Mundo do direito e digimundo: a mundividência dos juristas e o motivo pelo qual eles não são digiescolhidos

14/10/2016

Por André Fernandes - 14/10/2016

Vou retornar, por insistência e caturrice, ao tema da logística epistemológica do saber jurídico – aqui considerado como uma categoria larguíssima, na qual cabe a dogmática jurídica e a ciência do direito. Já faz algum tempo que utilizo essa metáfora em conversas, em reuniões de Faculdade e em mesas de bar e chegou a hora de colocar esse elemento da cultura pop-nipônica num local estável. Vamos lá. São três pontos:

1. a relação de mundo dos fatos e mundo do direito, com base na teoria do fato jurídico e no pensamento científico sociologista de Pontes de Miranda, nos leva até uma imagem análoga àquela da relação mundo real e digimundo, na conhecida obra japonesa;

2. existe uma mundividência específica dos juristas (ou senso comum teórico, na expressão de Warat) que, por suas características, se afasta dessa dualidade típica do fenômeno jurídico enquanto mundo do direito, sabença modelística, campo da dogmática, e, enquanto ciência, voltada aos fatos, isolando os juristas numa idealidade e causando danos à sociedade ou, em outros termos, desadaptação social, ou ainda, elevação do quantum despótico;

3. os juristas, retirado o véu de um saber tradicional e as correntes de poder que detinham historicamente, perdem o local de fala privilegiado, tendo que disputar com outras elites um “lugar ao sol”. Todavia, do ponto de vista da relação correta e dos valores para ser um “escolhido”, os juristas não podem ser eleitos para o encargo de revelação das regras jurídicas, pois não são cientistas do direito e não aplicam o método científico.

FATO JURÍDICO E DIGIMUNDO?

É preciso atualizar as metáforas que foram aplicadas em seu devido tempo e contexto – esse tipo de alerta é o ponto dado com cuidado no alinhavado da história, para não cairmos em anacronismos. Da mesma forma que ideias e pessoas estão imersas num contexto e, por isso mesmo, é possível verificar seu vanguardismo, desse mesmo “ver além” é possível extrair reposicionamentos metafóricos condizentes e adequados. Vamos abolir a não entendida “prancha de impressão”[1]. Vamos colocar a TFJ do analógico para o digital.

Basicamente, Pontes de Miranda[2] aloca o direito como um subconjunto do mundo dos fatos. É, pois, uma parte do mundo total. Não é um mundo ao lado, mas parte do mundo dos fatos, sob qualitificativo diferente. Nesse sentido, Pontes de Miranda amarra a coerência de seu pensamento para dizer que o direito se referencia ao ser e não a um dever ser – o objeto do direito não são normas (e ele tem uma análise sobre normas, chamando-as de “regras jurídicas”), mas as relações sociais jurídicas.

Não há fluxo simples e direto do mundo dos fatos para o mundo do direito, é necessária uma espécie de autorização de entrada, um código que, lido, permite o influxo dos dados da realidade para dentro do direito – é o processo de juridicização.

A essa “autorização” todos que se debruçaram sobre manuais de direito civil já conhecem o nome específico, falo da incidência da regra jurídica. Essa incidência – que Pontes faz questão de dizer, e é repetido como mantra, “incidir, de cair, cadere” – se dá sobre um suporte fático que está descrito na hipótese normativa. É daí que retiram, por sinal, uma espécie de concessão do alagoano ao normativismo, ou sua conversão a uma civilística sedimentada.

O esquema Norma/Regra Jurídica + Suporte Fático faz desprender o Fato Jurídico, este que entra no mundo do direito. Como posicionar essas situações? Apelemos para grafismos e, então, para o digimundo. As representações costumam ser da seguinte forma:

Por mais que tal modelo seja didaticamente explicativo ele não representa a realidade das explicações de Pontes de Miranda, sequer no Tratado de Direito Privado. Se analisarmos o pensamento do jurista alagoano, colocando tal senso comum – e aqui uma espécie de mundividência analítica típica dos juristas, ou o “senso comum teórico” como Warat chamou essa concepção de mundo ingênua,[3] é já colocada contra a parede – diante do Sistema de pensamento (no mínimo respaldado pelo Sistema de Ciência Positiva e epistemologicamente organizado no Problema Fundamental do Conhecimento), teremos um erro de fragilidade contrastante.

