Coluna Empório Descolonial/Coordenador: Márcio Berclaz
Há muito tempo nas águas da Guanabara as mudanças das marés e das luas testemunham um modelo de hierarquização entre humanos e de (im)possibilidades de seguir sendo que não são exclusivas daqui, não se constituem como eventos isolados e continuam a marcar o que vem pela frente.
Os tiros que executaram Marielle e Anderson, os pneus que arrastaram Claudia da Silva Ferreira há quatro anos, as fardas que impediram que a marcha contra a farsa da abolição em 1988 alcançasse o monumento a Zumbi, as togas que condenaram Rafael Braga contrariando ou impedindo a constituição de provas periciais, a subnotificação dos assassinatos contra a população transvestigênero constituem-se como alguns exemplos do que ocorre rotineiramente com os corpos que compartilham marcadores identitários com as/os citadas/os.
Cada faceta dessa realidade permite mostrar uma parte do que nos constitui como sociedade e do que são feitas nossas Instituições. Mostram o racismo que se manifesta institucional e intersubjetivamente, dimensões muito pouco visibilizadas nas imagens que se (re)produzem sobre o Brasil. Mostram que o ódio que mata decorre daqueles que determinam o padrão do humano, do que merece respeito e proteção, da(s) vida(s) que importa(m).
A execução de Marielle e Anderson gerou uma repercussão inter/nacional e comunitária compatível com o alcance da luta que ela empreendeu entre nós. Marielle reuniu em um só corpo a firmeza na luta e o sorriso acolhedor; demandas históricas de grupos (negros, mulheres, LGBTTs, pobres e trabalhadores) e a defesa de direitos “universais”[2]; uma trajetória de “superação”[3] e de compromisso permanente com as posições sociais que a forjaram; a aposta genuína em um projeto de Estado e de política democráticos, apesar da ciência de suas limitações.
Mas, o quê motivou as pessoas a se mobilizarem contra a execução de Marielle e Anderson? Por que os mesmos motivos, presentes em tantas outras mortes, não geram o mesmo efeito? ATENÇÃO: não estou aqui falando de vítimas abstratas da violência do RJ (alegadas pelas forças de insegurança representadas pela intervenção militar ou em mensagens que buscam “igualar” por conveniência zona do ser e zona do não ser apenas e muito limitadamente na morte). Estou falando da morte de Claudia da Silva Ferreira, por exemplo, ou do menino Benjamin, de 1 ano, Maria Lúcia da Costa, de 58 anos e José Roberto Ribeiro da Silva, de 54 anos no Complexo do Alemão dois dias depois de Anderson e Marielle.
Estou, portanto, falando da morte violenta de gente preta, de mulheres pretas, de homens e crianças pretas assassinadas(os) por um projeto político genocida, racista, patriarcal e heteronormativo. São todos crimes políticos, apesar do conceito de político só ser reconhecido por muitos no caso de Marielle e Anderson. O que faz com que algumas mortes registrem e outras não?
Em regra, sofrimento impingido a corpo negro e indígena nesse país não registra. O constitui! Conforme palavras do Prefeito do Rio de Janeiro, o bispo Marcelo Crivella, no dia 07 de março de 2018: “Tudo na vida pode ser perigoso. [...] É impossível também você fazer uma incursão na comunidade carente sem que haja uma certa ação de violência porque a criminalidade ali é muito grande, é muito forte”[4]. No mesmo dia, o General Augusto Heleno (ex-comandante das tropas brasileiras no Haiti), falou na Escola Superior de Guerra: “O verbo da missão é eliminar. Ou bota na cadeia ou mata. [...] A Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia” [5].
A autorização pública para relativizar o valor da vida e da humanidade de boa parte da população brasileira é tão expressiva que trechos como esses são repetidos sem nenhum constrangimento por pessoas que ocupam diferentes posições institucionais. Prefeitos, comandantes, desembargadoras, parlamentares, são muitos os desrespeitos que circulam o tempo inteiro entre nós, inclusive em momentos de luto público e reconhecido. Muitos dos que estiveram fisicamente presentes nos atos do dia 15 de março de 2018 ou de alguma forma se mobilizaram contra o assassinato cruel e covarde de Marielle e Anderson não registram, nos mesmos termos, mortes de gente negra, indígena, mulher, favelada e LGBTT. E continuam não registrando, mesmo depois de bradar a continuidade do legado político de Marielle.
