Coluna Por Supuesto
Faz um tempo tive a oportunidade de ler um artigo do professor John Taylor, escrito em 1992 para a The Review of Politics, que abordava as “épocas políticas” na Corte dos Estados Unidos. O artigo é muito instigante porque, entre outras coisas, desde o começo e citando outros autores, expõe idas e vindas daquele Tribunal: “O Supremo Tribunal, proclamava Dooley, segue os resultados eleitorais. Na opinião do professor White, o Supremo Tribunal situa-se no vértice do ‘poder judiciário autocrático de uma sociedade democrática´. As orientações dominantes no Supremo Tribunal, concluía o Professor Dahl num famoso artigo, ‘nunca estão por muito tempo desalinhadas das orientações dominantes nas maiorias legisladoras dos Estados Unidos.’ O Supremo Tribunal, escreveu o juiz Jackson, ‘quase nunca é uma instituição verdadeiramente contemporânea. As nomeações vitalícias no poder judicial, por oposição com as eleições a curtos intervalos para o Congresso, mantêm normalmente a corrente de opinião média das duas instituições desfasada uma geração. O poder judicial é assim o controlo da geração precedente sobre a atual; um controlo de filosofia legal conservadora sobre um povo dinâmico, e quase sempre o controlo de um regime rejeitado sobre o regime existente”.
Como se vê, o tema do artigo é a relação entre a Corte e os governos. No Brasil, a interação do STF com as demais ramificações do poder não tem sido isenta de contradições e entreveros, especialmente nestes tempos. O assunto não é novidade. Trata-se da capacidade de, tomando consciência dos limites, envolver-se em provas de força com os que atentam, por ação ou omissão, contra a Constituição.
Por cautela o contexto merece ser descrito, até para tentar entender um pouco a complexidade do situações entre as quais se movimenta a Corte. Desde a interdisciplinariedade, sociólogos advertem que o Brasil vive a ruptura dos consensos societários construídos na redemocratização do país. Para nós nunca houve um consenso real. Houve sim concessões entre atores para uma transição, mas isso não eliminou de modo algum as contradições fundamentais da sociedade brasileira. Na década de 90 o pacto nacional pela democracia como regime político se projetou de maneira forma, para constitucionalmente avançar à efetivação dos objetivos estabelecidos no artigo 3º da Carta: construir uma sociedade livre, justa e solidaria, erradicar a pobreza e a marginalidade, vencer os preconceitos de qualquer tipo e encarar as desigualdades regionais. Porém, esse pacto careceu de bases reais, especialmente quando ficou claro que uma parte poderosa das forças econômicas pressionou e impôs o retornou a um neoliberalismo que quebrou as bases da ordem estabelecida no Título VIII e as emendas constitucionais desconfiguraram as intenções de arregimentar um sólido Estado de bem-estar. Já temos dito isso em outras colunas e sustentando com maiores argumentos, especialmente na obra coordenada pelo constituinte Aldo Arantes intitulada “Por que a democracia e a Constituição estão sendo atacadas?”.
Também os cientistas políticos ilustram que o consenso de freios e contrapesos e de um Estado fundado na relação harmônica entre os órgãos que exercem poder foi quebrado no 2016, quando o Direito ficou infelizmente subordinado à precariedade e mesquinhez de objetivos políticos dos grupos de poder e da elite mais reacionária, cujo potencial corrosivo foi de tal proporção que operacionalizou uma mudança institucional e finalmente um governo abertamente na contramão da Constituição.
Desde logo, o plano estritamente jurídico se relaciona com os dois primeiros campos. O sacrifício do Direito tem sido doloroso, especialmente no campo processual penal, no qual o princípio do juiz natural, que implica tanto a competência constitucional como a imparcialidade na atividade judicante, foi abertamente agredido, resultando ao final um período de conclusões jurídicas contraditórias no próprio STF, com resultados nefastos para a democracia.
Juntando as advertências doutrinárias com a interpretação do cenário, não entender que a nomeação do ministro do STF em qualquer circunstância é uma questão crítica e determinante resulta em uma simplificação indesejável e sobretudo ingénua. A isto temos que adicionar, no mínimo, fatores como a opinião pública, o comportamento eleitoral e a rejeição às medidas governamentais tomadas especialmente durante a pandemia, que se entrelaçam com as expectativas ao redor de quem deva participar logo mais nas decisões de defesa da Constituição. Estamos, portanto, ante uma questão de realismo político que implica uma certa previsão sobre a prevalência de um modo de compreender o Direito.
