concessões de energia elétrica. BDA, ano XII, n. 8, ago. 1996, p. 489.
[8] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Breves considerações sobre o equilíbrio econômico financeiro nas concessões. Revista Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 227:105-109, jan./mar. 2002.
[9] Ibidem. p. 106.
[10] Ibidem. p. 318.
[11] MARÇAL FILHO, Justen. Op. Cit. p. 320.
[12] Ibidem. p. 322.
[13] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 654.
[14] Ibidem, p. 656.
[15] Ibidem, p. 658.
[16] CERA, Denise Cristina Mantovani. Quais são os elementos que compõem a teoria da imprevisão? Jusbrasil, 2010. Disponível em: <https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2527699/quais-sao-os-elementos-que-compoem-a-teoria-da-imprevisao-denise-cristina-mantovani-cera>. Acesso em: 26 set. 2020.
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