O lugar de poder ocupado por Marielle a aproximou de uma zona (a do ser) e abriu a porta para que seu sangue fosse sentido em outras cercanias. Mas, ela nunca ocupou verdadeiramente esse lugar. E, foi a morte brutal e sem ameaças anteriores que fortalecem essa hipótese. Estava-se diante de corpos que habitam a zona do não ser. Sobre eles, historicamente se pode dispor, violentar e matar sem necessidade de aviso ou ameaças. São corpos sobre os quais, normalmente, não há luto. Não que a zona do não ser não chore, não vele os seus e suas, não seja corroída a cada vida perdida. Mas, sua dor não é reconhecida como dor válida. Como dor humana. Como dor política.
Há, ainda, aqueles que sequer registraram as mortes. Comemorações sobre os gols do Flamengo e a greve de juízes para defender o auxílio-moradia foram as manifestações mais sutis nesse sentido. Houve os que mobilizaram energias para investir contra a memória de Marielle e Anderson, que relincharam uma série de aspectos que, em suas narrativas tão bárbaras quanto desprezíveis, justificariam a violência sofrida. Há os que se utilizaram da dor coletiva para cuspir na cara de quem morreu e de quem estava chorando, deturpando tudo o que levou Marielle e Anderson à morte e que uniu muita(o)s pelo mundo.
Mas, houve muita gente que enfrenta a morte e os processos de morte em vida como desafio permanente de sobrevivência e que a morte de Marielle e Anderson abateu de um jeito devastador. Vi mães de muita luta cujos corpos tombaram diante do enterro de alguém que esteve ao seu lado na luta pela responsabilização dos que mataram seus filhos e filhas. Vi jovens e velhas mulheres que foram brutalmente lembradas da vulnerabilidade de seus corpos, principalmente nos espaços de poder. Vi transvestigêneres que perderam um raro lugar de interlocução e luta política horizontal. Vi um povo preto cansado. Cansado da covardia da branquitude (e da culpa narcísica que a acompanha), do escárnio contra sua dor e sua memória, mas sobretudo, cansado de responder pacificamente às seculares e genocidas investidas contra sua gente.
Marielle escreveu dias antes de sua execução: “Quantos mais precisarão morrer?”. O que mais precisa acontecer para que a sociedade brasileira entenda que não pode construir bem-estar, liberdade, propriedade, igualdade, democracia, desenvolvimento e ordem sobre sangue preto e indígena? O que mais precisa ser feito para que os defensores dos “direitos para humanos direitos” sejam confrontados com o óbvio? Com as mortes em série que produzem com dinheiro público (nos quartéis, nas delegacias, nos hospitais públicos, nas escolas públicas, nos gabinetes do executivo, legislativo, judiciário e órgãos do sistema de justiça) ou com sua cumplicidade?
O que falta para que a sociedade brasileira tome vergonha na cara? Que seja capaz de construir seu pacto de civilidade, que só vai acontecer a partir do momento que nossa igual humanidade for efetivamente exercida e não esbarre “nos quase”: quase da família, quase humano, quase cidadão, quase de bem, mulher quase honesta …
Diferente do que ocorre com boa parte das mortes dos seus e das suas, Marielle e Anderson mobilizaram muitos e muitas de nós. Muitos foram os abraços trocados nas ruas entre pessoas que se trataram como humanas. Não percamos mais essa oportunidade. Não há democracia onde os privilégios permanecem intocados. Não há justiça onde o sistema de justiça opera para garantia da legalidade para a zona do ser e para perpetuação da violência na zona do não ser. Não há possibilidade de segurança se as forças de (in)segurança tem como modelo o que fizeram no Haiti e o que fazem nas fronteiras e favelas.