Se mundo do direito e mundo dos fatos são apresentados como esferas separadas, a metáfora e imagem cognitiva que irão prover será uma imagem de oposição e fluxo com fronteira (a neurolinguística já exauriu, para a ciência, o problema das imagens e do saber que é construído em torno delas[4]). Não foi isso, em definitivo, que restou do trabalho da TFJ.

As bordas do mundo do direito são bordas construídas pela disposição das forças no mundo total – se identifico o direito como fenômeno da natureza, no sentido largo de natureza utilizado por Pontes, em que a cultura é absorvida e deve ser analisada por um método científico de racionalidade restrita, verificável, comparável com dados. O mundo do direito é, pois, dimensão do mundo total, opõe-se ao mundo dos fatos por ser preciso gerenciar logisticamente as relações “que interessam” ao direito, enquanto sistema lógico–dogmático, sistema esse que é uma construção imperfeita do processo de adaptação social. Como constatar isso?

Pontes de Miranda não defende igualização da Lei, nem o império dela perante as outras fontes. Ele defende a emergência do costume como fonte rente à vida, contextual e menos artificial – em comparação à lei, provinda da atividade legislativa, cheia de “voluntarismo exegético despótico”. Pontes de Miranda não iguala o labor do cientista do direito com o do jurista – sobre isso eu já venho me tornando repetitivo. Ao primeiro cabe a análise do mundo total em busca da revelação da regra jurídica, perfeição dos suportes fáticos e correção das hipóteses normativas, ao segundo a aplicação do direito posto, busca da incidência para aplicação correta (conflito aplicação x incidência, a primeira no mundo da ação, a segunda no plano lógico e, por isso, infalível).

Pontes de Miranda vai além, exige a correspondência por convalidação entre as leis científicas das diversas ciências, num escalonamento logístico que deve destruir o império do sujeito ou do objeto em tendências de pensamento solipsistas, idealistas ou materialistas, realistas. É a intricada relação jetiva que deve organizar os saberes, encadeando-os em interdisciplinaridade indissociável – e o jeto mais fino e perfectível é aquele cujo estado da arte da ciência impõe a partir do método científico indutivo (colhedor de dados robustos) e, posteriormente, com segurança, dedutivo.

Por ser dimensão – aquilo que parece outro lugar, tal qual o digimundo, num sentido de “vamos até lá”, de viagem até aquele outro espaço – o mundo do direito é na verdade uma viagem até onde nós estamos. O mundo do direito é um metaverso de nosso próprio lugar, está aqui e por isso a incidência é, também, no mundo dos fatos – assim Pontes de Miranda ata as pontas do fático e do normativo, como fenômeno e epifenômeno de um mesmo mundo.

Numa imagem 2D, rabiscada, existe uma superposição.

Na versão mais recente de Digimon (Digimon Adventure TRI), são expostos, mais uma vez, gráficos que representam exatamente essa relação de superposição. Nesse sentido, a metáfora bem serve para alocarmos: mundo real – mundo dos fatos e mundo do direito – digimundo. Os dois mundos: a) coexistem; b) trocam dados; c) sofrem influxo mútuo, gerando alterações: o indicativo da ciência altera o imperativo da norma e o imperativo da norma, pela eficácia de segunda ordem (conceitos trabalhados por Pontes de Miranda, com base numa refinada epistemologia fisicalista e sociológica que vai de Ernst Mach, Henri Poincaré, Bernhard Riemann e outros) altera o mundo dos fatos; e d) apesar de, usualmente, essa coexistência não ser perceptível, suas disfunções geram irritações que fazem marcante uma diferenciação.

Toda vez que o digimundo é agredido, perdendo seu equilíbrio dinâmico (aqui uso outra expressão trabalhada por Pontes), uma brecha de acesso mútua é aberta para o mundo real, criando um influxo descontrolado de dados e informações, para além da esfera normativa (programada). Isso parece semelhante com alguma coisa que trabalhamos na teoria do direito e, especificamente, na teoria do fato jurídico?

Quando um Digimon infectado aparece, ele fragiliza a fronteira dimensional, criando uma interferência que permite fluxo de elementos de um mundo para o outro. É o mundo do direito, digimundo, afetando o mundo dos fatos (Pontes diz: a coação não é ínsita ao direito, não está na sua natureza, mas agrida-o e verá se eriçarem as suas bordas).

