Muito tenho escrito sobre a importação acrítica de institutos e princípios processuais dos países que adotam o chamado “sistema adversarial”.
Vários destes breves e singelos estudos estão registrados neste site do Empório do Direito. Alguns antecedem mesmo à criação desta coluna.
Sempre invocando o magistério do grande mestre José Carlos Barbosa Moreira, consubstanciado em inúmeros de seus trabalhos publicados em sua vasta obra “Temas de Direito Processual”, tenho criticado a amplitude dos trazidos ao processo penal desde a lei n.9.099/95 e, principalmente, pela lei n.12.850/13, que disciplinou – muito mal – os acordos de cooperação premiada (delações premiadas).
O novo Código de Processo Civil também outorgou às partes processuais amplos poderes dispositivos, inclusive em relação ao próprio procedimento em juízo.
Saliento que a minha crítica, vinculada ao processo penal, tem sido mais contundente em relação às interpretações ampliativas das regras jurídicas que disciplinam estes acordos e em relação à sua aplicação nos casos concretos.
Tenho dito que tudo isto retrata o neoliberalismo econômico, trazido para o nosso sistema jurídico. Caminhávamos para uma salutar publicização do Direito em geral. Agora, com o novo e perverso modelo econômico, retrocedemos na direção de uma perspectiva privatista do nosso Direito. Privilegia-se a vontade das partes privadas – nem sempre livre e consciente – em detrimento de normas jurídicas, algumas até públicas, por isso de eficácia cogente ...
Este fenômeno corrobora a assertiva de Karl Marx de que a estrutura econômica de uma determinada sociedade acaba condicionando a sua cultura, onde está inserido o próprio Direito.
Ouso dizer que a grande maioria dos nossos juristas hoje está vinculada ao pensamento liberal. Seu textos acríticos refletem esta falta de conexão com a realidade social.
Entretanto, como, nesta vida, nunca tudo está perdido, como diz o grande poeta, compositor e cantor Zé Geraldo, ainda encontramos alguns juristas modernos mais críticos em relação a esta tendência privatista. Minha alegria e grata surpresa é que, dentre eles, encontramos renomados professores de Direito Processual Civil. São eles os doutores Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero.
Aliás, peço licença para deixar consignado que, já nos idos de 1982, publiquei a minha dissertação de mestrado com o sugestivo título “Da Publicização do Processo Civil”, pela antiga editora Liber Iuris.
Após advertirem que muitos dos países que têm ampliado o cabimento dos “acordos processuais” têm organização diversa da nossa e que as matérias vinculadas ao Direito Público são destinadas a julgamento de órgãos judiciais ou administrativos diversos, os supra citados autores escreveram o que vai transcrito abaixo, com meu integral endosso:
“Essa privatização do processo civil desconsidera todos os outros compromissos da jurisdição com seus mais elevados fins. Ao eleger a tutela do interesse das partes como primordial, o Código menospreza todos os outros valores que conformam o Estado e a atividade jurisdicional. Recorde-se que o processo civil brasileiro tem premissas muito diferentes, por exemplo, do processo civil estadunidense (pautado em grande parte pelo ‘adversary system’), em que se valorizam extraordinariamente a iniciativa e a condução da parte em favor da autonomia da vontade”. (Novo Curso de Processo Civil, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2015, vol.1, p.533).
Mais adiante, após algumas relevantes considerações críticas a esta tendência de privatização do processo civil brasileiro, asseveram Marinoni, Arenhart e Midiero:
“Em conta disso, é preciso tomar com cautela a tendência à contratualização do processo civil, a fim de que esse não se converta em mero instrumento privadode solução de litígios. Lembre-se que de que mesmo países tradicionalmente ligados ao ‘adversarial system’, em que exaltam os poderes de disposição processual das partes, diante das injustiças que esse sistema é capaz de produzir, optaram por outorgar maiores poderes de condução do processo ao juiz (case management). O ideal, portanto, é que se possa prestigiar a autonomia das partes sem negar ao processo sua função de tutela dos direitos na dimensão da Constituição”. (obra citada, p.533, in fine).
Ora, se esta crítica vale para o novo Código de Processo Civil, o que dizer de determinadas práticas privatistas utilizadas no processo penal em nosso país, ainda que com bons propósitos?
Importante notar que aqui, no processo penal, estão privilegiando “o negociado em detrimento do legislado”, como se costuma falar em face da nefasta reforma trabalhista que se pretende implantar no país.
Notem que aqui estamos tratando de regras de processo penal e de Direito Penal, vale dizer, estamos cuidando de Direito Público. Como aceitar que seja ele negociado por um membro do Ministério Público e por um réu, que confessa crimes graves, inclusive no seio de organizações criminosas? Como aceitar que um criminoso – posso assim falar, em razão da sua confissão – tenha poderes para negociar sua pena e criar regimes de cumprimento de pena de prisão não previstos na legislação e também em circunstâncias que violam o que está disposto nela?
Desta forma, o máximo que se pode admitir é que o “prêmio” do delator seja restrito apenas aos benefícios expressamente previstos no art.4º da lei n.12.850/13.
Ademais, como já me opus em alguns dos trabalhos referidos no início deste texto, alguns juristas e profissionais do Direito buscam mitigar drasticamente o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública, porta aberta para o deletério instituto da “play barganing”. Há propostas legislativas admitindo que, em futura legislação, possa o Ministério Público escolher, discricionariamente, que acusações fará ou não.
Aliás, tal danosa seletividade já se manifesta na escolha dos casos em que o Ministério Público faz o “papel de polícia”, através da chamada “investigação direta” ...
Enfim, entendo que o Estado Democrático de Direito exige que tenhamos um Direito Penal e um Direito Processual Penal com o mínimo de discricionalidade, onde os direitos das pessoas não fiquem ao sabor de “negócios processuais” ou de vontades discricionárias de agentes públicos ou políticos.
Notem que estou apenas pugnando pelo primado da legalidade, colocado em risco pelo exagerado, voluntarioso e perigoso “ativismo judicial”.
Repito, mais uma vez: o excesso de poder discricionário, no chamado “sistema de justiça criminal”, não é compatível com o Estado Democrático de Direito. Isto vale também para o Ministério Público e para as polícias, quando estão desempenhando a necessária atividade de polícia judiciária.
Imagem Ilustrativa do Post: "The Justice" - San Francesco di Paola Church in Naples (1817-1836) // Foto de: Carlo Raso // Sem alterações
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