Dia 21 de março é considerado o Dia Internacional de Eliminação da Discriminação Racial e Dia Internacional da Síndrome de Down. Data emblemática para marcar compromissos importantes enquanto sociedade, se é que o comprometimento com o legado de Marielle é capaz de durar pouco mais de uma semana. No Rio de Janeiro, às 16h30m, sairá a “Marcha 21 Dias- 30 anos depois”.
Em 1988, no dia 11 de maio, o Centro do Rio de Janeiro amanheceu ocupado por forças militares. Estava marcada para o fim da tarde a “Marcha pela farsa da abolição”. Negros e negras, que pretendiam oferecer a sua narrativa sobre centenário da abolição, perceberam a truculência dos fardados antes mesmo de marchar. O trajeto da Candelária até o monumento de Zumbi dos Palmares tem pouco mais de 2 Km, um trecho considerado ousado demais para exercício de liberdade para negros e negras, mesmo 100 anos depois da assinatura da Lei Áurea. O racismo do exército brasileiro e do aparato de segurança impediu com violência que a negrada reafirmasse simbolicamente seu pacto de liberdade com Zumbi.
Em 2018, espera-se uma marcha quilombista. Junto com a negrada, espera-se contar com todos os corpos comprometidos com liberdade e democracia, cada um/a do seu lugar. No trajeto, serão reafirmados vários compromissos. No Cais do Valongo (a licença dos ancestrais), passando pela Pedra do Sal (com homenagem à estiva), pelo Largo da Prainha (para lembrar Mercedes Baptista), pela Praça Mauá (para reproduzir o grito das famílias desabrigadas pelo Porto Maravilha e honrar Tupinambás e Puris), pela Praça XV (reverenciando João Cândido) vamos marchar até a Associação Brasileira de Imprensa, onde Carlos Alberto Caó e Marielle Franco serão lembrados por sua luta antirracista e pelos esforços de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. 30 anos depois, vamos marchar até onde o racismo das forças de segurança permitirem. Será que encontraremos os mesmos abraços do dia 15 de março? Marielle, Anderson, Benjamim, Maria Lúcia, José Roberto, Claudia e todos e todas que antes e depois deles tombaram estarão, certamente, presentes!
NOTAS:
[1] Título inspirado em fala de Iya Nla Beata de Yemonja. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=K0xLn49af2A>.
[2] Coloco o termo universais entre aspas para indicar que sua utilização confronta as narrativas hegemônicas sobre direitos humanos. Não existem direitos univerais como naturais, ahistóricos e passíveis de serem exercidos por toda e qualquer pessoa, independentemente de seu posicionamento no mundo. Essa é uma narrativa que só faz sentido para quem se privilegia dela, sustentando sua possibilidade de liberdade, igualdade, propriedade e segurança nas violências permanentes aos corpos e experiências dos considerados não humanos.
[3] Coloco o termo superação entre aspas não por discordar do fato de que a trajetória de Marielle contrariou os indicadores sociais acoplados a seus marcadores identitários. Mas, para indicar que a maneira pela qual o termo vem sendo defendido por aí me incomoda profundamente. Utilizar o termo para sobrerresponsabilizar grupos vulneráveis pelos efeitos desproprocionais da violência a que estão submetidos é de um deboche inaceitável. Superação aqui tem o sentido de pôr em negrito todos os dispositivos de violência que imobilizam vidas e possibilidades de desenvolvimento pleno, de responsabilizar todas e todos os que se privilegiam da precariedade estrutural de muitos e muitas, de devolver aos “bem intencionados” o desconforto que trajetórias como a de Marielle costumam purgar.
[4]Matéria disponível em < https://oglobo.globo.com/rio/crivella-diz-que-impossivel-entrar-em-comunidade-carente-sem-violencia-22465721>, acesso em 07 de março de 2018.
[5] De acordo com matéria de Marco Aurélio Canônico: “Rio, Haiti, Araguaia”. Disponível em < https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marco-aurelio-canonico/2018/03/rio-haiti-araguaia.shtml> , acesso em 08 de março de 2018.
Imagem Ilustrativa do Post: Seminário discute raça, gênero e segurança // Foto de: Marcelo Lacerda // Sem alterações
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