Quando o personagem Izzy Izumi cria programas a partir do estudo dos códigos e características específicas dos dados do digimundo e dos locais específicos no digimundo, além de sua relação com o mundo real – assim como das subdimensões daquele mundo digital -, podemos ver um exemplo de manipulação dos elementos digitais, atuação no mundo dos fatos para o mundo do direito: a ciência é o elemento que perfectibiliza esse labor.

Certo, a metáfora é procedente e o direito se porta tal qual o digimundo. Mas quem corrige as disfunções no digimundo são, sempre, os digiescolhidos. Para eles é delegado o digivice, o aparelho que, conectado aos digimons parceiros, permite agir no mundo do dir- no digimundo. Aqui temos um problema.[5]

MUNDIVIDÊNCIA NÃO TÃO INGÊNUA E A AUSÊNCIA DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA SER UM DIGIESCOLHIDO

Como já adiantei no inicio do texto, historicamente, o direito ocupou o local de formação maior nos contextos mundial e brasileiro. Cabia à academia jurídica ocupar o lugar que, com o passar do tempo, foi sendo delegado e especializado nas outras ciências – sociologia, antropologia, psicologia, filosofia, educação e todas mais. Não a toa que as Faculdades de Direito do Recife e do Largo de São Francisco são, efetivamente, as mães das demais faculdades de direito, como também dos projetos de Universidade no Brasil.

Esse processo de desconcentração de saber acarretou, também, a perda do local de fala privilegiado da elite jurídica que construiu o Estado brasileiro, ao menos na arena científica. Não quero com isso defender que não existe uma elite jurídica forte, poderosa e encastelada – pelo contrário[6], tal elite especializou seu poder num tipo específico de atuação, saindo dos domínios das outras ciências e perdendo espaço no campo legislativo, é a nobreza togada ou o “monastério dos sábios”.

Também é esse fazer-se histórico que incentiva uma mundividência como a colocada aqui e tão bem tratada por Warat: ela tem características bem típicas na vitória do que chamo “normativismo violentado”, aquém daquele pregado por Hans Kelsen. Trata-se de um pensamento jurisprudencialiforme com pendores legalistas, automatizante, reprodutor e acrítico que ignora dados e isola o direito num mister ideológico-catequético, pretensamente neutro (mas, essencialmente, neutralizador) e cuja principal função é, justamente, funcionalizar o poder dos atores na sociedade – e aqui caímos numa concordância com Schimtt.

Trata-se, obviamente, de uma situação em que o que existe, para falar através da “lei das três fases do pensamento” é um saber jurídico de viés racionalista e não científico[7]. As características são apreensíveis pelo senso comum: elevado quantum despótico, inadaptação ou desadaptação social. O pensamento racionalista atua com base em “chutes” do que fazer e não em planos com controle e corrigenda de dados e fatos – típica da fase científica.

Ocorre que a atuação dos digiescolhidos é representada através de virtudes que, separadas em cada um, devem ser unidas para derrotar uma disfuncionalidade do digimundo, corrigindo seu fluxo de dados e retornando ao estado de equilíbrio dinâmico anterior – seria, na teoria ponteana, a expansão dos círculos sociais e a redução do quantum despótico.

As partes separadas dos que laboram com o direito, na analogia aqui posta, e historicamente delineada, são, essencialmente, aquelas atribuídas aos saberes do jurista e aos saberes do cientista do direito, que não se confundem. Não temos, hoje, sequer a presença de corpos fortes e atuantes desses dois tipos de atores, trabalhando em conjunto para alterar a realidade (“do indicativo da ciência ao imperativo da norma/ação”). O quadro atual já foi descrito aqui e em outros textos.

Sem as virtudes interiores, não se apresenta, ao digiescolhido a ativação do seu “dispositivo” para atuar no digimundo, nessa possibilidade de atravessamento constante entre mundo dos fatos e mundo do direito: o digivice. Da mesma forma, não se apresentam os parceiros digimons que seriam auxiliares nesse processo, ou seja, os conceitos, colocados de forma correta e crítica, e os dados.

