Necessidade de Efetivação da Lei da Reforma Psiquiátrica no Processo Penal: Medida de Segurança e Dignidade da Pessoa Humana

26/03/2016

Por Marcelo Masô - 26/03/2016

A partir da última quadra do século XX, o tratamento penal concedido ao inimputável em virtude de doenças psiquiátricas tem sido mais humanizado - embora esteja longe de atingir as determinações estabelecidas na Lei 10.216/01 (Lei da Reforma Psiquiátrica), a qual vai ao encontro de um princípio norteador da Constituição de 1988: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

No Brasil, durante boa parte do século XX, os intitulados “loucos” eram mantidos encarcerados em condições deploráveis, como ocorreu na Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro. O local foi considerado o maior manicômio da América Latina, com mais de três mil leitos, colecionando histórias de tratamento desumano em relação aos pacientes.

Felizmente com a virada do século XXI, trancafiar os doentes psiquiátricos passou a ser a última opção de tratamento, vide a experiência bem sucedida do tratamento ambulatorial com muitos pacientes do Instituto Philipe Pinel - RJ, o qual possui equipe multidisciplinar capacitada para dar o merecido e necessário tratamento ao doente psiquiátrico.

A partir de 2001 com o advento da Lei 10.216/01 a luta pelo tratamento humanizado dos enfermos passou a permear a seara do Direito Penal, concedendo direitos e conferindo tratamento mais humanizado aos pacientes.

Absurdamente, os inimputáveis sempre foram vistos como verdadeiros estorvos sociais, no entanto, são indivíduos fragilizados e muitas vezes indefesos devido ao grau avançado da enfermidade psiquiátrica.

Colacionamos a seguir os artigos da Lei 10.216/01 que merecem ser respeitados pelo Poder Judiciário no processo penal, nos casos de inimputabilidade em virtude de enfermidades psiquiátricas, em especial o artigo quarto, eis:

Art. 2o - Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

Art. 4o - A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

  • 1oO tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.

Art. 6o  - A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Concernente ao regramento do Código Penal sobre a inimputabilidade há o artigo 26, caput e seu parágrafo único determinando a isenção de pena do agente absolutamente incapaz no momento da ação ou omissão e a redução da pena, de um a dois terços, do indivíduo relativamente capaz de entender ou de determinar-se ao tempo da ação praticada.

No tocante às modalidades de medidas de segurança, o artigo 96 do Código Penal traz duas: a internação e o tratamento ambulatorial. Reside neste ponto o grande entrave à efetividade da Lei da Reforma Psiquiátrica no processo penal. Os magistrados interpretam de forma literal o artigo 96 e o artigo 97 do Código Penal desconsiderando as situações peculiares de cada caso. O artigo 97 do CP determina a internação (medida encarceradora) do paciente quando os delitos imputados forem puníveis com reclusão e o tratamento ambulatorial (medida restritiva) apenas para os delitos passíveis de punição com detenção.

Os pacientes submetidos à Medida de Segurança podem enfrentar o encarceramento por longos anos, sendo autorizados a retornar ao convívio em sociedade somente após serem avaliados positivamente no Exame de Cessação de Periculosidade e tendo, logicamente, uma decisão judicial autorizando a desinternação, a qual pode perdurar por até trinta anos conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[1].

Entretanto, nem tudo é obscurantismo, o professor Sérgio Verani, no exercício da magistratura no Tribunal de Justiça do Estado do RJ, foi pioneiro ao aplicar a Lei da Reforma Psiquiátrica no processo penal, mitigando a literalidade do artigo 97 do Código Penal em prol do melhor tratamento do inimputável. Observe-se trechos importantes do voto do magistrado supramencionado no processo 0041996-37.2004.8.19.0000:

APELAÇÃO DES. SERGIO DE SOUZA VERANI - Julgamento: 07/06/2005 - QUINTA CÂMARA CRIMINAL - 0041996-37.2004.8.19.0000

TRATAMENTO AMBULATORIAL. CRIMES APENADOS COM RECLUSAO. POSSIBILIDADE

(...) Possibilidade de tratamento ambulatorial. A segregação hospitalar determinada no art. 97, CP, dependerá, sempre, de indicação terapêutica sobre a sua necessidade, ainda que o fato seja punido com reclusão. Essa norma impositiva da internação compulsória torna-se invalidada ante o desenvolvimento democrático da psiquiatria, especialmente com o movimento da luta antimanicomial, a inspirar a Lei 10.216/2001(...)

