Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
A multiparentalidade é instituto criado pela jurisprudência, após a identificação de um fato social, sendo premente o desenvolver do direito, não havendo, portanto, previsão legal expressa no ordenamento jurídico Pátrio.
Acontece que para chegarmos a tratar de multiparentalidede, deve-se observar que o instituto família sofreu, e, continua sofrendo modificações no seu contexto histórico, surgindo a partir de então novos arranjos familiares, obrigando a rever os conceitos que antes eram absolutos no paradigma familiar.
Em tempos pretéritos, a única forma de reconhecimento de família, era a dita “tradicional”, sendo constituída pelo pai, mãe e seus filhos, sendo o vínculo biológico o que prevalecia.
A legislação atual abrange novas estruturas familiares tais como: a família monoparental, homoafetiva, poliafetiva, anaparental, mosaico , simuntânea. Portanto, o direito pátrio passa a reconhece novos tipos de parentescos (biológico, registral e socioafetivo).
No direito romano a palavra “família” deriva do latim famulus, que significa um conjunto de escravos domésticos que viviam como se propriedade fosse do homem ou pai que tinha autoridade total sob as pessoas que constituíam o seu âmbito familiar, ou seja, ele tinha o direito de casar suas filhas com quem ele determinasse, bem como o mesmo tinha o dever de passar os ensinamentos religiosos.
Nesse mesmo contexto, Eduardo de Oliveira enfatiza que “uma coisa é certa, na noção romana de família, que serviu de paradigma ao mundo ocidental, a família representava um conjunto enorme de pessoas que se encontrava subordinada ao pater família” (2005, p.24).
Cavalcante, Camilla de Araújo (2016, p 28) complementa:
Faziam parte da família romana, além da esposa e dos filhos, os irmãos do pater família, a fim de dar continuidade ao domínio do patrimônio deixado por seu pater, os escravos, constituindo as famílias agnatícias. Somente em um período posterior, com a evolução de contextos religiosos e morais, chamada época pós-clássica, o reduto familiar dá mais ênfase nos laços consanguíneos, formando as famílias cognáticas, decorrendo algumas mudanças.
Desse modo, verifica-se nitidamente a ampla mudança que houve ao longo dos anos no que tange família. Sendo assim, o conceito de família vem se adequando as mudanças que ocorrem na atualidade.
Diante de inúmeras mudanças ocorridas no Código Civil cabe ressaltar um exemplo claro de transformação foi o instituto da adoção, pois o código anterior no que se referia ao assunto tratava dos pais, ou seja, era a ideia de dá um herdeiro a quem não tinha filho, no entanto que quem tinha filho não poderia adotar, com a mudança até mesmo histórica vê-se que a adoção nos dias atuais gira em torno do adotado, portanto não é a procura de um filho para pais e sim pais para um filho, respeitando o melhor interesse da criança e do adolescente.
Pode-se citar utros exemplos da elencada mudança de conceito social dentro da alteração do Código Civil, a exemplo, o reconhecimento da União Estável, reconhecimento da família chamada por alguns doutrinadores de “Famílias pós-modernas”, a monoparental, pluriparental, anaparental o casamento e a adoção por casais do mesmo sexo, a paternidade sociofaetiva e a poliafetividade.
Nesse sentido, Maria Berenice Dias (2010, p.67 ) destaca que a partir do momento em que as uniões matrimonializadas deixaram de ser reconhecidas como a única base da sociedade, aumentou o aspecto da família. O princípio do pluralismo das entidades familiares é encarado como o reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de arranjos familiares.
Por fim, seja socioafetiva ou biológica, anaparental, monoparental, monogâmica, biparental ou mosaica, desconstituída ou recomposta, tem-se que o reconhecimento de novos arranjos familiares, requer a adaptação da sociedade à complexidade contemporânea. Assim sendo, verifica-se que a sociedade vem rompendo tradições e paradigmas no que concerne o conceito de família, o que impacta diretamente ao reconhecimento e na aplicação da multiparentalidade em certidões de nascimento de crianças e adolescentes.
No que tange a filiação socioafetiva, necessário observar artigo 1.593 do Código Civil, o qual estabelece “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
A palavra “outra origem” é o que na verdade vem permitir a existência de novos conceitos de parentescos o que antes era impossível diante da parentalidade biológica.