O Brasil não somente precisa de uma eleição alinhavada, como deveriam ser todas, pelas exigências formais da Carta – notável saber jurídico, idade, reputação ilibada, nacionalidade -, ou de um Ministro, também como devem ser todos, substancialmente comprometido com os objetivos e opções constitucionais. Isso é da práxis jurídica e política de tempos de estabilidade. Porém, hoje os Ministros precisam também ter capacidade de enfrentar pressões, que não são poucas, dirigidas contra eles e contra o próprio STF. Ainda escrevendo esta coluna fazemos leitura de uma declaração do Chefe de Executivo contra o Ministro Presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, deselegante, ameaçadora, imprópria e que é, novamente, em caracterização não abusiva nem exagerada, um crime de responsabilidade.
De fato, o STF tem sido desafiado a contrariar, em frequentes decisões, as iniciativas de uma emergente reação anticonstituição, apoiada em setores descompromissados com a Carta de 1988. A Corte se posicionou no Mandado de Injunção 7.311. Rel. Min. L.R. Barroso, contra o suposto hegemónico poder moderador das forças armadas; na ADI 6547, Rel. Min. L. Fux, determinou, também, que “A prerrogativa do Presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos outros poderes constitucionais – por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados –, não pode ser exercida contra os próprios Poderes entre si; nas ADI 6343, Rel. Min. Marco Aurélio e 6362, Rel. Min. E.R. Lewandowski, proclamou o federalismo cooperativo e condenou a ausência de uma política coordenada desde a União junto aos demais entes – DF, Estados e Municípios – para atender a crise sanitária; na ADI 6347, Rel. Min. A. de Moraes, a Corte determinou a obrigação da Administração Pública de informar com transparência os impactos da pandemia no país.
Mencionamos somente algumas decisões, mas há outras tantas que de alguma forma tem incomodado ao Executivo, muito embora todas tenham sido pautadas, literalmente, em sadia hermenêutica constitucional. O lamentável no país é que o inegável desconforto presidencial ocasiona tal grau de contrariedade a seu projeto político que a figura não somente rejeita a decisão publicamente, senão que agride e ameaça, em tom de desafio e com o baixo calão com o qual costuma se expressar, ao TSE, ao STF e a qualquer Corte ou juiz. E depois ataca deputados, senadores, e a todo aquele que se atravesse a suas vontades de príncipe do medievo.
É sabido que neste presidencialismo de elevada estatura o chefe do Executivo tem a faculdade constitucional de nomear os Ministros. Desde logo, após sabatina do Senado e cerimonia de posse, os textos normativos de qualquer ato do Poder Público podem passar a ser examinados pelo novel magistrado, nos termos das técnicas de fiscalização de constitucionalidade.
Os textos podem ser afetados por interpretações restritivas ou ampliativas, porém, a concretização do Direito, que implica a construção da uma decisão em cuja base há comandos normativos, implica manter o texto constitucional como uma referência de interpretação inevitável e inelutável. Ainda que nenhum intérprete seja neutral e toda decisão contenha, pela própria práxis do Direito, uma decisão política, o Magistrado não pode produzir normas como quer ou do jeito que quer. A discricionaridade judicial, como indica E. Grau, é somente possível na formulação de juízos de legalidade e de constitucionalidade e não pode comportar a subjetividade do agente. A força normativa da Constituição e a supremacia constitucional são as balizas de hoje e de sempre.
Com tal cenário, a reprodução da política como arte de servir ao interesse público, fundada na democracia menos imperfeita possível, bem como o Direito – teoria e dogmática-, construção dirigida à máxima efetividade dos direitos fundamentais, requer mesmo de Ministros “terrivelmente constitucionais”. Não pode haver outro compromisso senão com as opções do constituinte de 1988, especialmente com a dignidade humana. Precisam-se Ministros que assustem e sejam fastidiosos aos que pretendem impor retrocessos de autoritarismo. Ministros para um STF que controle os desaforos pseudofascistas que assomam; Ministros que mantenham a relação equilibrada entre os órgãos que exercem poder. Ministros para os horizontes de um novo tempo, Por supuesto.
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