Mundo cão

22/09/2021

O senhor distinto, vestido com elegância exuberante, caminhava com altivez. Levava um pequeno cão a passear: atividade corporal. Segurava a correia que alcançava o pescoço do animal com afetado desdém. Não olhava para o cachorro, mas conseguia, driblando a multidão, conduzi-lo de tal maneira que não fosse atropelado pelos andantes apressados. Pus-me a observar a composição. Gosto de acompanhar, em suas minúcias, esses momentos elevados da humanidade.

Era na verdade uma cadela, o que percebi pela posição adotada para o xixi. No instante em o bichinho parou e se ajeitou para urinar, o senhor empertigou-se; toda a sua aprumada figura ganhou elevação. Após o ato de verter a urina sobre o passeio público, o par seguiu a turnê, e eu segui atrás do par. Meu desejo, a minha torcida era pelo cocô. Queria ver, se aquelas movimentadas calçadas recebessem merda da sua cadela, a atitude que tomaria o conspícuo passeante.

Não demorou. A cachorra pôs-se a andar em círculos, olhou para o seu condutor, abaixou-se e permitiu-se fazer o seu cocô. O senhor aristocraticamente cumpria a tarefa de aguardar a evacuação da cadela com ares de quem percebia um estranho acidente. Fiquei com a nítida impressão de que ele não via, tão só, o que acontecia; antes, examinava os lances com distância quase científica. A cadela, a seu turno, não tinha pressa, sentia-se em casa, apreciava a ocasião.

A certa altura dos eventos o senhor não tinha como desconhecer que a cadela acabara de se aliviar. Fleumático, iniciou a retirar, muito metodicamente, utensílios dos bolsos do paletó. Pela quantidade, imaginei que viria algo que se destinasse não a uma simples limpeza do chão, mas meios que se prestassem a detalhada intervenção cropológica. Aquele requintado gentleman, lidando com o cocô exposto do bicho, como faria para dar dignidade eficiente ao cumprimento de tarefa tão inglória?

Valeu esperar. Foram calçadas luvas cirúrgicas. Ele as vestiu e transformou-se; fez-se um gari experiente. Agilmente introduziu uma mão em um saco plástico e colheu os dejetos; hábil, virou o receptáculo pelo avesso, ensacando todo o conteúdo recolhido. Em seguida, lançou um jato de bactericida ao chão. Por último, passou um papel úmido na bunda da cadela. Todo o material usado na higiene foi posto em uma bolsa maior e levado ao lixo. E rapidamente o cavalheiro se recompôs.

Assim, refeito, lançou um olhar blasé à cadela e voltou-se para o caminho de casa. Já me ia, mas noto que uma senhora se arremete, furiosa, a passos muito curtos e muito rápidos, em sua direção. Para a sua frente, fulmina-o com o olhar e vocifera: “Nua, ela está nua, seu insensível”. Ele permaneceu imperturbado, como se ouvi-la fizesse parte de um ritual necessário. Com fleuma e vagar passou à mulher a tira de couro trançado que prendia a cadela, voltou-se e saiu a passos calmos.

A senhora, então, tomou a cachorra ao colo, apertou-a compungida, beijou-a inúmeras vezes e, com o bicho protegido no aconchego de um abraço, adentrou um edifício. Sentou-se em um banco próximo, o que me permitiu ouvir um bizarro diálogo. Creiam-me, a senhora começou a falar com o animal. Desculpou-se pelo descuido do “pai”, lamentou pelo frio e pela vergonha da nudez, garantiu que “aquele bruto” não a levaria mais a passear, disse que lhe daria biscoitos em compensação.

Pesarosa, a “mãe” depressa se despiu do cachecol e com ele envolveu a cadela, e ficaram, as duas, em aplicada conversação. Apreciei a parte ofendida da família recuperando-se do insulto moral que sofrera. Telefonou, logo, uniformizada, chegou a empregada doméstica. Vieram uma sacola de bebê e apetrechos de toucador. A cachorrinha foi escovada, perfumada, vestida com ostentada dedicação. A funcionária admirava tudo com olhar enternecido. Esse olhar eu não compreendi. Mundo cão.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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