Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
Recentemente, o Projeto de Lei 661/2021 foi apresentado na Câmara dos Deputados, fazendo reascender o debate sobre a redução da maioridade penal no Brasil. Sua ementa prevê a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), para duplicar o prazo de internação de adolescentes que pratiquem atos infracionais, bem como prevê alteração do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), para que o ato infracional praticado por adolescente seja considerado para fins de reincidência.
Diante da incerteza que o tema suscita, faz-se aqui uma importante análise sob a perspectiva da fraternidade que visa à valorização do ser e a responsabilização social e, ainda, contribui para que a “experiência vivida com relacionamentos positivos e enriquecedores, traduzidos em direito justamente para assumir caráter estável e institucional” (FAUSTO, 2008, p.26)
Assim, a fraternidade, compreendida como categoria jurídica, pode ser um efetivo instrumento de conscientização da população contra a redução da maioridade penal. Segundo Bernhard (2008, p. 61) “o conceito de fraternidade pressupõe a liberdade individual e a igualdade de todos os homens, e está numa relação de interdependência mútua com esses dois princípios. Os três conceitos têm por raiz a dignidade da pessoa humana”. Desta maneira, “a fraternidade, como valor, apresenta-se também como resposta para a crise da universalidade que envolve a dimensão e o significados dos Direitos Humanos” (BERNHARD, 2008, p. 36).
Partindo do conceito de fraternidade, os direitos tidos formalmente como fundamentais recebem um novo significado “não como um bem atribuído ao indivíduo, mas pela sua capacidade de saber criar ordem entre indivíduos e grupos”, este conceito “contém também o aspecto da solidariedade e da equidade”. Há, portanto, para este direito uma “responsabilidade pela vida no presente e no futuro”, pois ela requer “a contribuição ativa de todas as pessoas envolvidas e a assunção de responsabilidades comuns e, se necessário, também de responsabilidades diferenciadas” (BERNHARD, 2008, p. 62-3).
Segundo Patto (2013, p. 16), “esse horizonte, o horizonte da fraternidade, é o que mais se coaduna com a efetiva tutela dos direitos humanos fundamentais”. Para ele, a simples “consciência de que o titular desses direitos, qualquer pessoa, só por ser pessoa (e não por uma qualquer capacidade ou mérito), é membro de uma mesma e única família, não pode deixar de influenciar a interpretação relativa ao alcance desses direitos”.
Neste sentido, Buonuomo (2008, p. 36) frisa que “não há dúvidas de que essa orientação necessita de uma visão unitária da dimensão de pessoa, que tem consciência de poder viver a própria dignidade e realizar plenamente as próprias aspirações sem se isolar”. Dito de outro modo, é “uma reciprocidade que começa no ambiente em que se vive até abranger toda a família humana”. (BUONUOMO, 2008, p. 36)
Sob tal perspectiva jurídica, podemos trazer à luz as palavras de Fonseca (2019, p. 84)
[...]observa-se que a dignidade humana assume capacidade estruturadora da fraternidade e é por ela estruturada, seja na criação do direito objetivo, seja em função integrativa na hermenêutica constitucional, haja vista que se pressupõe o reconhecimento da condição humana a todo raciocínio em conformidade com a fraternidade. Assim, o conteúdo de dignidade representa condição de possibilidades e limites de significados a todo o projeto político pensado a partir da tríade liberdade-igualdade-fraternidade.
Trata-se, pois, não o de simplisticamente fazer com que as pessoas esqueçam a redução da maioridade penal, mas de que se tome a consciência que as razões da violência estão para além do ato infracional cometido. A ideia da fraternidade se torna o núcleo essencial desse combate à redução da maioridade penal já que os envolvidos são chamados a exercer seus próprios direitos e deveres com uma visão específica do ato que foi praticado, ou seja, a população deve-se colocar no “lugar do outro” e verificar as desvantagens que a redução da maioridade penal representa em meio ao sistema carcerário falido.
Reitere-se, segundo Patto (2013, p. 35) que “o princípio da fraternidade é semente de transformação social, não esgota a sua fecundidade nas relações interpessoais de proximidade, estende-se às relações sociais mais amplas, às relações entre grupos sociais, às relações políticas e internacionais”.