Uma mundividência, construída desde o primeiro dia nos bancos das Faculdades, destrói a atuação de possíveis digiescolhidos, ou, para encerrar a metáfora que descrevo nesse artigo despretensioso, o jurista-cientista. A partição-ao-meio é, sempre, um convite ao diálogo consigo mesmo. Também está em Pontes (no livro Garra, Mão e Dedo) a noção de que a Ágora, a Assembléia do povo, começa num diálogo consigo mesmo. O jurista-cientista é o embrião do projeto de sociedade democrática, para o qual a ciência deve concorrer.

A atividade científica, em certo sentido, é exatamente este diálogo consigo – ordenado e ordenante, decidível, objetivo, crítico – ao apreciar a construção e reconstrução das dimensões do mundo dos fatos e do mundo do direito. Em Digimon, é Izzy quem aprende com a entidade mítica do digimundo, Genai, a forma de extrair, efetivamente, dados e explora, supondo alterações e fornecendo a todos os outros digiescolhidos, em maior ou menor medida, as orientações científicas para sua atuação: ele sintetiza em si a dialética do cientista-digiescolhido, o cientista-jurista que essa metáfora encerra.


Notas e Referências:

[1] Essa crítica é de Roberto Campos Gouveia, por sinal. Absorvo aqui, pois muito casa quando percebi que, desde o início, eu nunca apelei para certas metáforas no momento de compreender o funcionamento do pensamento de Pontes de Miranda.

[2] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. T. 1 Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, prefácio.

[3] Torquato Castro Jr., Arthur Kaufmann também trabalham com essa mesma ideia, seus efeitos operacionais e seus efeitos deletérios no labor jurídico dogmático. O primeiro no texto “A bola do jogo”, o segundo no livro “Filosofia do Direito”.

[4] Cf. LAKOFF, George. JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. London: The university of Chicago Press, 2003. Além, a dimensão de funcionamento linguistic da metáfora: DAVIDSON, Donald. O que as metáforas significam. In Da Metáfora / org. Sheldon Sacks ; trad. Leila Cristina M. Darin … et al. – São Paulo: EDUC/Pontes, 1992. Sobre a comparação de modelos metafóricos e estrutura da mente humana: DEL NERO, Henrique Schützer. Cognitive Systems and Cognitive Science. Disponível em: http://www.lsi.usp.br/~hdelnero/Art12.html. Acesso em: 04 de out. 2016.

[5] Uma nota de adendo: a n-dimensionalidade, em Pontes, é elemento aplicado a cada um dos processos de adaptação, cujo funcionamento tem um código específico, características específicas. Dessa forma, direito é dimensão no mesmo mundo dos fatos, assim como moral, política, economia etc. A ciência, por ser processo cognitivo de adaptação, tem natureza diversa e atravessa os outros com, apenas, a eficácia de adaptação

[6] Essa elite [r]existe. Nesse sentido vale o importante estudo de Frederico de Almeida: ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil. 2010. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. doi:10.11606/T.8.2010.tde-08102010-143600. Acesso em: 04 de out. 2016.

[7] “A livre pesquisa deve ficar adstrita aos rigores do método científico. Se assim não for, teremos o government by judges, a judicial oligarchy, a aristocracia da toga, ora empírica, ora racionalista, que caracteriza a política norte-americana da supremacia judiciária. No Brasil, com intermitências, já se pretendeu chegar a tal deturpação. Alias, no regime dos três poderes, o equilíbrio não pode ser senão por ensaios; mas se é perniciosa a demasiada instabilidade, mais o é a supremacia legislativa, a judiciária ou a do executivo, pois que constitui qualquer delas, necessariamente, solução autocrática do sistema tripartido de poderes, salvo se há, com a caracterização, diminuição do quantum despótico.” PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Introdução à Política Científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983.


andre-fernandesAndré Fernandes é Advogado. Mestrando em direito no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE). Graduado em direito pela Faculdade de Direito do Recife - Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisa a vida e obra de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Estuda os desdobramentos do regime do Direito Autoral nos processos decisórios da Governança da Internet no Brasil e no mundo. Fundador do grupo de extensão em Teoria Geral e Filosofia do Direito/Educação Jurídica, Direito em Foco. Atualmente membro do grupo de pesquisa: Direito, Tecnologia e Efetivação da Tutela Jurisdicional.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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