Considerando-se que a dimensão temporal é indissociável da positividade do Direito, passou a ocupar uma posição de relevo o processo de mutação constitucional.
O enquadramento teórico do processo de mudança informal da Constituição é bastante variável, não havendo um tratamento uniforme da matéria. Constata Bulos (1997, p. 63) que “Numa palavra, existem diversos critérios salientados pelos autores com o escopo de estudar o fenômeno”.
É perceptível que estas diferenciações podem ser combinadas e produzir um resultado bastante complexo. Miranda (1996) situou o fenômeno da mutação informal constitucional, por ele chamado de interpretação evolutiva da Constituição, como uma das formas de modificação tácita da Constituição e preconizou a utilização desta modalidade de interpretação, visto que toda Constituição tem vida e está aberta à dinâmica da realidade que não pode ser apreendida através de fórmulas fixas.
Em sua obra específica sobre a questão da mutação constitucional, Bulos (1997, p. 63) relata que:
Hsü Dau-Lin, seguido por Pablo Lucas Verdú e por Manuel García Pelayo, esboçou quatro categorias: 1ª) mutação constitucional através de prática que não vulnera a Constituição; 2ª) mutação constitucional por impossibilidade do exercício de determinada atribuição constitucional; 3ª) mutação constitucional em decorrência de prática que viola preceitos da Carta Maior; 4ª) mutação constitucional através da interpretação.
Para Hesse (1992), a mutação constitucional consiste na alteração do sentido de uma norma constitucional, conservando-se a literalidade do texto. Refuta a vinculação da mutação constitucional com a passagem de um maior período de tempo e com a ausência de vontade e consciência do intérprete na produção da mudança em análise. O autor, igualmente, descarta a compreensão do fenômeno da mutação constitucional como sendo uma contradição entre o texto constitucional e a realidade a ele subjacente, pelo fato de que “[...] se está argumentando a diferentes niveles; lo que cambia no es el contenido de la norma constitucional, en cuya determinación colabora su texto, sino outra cosa”. (HESSE, 1992, p. 87).
Demonstrando a escassez de estudos sobre o assunto, Hesse (1992, p. 82) afirma que “No se han emprendido, que sepamos, otros intentos de fijación de límites, en característico contraste com el problema de los límites de la reforma constitucional, que há gozado de amplio tratamento”. O notável jurista demonstra uma falha neste tratamento desigual, porque, deixando de lado a busca de limites a uma das formas de mudanças da Constituição, a garantia da rigidez da Constituição fica seriamente comprometida.
Afirma Hesse que a temática da mutação constitucional não terá mais uma importância menor, com o trabalho dos Tribunais Constitucionais. Estes Tribunais encontram-se submetidos aos parâmetros estabelecidos no texto constitucional e, caso haja uma mudança na atribuição de sentido à dispositivo da Constituição, é imperiosa a fixação de limites que possam apontar para a aceitabilidade de uma mutação constitucional.
Mais recentemente, houve no Brasil uma contribuição de Barroso (2011, p. 127) afirmando que:
o tema da mutação constitucional tem o seu ambiente natural na fronteira em que o Direito interage com a realidade. Já ficou pra trás, na teoria jurídica, a visão do positivismo normativista que apartava o Direito do mundo fático, assim como dissociava, igualmente, da filosofia, da ética e de considerações em torno da ideia de justiça.
Para Barroso (2011), essa relação indissociável entre Direito e a dinâmica da vida constitucional faz com que seja necessária o reconhecimento de novas categorias na interpretação constitucional para cumprir esse papel de permanente atualização da Constituição. Partindo da premissa de que os três poderes constituídos tem o papel de conferir concretude aos comandos constitucionais, o ilustre magistrado considera que a mutação constitucional pode se dar de três modos, i) por interpretação, ii) por atuação do legislador e iii) por costume.
Como se pode notar, Barroso vincula a ideia da mutação constitucional a um novo sentido que será atribuído ao texto, em comparação com um anterior entendimento sobre sua significação. Isso é importante pra diferenciar da interpretação construtiva e da interpretação evolutiva. Na primeira, há uma ampliação do sentido ou alcance do comando constitucional, para incorporar uma nova figura u uma nova hipótese de incidência não previamente estabelecida de forma expressa. Já na segunda, se refere a aplicação da Constituição a situações que não foram levadas em conta na época de sua elaboração e promulgação, em razão de sua inexistência no mundo dos fatos.
De forma explícita, Barroso (2011) reconhece que a mutação constitucional realizada pelo Poder Judiciário configura um Poder Constituinte Difuso, uma nova modalidade de Poder Constituinte, além do originário e do reformador. Tendo em vista a existência de limites para a atuação desse último, afirma que é intuitivo o estabelecimento de limites para a mutação constitucional, cujo tema será examinado posteriormente.
Em tratamento igualmente recente na matéria, Sarmento e Souza Neto (2013) buscam conferir um delineamento teórico aduzindo que além da indeterminação semântica do texto constitucional, outros fatores importantes na mutação são a idade da Constituição, o grau de dinamismo existente na sociedade, o nível de rigidez constitucional e a cultura jurídica predominante.
Reconhecem Sarmento e Souza Neto (2013) que as constituições não devem ser imunes à ação do tempo, lembrando uma expressão do direito constitucional norte-americano, a living constitution, diante da necessidade de haver uma adaptação delas às mudanças que acontecem no ambiente em que estão inseridas. Similarmente a Barroso, sustentam que a mutação pode se dar i) por evolução jurisprudencial, ii) por atuação do legislador, iii) pelo governo e administração pública e iv) por costume e convenção constitucional.
É possível extrair de todo o exposto que o texto constitucional atua como limite à mutação constitucional, por meio de uma interpretação constitucionalmente adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito, garantindo o difícil equilíbrio entre a estabilidade e a dinâmica constitucional. A adoção do modelo das Constituições escritas mostra aqui seu relevo maior, servindo seu texto de balizas obrigatórias na atividade interpretativa desenvolvida pelo Poder Judiciário.
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