A Doutrina da Proteção Integral impõe um dever de funcionamento de medidas concretas a serem aplicadas às crianças e aos adolescentes. Sabe-se que o envolvimento com políticas públicas é responsabilidade primeira dos entes federativos, principalmente do município, mas é responsabilidade de todos participar e contribuir para que seus objetivos sejam concretizados. A rede de proteção de crianças e adolescentes é “o conjunto social constituído por atores e organismos governamentais e não governamentais, articulado e construído com o objetivo de garantir direitos gerais e específicos de uma parcela da população infanto-juvenil” (FALEIROS, 2008, p. 79).
Nesse contexto, a ideia de fraternidade se apresenta como uma possibilidade de intervenção juntos aos sujeitos no cumprimento de seus deveres recíprocos, já que cada vez mais se tenta resgatar o ofensor. Não basta, pois, uma resposta simplista à violência é preciso a aplicabilidade de uma nova postura e a tentativa de responsabilizar e ao mesmo tempo conscientizar o agressor, para que o conflito motivador da violência seja efetivamente resolvido. Esse é um dos principais objetivos do Estatuto da Criança e do Adolescente que visa, por meios pedagógicos, o efetivo resgate da cidadania desses adolescentes, envolvidos com a prática de atos infracionais.
O projeto, ora em comento, esquece essa premissa, pois busca a punibilidade. Hoje o período máximo de internação é três anos, e a proposta, muda para seis anos. Além de aumentar o limite de internação provisória do adolescente que, hoje, é de 45 dias e, com o projeto passaria para 360 dias. Ademais, prevê o aumento da idade para liberação compulsória, que passaria para os 24 nos de idade. E, ainda quer “que o ato infracional praticado por adolescente seja considerado para fins de reincidência” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021). Tudo sob a alegação de uma suposta impunidade.
O primeiro passo para se descontruir essa visão está no fato de visualizar os adolescentes autores de atos infracionais como sujeitos e não etiquetá-los como “criminosos”, sempre com vistas à sua inclusão (resgate) social, uma vez que a resposta a ser dada (e não uma mera “punição”) à violência ocorrida deve constituir-se como um momento de reflexão, de estímulo, de amparo, de um possível mergulho na cidadania.
Entende-se que a fraternidade pode ser responsável por essa transformação, promovendo a humanização e novos círculos de trabalho: “Até promover a mais autêntica reciprocidade, numa relação que é, ao mesmo tempo, dar e receber, ir ao encontro do outro e abrir-se para escutá-lo” (PATTO, 2008, p. 52).
Desta maneira, abre-se toda uma perspectiva capaz de compatibilizar as reivindicações de cada identidade na diversidade da sociedade atual. Igualmente, tenta-se abrir a discussão da promoção e discussão da defesa dos direitos e garantias individuais de cada um dos envolvidos, seja vítima, seja agressor, neste sentido, a fraternidade se revela como algo gerador de vínculos [1].
Estas análises servem para refletir sobre as visões da sociedade sobre as crianças e adolescentes em conflito com a lei penal. Deve-se, pois, interferir no problema sob uma ótica horizontalizada, ou seja, não se compactua com a redução da maioridade penal, como uma intervenção autoritária/verticalizada, é necessário que seja construído mecanismos/instrumentos que permitam que os envolvidos pensem nas consequências da redução de uma forma diferente, fraterna.
Constatamos que não se pode julgar a criança e o adolescente pelo seu comportamento, sem antes conhecer a sua história, sem antes tentar entender o porquê da sua atitude/ação violenta. Neste sentido, reduzir a maioridade penal seria tratar a consequência e não a causa real do problema. Entregar os adolescentes ao sistema penal é, sem dúvida, entregá-los à humilhação e a toda forma de exploração e desrespeito a sua condição peculiar de desenvolvimento. É necessário, pois, que sejam abordadas as vias constituidoras de uma efetiva cultura de paz, de uma cultura relacional.