Para Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf (2012 p. 35), “a afetividade com a relação de carinho ou cuidado que se tem com alguém intimo ou querido, como um estado psicológico que permite ao ser humano demonstrar os seus sentimentos e emoções a outrem, sendo também considerado como o laço criado entre homens, que mesmo sem características sexuais, continua a ter uma parte da amizade mais aprofundada”.
Deste modo, verifica-se que socioafetividade deriva de um vínculo afetivo entre pessoas sem qualquer vínculo consanguíneo, mas que diante disso vivem como parentes, em decorrência do afeto existente entre ambos. Contudo ainda existem casos do reconhecimento da paternidade socioafetiva do “filho de criação”, que é aqueles casos que o filho não é registrado, mas é criado como se filho fosse, a nossa Constituição Federal vem fundamentando o assunto em seu artigo 222, §6 º, todos os filhos são iguais, independente de sua origem.
Segundo Belmiro Pedro Welter,
A filiação socioafetiva é fruto do ideal da paternidade e da maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociais, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, conectando a família pelo cordão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, da solidariedade, subscrevendo a declaração do estado de filho afetivo.
Neste contexto nota-se que a socioafetividade vem ganhando força em relação à família natural, pois essa manifestação de afeto paternal, convivência e proteção ultrapassam qualquer laço consanguíneo, por isso essa filiação passou a ser chamada na jurisprudência e na doutrina também de sociafetiva, garantindo assim todos os direitos e deveres. Portanto, a família sociafetiva é considerada uma tipificação no vasto universo de famílias, juridicamente abordado.
O Conselho Nacional de Justiça- CNJ, através do seus Provimentos 16/2012, 63/2017 e 83/2019 vem tratando e evoluindo o entendimento sobre as formas de registro de socioafetividade.
Contudo, deve ser tudo muito bem pensado, pois depois de realizado o registro o pai não poderá vir a desconstitui-lo e tão pouco renunciar visto que já foi estabelecida a socioafetividade, até por que poderá vir a causar um trauma na criança.
A já existente multiplicidade de vínculos parentais (biológico e socioafetivo), após anos sendo tratada em ações individuais e inter partes, foi reconhecida no dia 22 de setembro de 2016 pelo Supremo Tribunal Federal-STF, maneira inovadora, em sede de julgamento de Recurso Extraordinário nº 898.060/SC. A partir de então, de forma pacífica passa-se a ser admitida a chamada multiparentalidade, também conhecida como famílias ensambladas, pluriparentalidade, mosaico, famílias reconstituídas, dentre outras nomenclaturas.
Observa-se que, não resta dúvidas que a efetivação de um direito, regularizando fatos já existentes gera inúmeros aspectos positivos a sociedade, mais especificamente as relações familiares e nas relações que envolvem crianças e adolescentes.
Nesse sentido, Maria Berenice Dias (2013. p. 385 apud Ghilardi) enfatiza que para o reconhecimento da filiação multiparental, basta observar o estabelecimento do vínculo de filiação com mais de duas pessoas. Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos, mais do que um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los, na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo a dignidade e a afetividade de pessoa humana.
Ao tratarmos de crianças e adolescentes, o reconhecimento da filiação multiparental se torna um elemento de efetividade do Princípio da proteção integral de crianças e adolescentes, já estabelecido de forma basilar no Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA; sendo princípio norteador de todo sistema de garantia de direitos no que tange ao ECA.
Logo, a multiparentalidade aplicado a crianças e adolescentes, trata da possibilidade de do reconhecimento jurídico de multiplus pais no registro de nascimento, seja dois pais e duas mães ou duas mães e um pai ou dois pais e uma mãe.
Importante observar, porém, que reconhecido o vínculo socioafetivo, esse não exclui a paternidade biológica, devendo a partir de então aos pais assumir as responsabilidades sociais e jurídicas resultantes da filiação, fato que mais uma vez corrobora para o melhor interesse da criança e do adolescentes, que terá total proteção no ceio familiar, seja por seu vínculo biológico ou afetivo.
Nesse contexto, tem-se que ambas as paternidades irão surgir efeitos jurídicos sejam eles patrimoniais ou extrapatrimoniais, conforme Enunciado 09 do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Admitindo-se que uma criança ou adolescente tenha mais de um pai e ou mãe, incidindo assim a denominada multiparentalidade registral (exemplo, tendo alguém um pai biológico outro socioafetivo), poderá esta pessoa recolher o correspondente quinhão hereditário deixado por seus dois pais e ou mães, porquanto a multiplicidade vocação hereditária paterna e/ou materna, é corolário natural e consequente da morte de qualquer ascendente a favor do descendente de primeiro grau, conforme os art.1829, I, do Código Civil c/c art.227, § 6º da Constituição Federal.
