Não entrarás na Porta da Lei: o caso Cancellier e o processo do absurdo - Por Matheus Felipe de Castro

15/10/2017

Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum. Dessa forma inicia Kafka seu romance do absurdo que marcaria indelevelmente toda a sua obra. Josef K. um pacato homem comum, fora acusado da prática de um crime do qual só poderia ser inocente eis que desconhecia contra si qualquer acusação. Tomado de profunda angústia, K inicia uma jornada em busca de defesa que o arrebata ao mundo dos sonhos. O mundo dos sonhos é o universo das imagens metafóricas, da reconstrução imagética dos desejos reprimidos. Mas K. estava vivendo um pesadelo, o pior de toda a sua existência, uma queda livre sem qualquer significado cujo desfecho só podia ser o horror. A situação existencial de K. remete a outra personagem kafkaniana, Gregor Samsa, que um dia se viu metamorfoseado num inseto monstruoso e só mereceu o desprezo crescente de sua família, até o alívio de sua morte. Como no caso de Samsa, também K. se viu jogado no isolamento existencial daqueles que, estigmatizados, não merecem mais que o desprezo dos seus iguais. Impossível não traçar um paralelo entre o teatro do absurdo desenhado magistralmente por Kafka em “O Processo” e em “A Metamorfose” e a situação existencial vivida por esse K. dos trópicos, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Alguém certamente havia delatado Luis C. pois uma manhã ele foi detido sem qualquer necessidade. Como seu predecessor literário, inicia uma queda livre no pesadelo do irracional processo judicial que culminaria com seu desaparecimento físico. Acusado numa operação que sugestivamente o acusava de ter feito ouvidos moucos, teve contra si decretado o horror dos ouvidos moucos de um Judiciário que ignora o fator humano em suas decisões, os ouvidos moucos de uma polícia que em sua prática nega a existência real dos direitos humanos, os ouvidos moucos de uma parte da comunidade universitária que comprou a idéia do malfeito, os ouvidos moucos daqueles que se omitiram - talvez porque não quisessem se comprometer ou talvez porque não quisessem prejudicar sua rede de relações - enfim, os ouvidos moucos daqueles que não quiseram sair em sua defesa imediata, temendo pela sua culpabilidade. Ouvi de uns que algum desmando deveria ter cometido, eis que ninguém seria preso se não houvesse “alguma coisa a esconder”. Mas o fato nu e cru é que ele foi vítima de uma violência de Estado que só encontra precedentes nas práticas da Ditadura Militar ou de regimes totalitários. Ouvi de outros que deveria estar deprimido e perguntei que ser humano não estaria deprimido depois de tamanha violência praticada contra sua carne e contra sua honra? Em “O Processo”, Kafka nos conta que diante da Lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na Lei, mas o porteiro lhe diz que agora não lhe será permitida a entrada. Mas lhe dá esperanças de que um dia a entrada poderá ser franqueada. O homem passa anos a fio diante da Porta da Lei aguardando esse momento. Seus fios de cabelo crescem e ficam prateados. A sua barba já toca o chão. Suas costas já estão curvadas e as rugas tomam conta de seu rosto e corpo. No momento final de sua vida, num último suspiro, o camponês faz um aceno ao porteiro para que se aproxime e lhe questiona: “ - Todos aspiram à Lei. Como você explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar? O porteiro percebe que o homem já está no fim e lhe diz: Aqui ninguém mais poderia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora, com sua morte, eu vou embora e a fecho”. Muitos interpretam essa alegoria como sendo o engodo que os Porteiros da Lei impõem aos seus jurisdicionados ao lhes prometer uma Justiça que não podem entregar. Outros, admitem que talvez os únicos ludibriados nessa relação sejam os próprios Porteiros que crêem ser capazes de entregar um produto que não lhes pertence. De qualquer maneira, no teatro do absurdo, mais uma vida se perdeu sem que questionemos o nosso papel como engrenagens desse grande mecanismo de poder que um dia praticou o crime hediondo de se apropriar indebitamente da palavra Justiça.

 

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