Nas palavras de Aquini (2008, p. 151) “a relação fraternal contribuirá para repensar o caminho do desenvolvimento do sujeito institucional ou economicamente mais dotado”, já que ela é “constitucionalmente aberta à relação com os sujeitos”. Arquitetar parcerias fraternais para o desenvolvimento e construção de uma cidadania participativa, “aumentará sua qualidade e eficácia” (2008, p. 151).
Para se avançar na construção de um novo paradigma – o da fraternidade - é necessário estar consciente do papel e do nível de envolvimento dos atores sociais, isto, na visão de Baggio implica (2009, p. 92) na seguinte análise:
O conceito de participação, assim entendido, indica um vínculo que leva a reconhecer a existência de um bem comum da sociedade à qual se pertence, um bem relevante para a vida pessoal do sujeito participante e que, para ser alcançado, exige um empenho de participação de caráter voluntário que vai além daquilo obrigado por lei.
Deste modo, este ‘algo mais’ de caráter voluntário, essa adesão interior à vida pública por parte de cada um” é o que diferencia as sociedades antigas que acreditavam veemente nestes princípios da atual situação de fragmentação social das sociedades ocidentais. Participar, para ele, é “tornar-se capaz de interagir, de dialogar, de compreender os outros e suas diversidades, num espaço de cidadania culturalmente não-homogêneo” (BAGGIO, 2009, p. 96).
O desafio contra a redução da maioridade penal exige, sem dúvida, uma “redefinição da categoria de alteridade, de modo tal que o outro, sem perder sua identidade radicalmente diferente, possa chegar a compor, comigo, uma identidade comum” (BAGGIO, 2009, p. 199).
Outrossim, alguns juristas[2] preconizam a total impropriedade do Estatuto da Criança e do Adolescente para conter a criminalidade infantoadolescente. Nesse aspecto, é preciso tecer alguns comentários. Inicialmente, tem-se a obrigação de observar que o Estatuto foi pensado e concretizado como fruto de um amplo movimento popular, que promoveu uma ruptura com o sistema anterior, o da doutrina situação irregular, fazendo nascer o Direitos da Criança e do Adolescente, compreendendo crianças e adolescentes como sujeitos de direitos.
Enfim, ao invés de se pensar em reduzir o limite etário mínimo da maioridade penal é necessário concretizar os direitos anunciados na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, de sorte que se faz imperiosa a efetivação dos direitos e, em especial, convém destacar, é tema que exige a concretização de políticas públicas. Exemplificativamente, que se multipliquem escolas, escolas de qualidade, e não presídios. A Doutrina da Proteção Integral e a fraternidade, como categoria jurídica, nos indicam que devamos ser contrários ao Projeto de Lei 661/2021, que visa ampliar o tempo de internação.
Sem ignorar as contradições que o tema da maioridade penal confere, reafirma-se que a perspectiva da fraternidade, tomada na acepção de categoria[3], e até mesmo em sua dimensão jurídica, como encontra-se ora indicada neste estudo, pode ajudar a encontrar novos caminhos e novos pontos de equilíbrio, sem abrir mão da adequada proteção dos direitos e dos sujeitos titulares desses direitos.
Sobretudo, levando-se em conta, tratar-se de pessoas em processo de desenvolvimento que merecem a mais absoluta dedicação fraternal, incluindo a solidariedade efetiva por parte da União, o limite etário requer constituir uma chave em diálogo com a fraternidade, seja em sua base principiológica - qual seja, em seu conceito micro - ou mesmo como categoria – qual seja, em seu conceito macro - é certo que, cada um desses temas tem seu impacto no tempo presente.
Entendemos, portanto, que não se pode admitir a simplória ideia de que a solução para o problema da violência está na redução do limite da idade da responsabilidade penal, na criação de mais presídios, leis mais severas, mais castigos. Faz-se, pois, necessário o entendimento da fraternidade como categoria jurídica e o estabelecimento de uma cultura fraterna, na qual somos todos sujeitos e copartícipes de uma nova sociedade, não estigmatizadora, não criminalizante.
Notas e Referências
AQUINI, Marco. Fraternidade e Direitos Humanos. IN: BAGGIO, Antonio Maria (org.). O princípio esquecido. Vol 1. Tradução de CORDAS, D.; GASPAR, I.; ALMEIDA, J. M. São Paulo: Editora Cidade Nova, 2008.