(...) Também a internação "determinada pela Justiça" vincula-se aos princípios normatizados pela nova lei, que "dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental". Se inexiste recomendação terapêutica sobre a necessidade da internação manicomial, indicando-se, ao contrário, que a ré deve "manter-se sob tratamento psiquiátrico ambulatorial", assim deverá ser cumprida a medida de segurança. Recurso provido. (grifou-se)

O Superior Tribunal de Justiça também, timidamente, tem em alguns julgados procurado adequar sua jurisprudência à Lei da Reforma Psiquiátrica, confira-se a ementa do julgado abaixo de relatoria do Ministro Nefi Cordeiro:

AgRg no REsp 832848 / AC - DJe 03/02/2015

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME APENADO COM RECLUSÃO. INIMPUTABILIDADE.  ABSOLVIÇÃO IMPRÓPRIA. TRATAMENTO AMBULATORIAL. POSSIBILIDADE. DECISÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

  1. A definição da medida de segurança não se vincula à gravidade do delito, mas à periculosidade do agente, sendo possível ao magistrado a escolha do tratamento mais adequado ao inimputável, ainda que a ele imputado delito punível com reclusão, desde que fundamentadamente, em observância aos princípios da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade. 2. Descabida a pretensão de substituir medida de segurança detentiva por recolhimento prisional, ainda que inexistente vaga em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico.
  2. Agravo regimental improvido.

Noutro prisma, o Conselho Nacional de Justiça referendou a Luta Antimanicomial editando resolução 113/2010, a qual dispõe, no artigo 17, o seguinte teor:

Art. 17. O juiz competente para a execução da medida de segurança, sempre que possível buscará implementar políticas antimanicomiais, conforme sistemática da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001.

Os doutrinadores de processo penal têm opinião contundente sobre a necessidade de dar efetividade à Lei da Reforma Psiquiátrica no processo penal, a título de exemplo citamos o professor Salo de Carvalho e o jurista Paulo Vasconcelos Jacobina, respectivamente, note-se:

“Se a reivindicação do movimento antimanicomial consagrada na Lei n. 10.216/01 é a de que os usuários dos serviços de saúde mental não sejam estigmatizados em manicômios e que em caso de necessidade de intervenção médica aguda recebam tratamento nos hospitais gerais, é injustificável a exclusão daquele portador de transtorno que se difere pelo cometimento do ilícito. Os avanços da reforma psiquiátrica, portanto, devem ser universais e incorporados nas práticas do sistema penal[2] (grifou-se)

“Assim, o fato de a Lei da Reforma Psiquiátrica não expressar a revogação dos dispositivos incompatíveis no Código Penal e na Lei de Execução Penal não significa que esses dispositivos não tenham sido revogados. Citem-se, como exemplos, os §§ 1º e 2º do art. 97, com seus prazos mínimos obrigatórios para a realização e repetição de regimes (com seus correlatos arts. 175 a 179 da Lei de Execução Penal), incompatíveis com o princípio da utilidade terapêutica do internamento, previsto no art. 4º, § 1º, da Lei da Reforma Psiquiátrica, ou com o princípio da desinternação progressiva dos pacientes cronificados (art. 5º da Lei da Reforma Psiquiátrica).[3] (grifou-se)

Durante a militância nos casos de inimputabilidade percebemos grande dificuldade de os magistrados terem a compreensão de não ser o doente psiquiátrico um ser “idiotizado”, o qual possui cognição e mecanismos de defesa. Neste sentido, são válidas as lições transmitidas pelo psiquiatra  forense doutor Talvane de Moraes e pelo doutor Jarbas Lopes, as quais expressamos, de forma livre: é preciso esclarecer não ser o doente psiquiátrico desprovido de inteligência, de mecanismos de defesa, ele apenas vivencia realidade paralela e em muitas ocasiões pode ter alucinações visuais, auditivas e delírios.

O inimputável não pode ser tratado como ser abjeto, ao contrário, necessita de muito zelo e proteção. A mídia tem conferido aos casos de inimputabilidade penal caráter especutalarizado, sem ter a preocupação de poupar uma mente já fragilizada, expondo a imagem do doente psiquiátrico. Diante deste cenário é essencial mencionar os ensinamentos do professor Rubens Casara: “No processo Penal voltado para o espetáculo não há espaço para garantir direitos fundamentais.”[4]

É primordial continuar a luta pela desospitalização psiquiátrica, assim como pela aplicação efetiva da Lei 10.216/01 no processo penal a fim de garantir o melhor tratamento ao doente psiquiátrico. É de suma importância também proceder com o fim dos intitulados hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, verdadeiras prisões onde a lógica de tratamento é diametralmente oposta ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, consagrado no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal.


Notas e Referências:

[1] HC 84.219/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJ 23.9.2005

[2] CARVALHO, Salo de. Penas e Medidas de segurança no direito penal brasileiro: fundamentos e aplicação judicial, São Paulo: Saraiva, 2013, p. 530.

[3] JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito Penal da Loucura. Brasília: ESMPU, 2008.p. 111.

[4] CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira, Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 12.


 EU TERNO (2) .

Marcelo Masô é Advogado e Professor na Universidade Cândido Mendes-RJ.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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