“NA COLÔNIA PENAL”: REFLEXÕES EM TEMPOS PANDÊMICOS.

07/05/2020

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Em dada passagem de “Admirável Mundo Novo”, obra emblemática de Aldous Huxley, um personagem encontra, empoeirado na estante, um livro de Shakespeare. No admirável mundo erigido durante o Covid-19, mais especificamente no “sistema-mundo[1]” Europa, o livro “A Peste”, escrito por Albert Camus, bate recorde de vendagens[2].

Huxley profetizou, na década de 30, umarealidade controlada pela propaganda, consumismo e com relações afetivas líquidas. Por isso, o livro de Shakespeare foi encontrado empoeirado, já que não havia tempo (dado o consumo frenético) para uma leitura que abordasse sentimentos, principalmente em tempos de liquidez afetiva. No admirável mundo de Huxley, existia a pílula da felicidade, o soma. Talvez, parecido com o Rivotril, campeão de vendas no país do carnaval[3].Já Camus é referenciado como um filósofo do absurdo[4].

 

Mas não é sobre esses dois autores que trataremos a seguir:

Franz Kafka, judeu, é também conhecido por retratar, de forma absurda, recorrendo ao realismo fantástico, a condição humana. Há quem diga, inclusive, que a obra “Na Colônia Penal” representa um presságio do nazismo. Destaque-se que Kafka teve três irmãs assassinadas em campos de concentração[5]. Quanto à obra citada,o enredo é o seguinte:

Um oficial militar fica encarregado de apresentar, a um observador internacional (explorador), o funcionamento de uma máquina de punição, utilizada por um antigo comandante, na colônia penal.

A máquina funcionava da seguinte maneira: o condenado era colocado dentro do maquinário, que possuía agulhas capazes de tatuar, no corpo do desviante, a sentença, simbolizando a necessidade de obediência à regra[6]. Ocorre que o mecanismo infligia dor ao condenado[7], chegando, mesmo, a tirar-lhe a vida. Seria, assim, um instrumento destinado à tortura e execução (da sentença e do apenado).

O oficial apresenta o maquinário ao explorador, que produziria um relatório, sobre a adequação, ou não, do mecanismo punitivo aos parâmetros internacionais. Acontece que o observador não pareceu concordar com aquele método, principalmente quando um condenado lhe é apresentado, a fim de ser realizada uma demonstração.

Irresignado com a hesitação do observador (quem sabe, uma premonição dos futuros sistemas regionais e global de direitos humanos), o oficial, encarregado de executar a sentença, num gesto desesperado e em obediência ao antigo comandante, “que um dia voltaria”, coloca-se, ele próprio, na máquina, sendo supliciado e morto[8].

Em tempos pandêmicos, se a lei instituída, escrita ou não, consistisse em sair de casa, “levar a vida normal”, no estilo “Milão não pode parar[9]”, estaríamos dispostos a morrer em obediência à ordem de um (a) comandante?

Haveria um absurdo Camusiano neste admirável mundo novo pós-covid?

Houve quem relacionasse o fato de estar em casa, de quarentena, com a prisão. No Brasil, fala-se em utilizar containers para depositar os presos, evitando, assim, o surto de Covid-19 nos estabelecimentos prisionais[10].  Essa providência, talvez, ao gosto do “antigo comandante” da obra de Kafka.

E por falar em desejar o retorno do “antigo comandante[11]”, o que dizer sobre as manifestações, no Brasil, pedindo o retorno da intervenção militar e do AI-5?

 

 

Notas e Referências

[1] Termo utilizado pelo filósofo argentino Enrique Dussel no livro “Ética da Libertação”. para se referir ao eurocentrismo surgido a partir das grandes navegações.

[2]https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-51843967

[3]https://super.abril.com.br/saude/nacao-rivotril/

[4]Da mesma maneira, e em todos os dias de uma vida sem brilho, o tempo nos leva. Mas sempre chega uma hora em que temos de levá-lo. Vivemos no futuro: ‘amanhã’, ‘mais tarde’. (...) O amanhã, ele ansiava o amanhã, quando tudo em si deveria rejeitá-lo. Essa revolta da carne é o absurdo.”CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. São Paulo: Record, 2004.

[5]https://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/2015/05/1629863-tres-irmas-de-kafka-foram-assassinadas-em-campos-de-concentracao.shtml

[6] “Nossa sentença não é aparentemente severa. Consiste em escrever sobre o corpo do condenado, por meio  do Ancinho, a disposição que ele mesmo violou. Por exemplo, as palavras inscritas sobre o corpo deste condenado — e o oficial apontou o indivíduo — serão: HONRA A TEUS SUPERIORES.” (Kafka, “Na Colônia Penal).

[7] Sobre o caráter doloroso do sistema penal, ver Nils Christie, “Limites à dor”.

[8] “(...)Era como havia sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida redenção; o que todos os outros tinham encontrado na máquina, o oficial não encontrara; tinha os lábios apertados, os olhos abertos, com a mesma expressão de sempre, o olhar tranquilo e convencido; e atravessada no meio da testa a ponta da grande agulha de ferro”

[9]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/27/prefeito-admite-erro-ao-apoiar-campanha-milao-nao-para-imitada-no-brasil.htm

[10]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/com-mortes-por-coronavirus-ministerio-da-justica-quer-vagas-para-presos-doentes-e-idosos-em-conteineres.shtml

[11]"Aqui jaz o antigo comandante. Seus partidários, que devem ser já incontáveis, cavaram esta tumba e colocaram esta lápide. Uma profecia diz que depois de determinado número de anos o comandante ressurgirá, e desta casa conduzirá seus partidários para reconquistar a colônia. Crede e esperai!"In Kafka, “Na Colônia Penal”.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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