BAGGIO, Antonio Maria. A inteligência fraterna. Democraqcia e participação na era dos feragmentos. In: BAGGIO, Antonio Maria(org.). O princípio esquecido. Vol. 2. Tradução de CORDAS, D.; REIS, L..M.; São Paulo: Editora Cidade Nova, 2009.
BERNHARD, Agnes. Elementos do conceito de fraternidade e de Direito Constitucional. In: CASO, Giovani et al (Orgs.). Direito & fraternidade.ANAIS do Congresso Internacional: “Relações no Direito: qual espaço para a fraternidade? Direito e fraternidade: ensaios, prática forense”. São Paulo: Cidade Nova: LTR, 2008.
BUONUOMO, Vincenzo.Em busca da fraternidade no Direito da comunidade internacional. In: CASO, Giovani etal (Orgs.). Direito & fraternidade.ANAIS do Congresso Internacional: “Relações no Direito: qual espaço para a fraternidade? Direito e fraternidade: ensaios, prática forense”.São Paulo: Cidade Nova: LTR, 2008.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Jornal de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/737008-projeto-muda-o-eca-e-dobra-prazo-de-internacao-de-adolescente-que-cometeu-infracao/. Acesso em 22 de mar 2021.
FONSECA, Reynaldo Soares da. O princípio constitucional da fraternidade: seu resgate no sistema de justiça. Beloi Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.
GORIA, Fausto. Fraternidade e Direito: algumas reflexões. IN: CASO, Giovani et al (Orgs.). Direito & fraternidade. ANAIS do Congresso Internacional: “Relações no Direito: qual espaço para a fraternidade? Direito e fraternidade: ensaios, prática forense: São Paulo: Cidade Nova: LTR, 2008.
MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. São Paulo: Manole, 2003.
PATTO, Pedro Maria Godinho Vaz. O princípio da fraternidade no direito: instrumento de transformação social. In: PIERRE, L.A.A; CERQUEIRA, M. R. F; CURY, M; FULAN, V. R. (ORGS). Fraternidade como categoria jurídica. São Paulo: Cidade Nova, 2013.
ROSSETTO, Geralda Magella de Faria. Apontamentos sobre a fraternidade: por uma racionalidade teórico-prática de sua sistematização jurídica. In: CERVINO, Lucas (comp.). Fraternidade e instituciones políticas: propuestas para una mejor calidad democrática. Buenos Aires-AR: Editorial Ciudad Nueva, 2012, p. 167-196.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente: construindo o conceito de sujeito-cidadão. IN: WOLKMER, Antonio Carlos & MORATO, José Rubens (Orgs). Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2015.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito e Fraternidade: a necessária construção de um novo paradigma. In: PIERRE, L.A.A; CERQUEIRA, M. R. F; CURY, M; FULAN, V. R. (Orgs). Fraternidade como categoria jurídica. São Paulo: Cidade Nova, 2013.
[1] Nas palavras o autor: “[...] criar vínculos novos, chega a anular qualquer impulso interior à delinquência, porque, acima do neminem laedere, sabe promover e buscar o bem do outro, conservando o próprio bem. Na fraternidade, ainda, é espontâneo satisfazer as necessidades dos outros, assumi-las e resolvê-las, a ponto de intervir em suas causas externas: pobreza, mal-estar familiar e social, exclusão, que podem dar origem a comportamentos delituosos.” (PATTO, 2008, p. 52).
[2]Podemos citar, exemplificativamente, Miguel Reale e Luis Luise, entre outros.
[3]Oportuno trazer a seguinte análise:“É deveras importante consignar que a fraternidade ainda requer experimentação, e, neste sentido, ela cobra reflexão e maturidade de suas premissas, o que o tempo e a dedicação humana certamente corrigirão na medida em que outras traduções em torno de sua acepção estarão ocorrendo e que serão oportunizadas na medida em que a experienciação em torno de sua práxis restarem praticadas nas relações dos sujeitos e de suas histórias”. (ROSSETTO, 2012, p. 170).
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