Não existem limites constitucionais e legais à liberdade de imprensa ou de como todo direito é absoluto

10/02/2015

Por José Emílio Medauar Ommati - 10/02/2015

 

Em texto publicado no dia 07 de fevereiro de 2015 neste Empório do Direito, Rosberg Crozara apresenta o que, para ele, seriam os limites constitucionais e legais à liberdade de imprensa (leia aqui: http://emporiododireito.com.br/os-limites-constitucionais-e-legais-a-liberdade-de-imprensa/).

Segundo o articulista, todo direito apresenta limites, pois, se assim não fosse, os direitos das demais pessoas sucumbiriam, o que não seria democrático. Pretendo, contudo, nesse breve texto, mostrar o equívoco de tal posição que, por sinal, é compartilhada não apenas pelo articulista acima citado, mas pela maioria esmagadora da doutrina e jurisprudência brasileiras ao tratarem do tema dos direitos fundamentais. E se me dispus a escrever tal texto, não foi por uma questão pessoal em relação ao autor Rosberg Crozara, mas para que, quem sabe, paremos de afirmar e defender coisas sem sentido, como, por exemplo, que os direitos encontram limites. É bom que eu deixe claro que o texto não é um ataque pessoal ao referido articulista, afinal nem o conheço pessoalmente, pois no Brasil, em geral, ainda não se consegue debater ideias sem que se pense que o debate é de natureza pessoal, infelizmente!

Vamos ao ponto, então. Na verdade, se encararmos o Direito a partir de determinada perspectiva teórica, perceberemos que os direitos não entram em conflito, não são relativos e não apresentam limites. Em uma perspectiva que acredito ser mais adequada a uma democracia constitucional como a nossa, os direitos, todos eles, inclusive a liberdade de imprensa ou de expressão, são absolutos, ilimitados e não entram em conflito com qualquer outro direito.[1] Para que os mal entendidos sejam diminuídos, devo dizer como compreendo uma democracia constitucional e o farei brevemente, remetendo o leitor para minhas obras, caso deseje se aprofundar no assunto.[2]

Uma democracia constitucional é uma forma política na qual a comunidade se vê e trata a seus membros como dotados de iguais liberdades, formando o que se denomina de comunidade fraterna. Para isso, a comunidade deve se reconhecer reciprocamente direitos fundamentais, tais como os de igualdade, liberdade, propriedade, dentre outros. Nesse sentido, a fundamentalidade para a democracia tanto do respeito e fruição de direitos fundamentais por parte dos seus cidadãos, como de um mecanismo de controle judicial de constitucionalidade das leis que possibilite que a comunidade possa exercer seus direitos sem intromissões arbitrárias por parte do Estado. Assim, ao invés de o controle judicial de constitucionalidade ser um entrave para a democracia, ele pode ser um mecanismo de apoio do sistema democrático, desde que corretamente compreendido e exercido por parte dos Magistrados.

Os direitos fundamentais, então, nessa perspectiva se apresentam e se constituem como trunfos, como posições de vantagem, pois visam garantir que as pessoas e que cada pessoa que seja detentora de um direito fundamental, possa se desenvolver livremente e com igualdade. Ou, para dizer a partir da linguagem do direito germânico, que ela possa livremente desenvolver sua personalidade. Prefiro uma outra expressão: direitos fundamentais permitem e possibilitam que cada indivíduo de uma comunidade democrática possa ser tratado com igual respeito e consideração.

Assim, a questão se desloca não para a definição dos limites dos direitos fundamentais e isso vale também para as liberdades de expressão e de imprensa, mas para saber se o fato de uma pessoa afirmar ter um direito faz com que ela de fato o tenha. Como já sabia Kant, as pessoas não são anjos e, portanto, podem fazer afirmações abusivas, buscando usufruir situações nas quais não têm direito. Então, muitas vezes, quando alguém afirma ter um direito, na verdade pretende abusar do sistema jurídico para ter um privilégio e não um direito! Daí o conflito inerente a uma comunidade democrática, a ser solucionado pelo Judiciário a partir de um processo democrático.

Direitos, portanto, não são limitados, pois se tenho o direito à liberdade de expressão ou de imprensa, por exemplo, todos os demais são obrigados a suportar meu direito, mesmo que isso seja desagradável! Contudo, os direitos não podem servir para inviabilizar o exercício dos direitos dos demais membros da comunidade. Quando isso ocorre, aquele que exerceu o pretenso direito violando o igual direito do outro de exercitar seu direito, já não exercia um direito legítimo, mas se encontrava em uma situação de ilicitude!

As questões que tradicionalmente são colocadas como de limites à liberdade de expressão e de imprensa, na verdade devem ser vistas como de uma busca por se saber se a imprensa poderia publicar o que publicou ou, se ao fazê-lo, não acabou por violar o direito fundamental de outra pessoa, de modo que ultrapassou o legítimo exercício de liberdade de expressão, cometendo ilícito. Assim, a questão não é saber quais são os limites da liberdade de expressão do jornal francês Charlie Hebdo, por exemplo, mas sim de construir argumentos no sentido de se demonstrar por que o semanário francês poderia ou não legitimamente publicar charges sem violar o direito de outras pessoas. Liberdade de expressão e de imprensa, como qualquer outro direito, implicam responsabilidade e respeito para com os demais membros da comunidade democrática. Em uma democracia, a censura não pode ser tolerada, mas as violações a direitos cometidas pelas pessoas ou por órgãos de imprensa somente podem ser apuradas após a ocorrência da violação, através de um devido processo constitucional, assegurando-se aos envolvidos os direitos inerentes ao processo democrático: contraditório, ampla defesa e isonomia.

Portanto, direitos são absolutos, ilimitados e não estão em colisão ao contrário do que afirma a maioria da doutrina e da jurisprudência nacionais. É preciso que mudemos nossa perspectiva sobre os direitos, realizar uma verdadeira terapia em nossa forma de falar, como nos convidava a fazer o segundo Wittgenstein, para que desamarremos os nós que nós mesmos criamos em nosso pensamento, de modo a construir alternativas e soluções verdadeiramente compatíveis com uma democracia constitucional como a nossa!

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José Emílio Medauar Ommati é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG; Professor de Teoria da Constituição, Direito Constitucional e Hermenêutica e Argumentação Jurídica no Curso de Direito da PUC Minas Campus Serro – MG; Foi Coordenador do Curso de Direito da PUC Minas Serro de agosto de 2009 a janeiro de 2014.

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[1] Defendo tal perspectiva em minha obra publicada pela Livraria e Editora Lumen Juris: OMMATI, José Emílio Medauar. Uma Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[2] Além da obra sobre direitos fundamentais já citada, desenvolvo tal questão em duas outras obras: OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. 4ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015; OMMATI, José Emílio Medauar. Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio na Constituição de 1988. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

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