Portanto, ressalta-se que o direito de herança é garantido em todos os casos onde foi estabelecido filiação, por se tratar de cláusula pétrea, conforme art.5º da Constituição Federal, ficando, portando, mais uma vez garantido e respeitado o Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.
O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) compreende que devem ser reconhecidas como jurídicas tanto a paternidade biológica quanto a socioafetiva, em condições de igualdade material, não havendo hierarquia entre elas.
Nesse trilhar, há inúmeras decisões demonstrando divergentes posicionamentos dos Tribunais nacionais quanto a qual modalidade de paternidade -biológica, registral ou afetiva- prevalecerá nos casos fáticos, ou seja, tudo dependerá da análise criteriosa do caso concreto, e obviamente de estudo social analisando o que será melhor para o interesse da criança ou adolescente.
Outrossim, o melhor interesse da criança ou adolescente é o que prevalece, constituído no direito Constitucional, conforme estabelece o art. 227 da Carta Magna.
Dessa forma, qualquer questão que envolva criança ou adolescente, é assegurada a absoluta prioridade. É necessário enfatizar que o referido artigo constitucional ganhou reforço com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069 de 1990), que é voltado ao âmbito de assegurar o interesse da criança (proteção, assistência, etc.).
No que tange ao ECA, este estabelece princípios que reforçam direitos fundamentais de crianças e adolescentes estabelecendo o mínimo existencial quanto a vida digna. Reforçasse que, após ampla vivencia e atuação na advocacia dentro do microssistema das varas da infância e adolescência, verificou-se que por diversas vezes existe a falta de aplicação da multiparentalidade e o engessamento quanto ao conhecimento, gerando o descumprimento dos princípios que serão tratados a seguir.
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, tem como prioridade absoluta por parte do Estado, da família e da sociedade respeitar e proteger os direitos da criança e do adolescente, conforme preconiza o artigo 4º da lei 8.069/90, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Assim sendo, a multiparentalidade é assegurada pelo Princípio do melhor Interesse da Criança e do Adolescente, pois havendo o liame entre o filho e os pais socioafetivo e o biológico, esse princípio garante a criança de ter esse direito seus direitos sociais e patrimoniais preservados.
Outro princípio diretamente ligado ao melhor interesse da criança, e a Multiparentalidade é o princípio da afetividade (art.227, §6, CF/88), para o direito de família trouxe novos moldes no que concerne entidade familiar, pois o mesmo reformulou a tutela jurídica do direito de família, colocando como ponto focal o afeto nas relações familiares, não mais o vínculo biológico. Tal princípio decorre diretamente de outros princípios constitucionais, tais como o princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, CF/88), da solidariedade (art.3º, I, CF/88), princípio da convivência familiar.
O Princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), é definido como o núcleo energético do cenário jurídico Brasileiro, ou seja, o parâmetro orientador, que garante direitos (econômicos, sociais, culturais, etc.) ao indivíduo, e principalmente a crianças e adolescentes.
A dignidade da pessoa humana tem como finalidade assegurar ao indivíduo seus direitos fundamentais respeitados pelo poder público e pela sociedade, bem como, visa afastar qualquer ato que atinja a integridade do indivíduo.
Destarte, o referido princípio torna-se base e fundamento para os demais princípios constitucionais, pois objetiva assegurar aos indivíduos e a coletividade uma vida digna.
No que tange ao direito da criança e do adolescente, onde existe a vulnerabilidade evidente, o reconhecimento da multiparentalidade vem sendo fundamental para diminuição dos aspectos da referida nuance vulnerável, sendo fundamental para garantir seu melhor interesse, posto que gera eficácia a direitos obrigacionais entre familiares, bem como direitos sucessórios.
O reconhecimento simultâneo no registro de nascimento das paternidades (biológica e sociafetiva) gera uma série de efeitos jurídicos ao filho. Este passa a ter direito a pensão alimentícia, a sucessão, guarda e direito de convivência, de ambos os pais.
Assim sendo, uma vez registrado o filho não será possível desconstituir ou revogar a paternidade, visto que esse é um ato personalíssimo, exceto se comprovado o erro ou vício.
Por fim, verifica-se que a multiparetalidade se encontra respaldada em princípios constitucionais, tais como: o Princípio da dignidade da pessoa humana, afetividade, da igualdade, da convivência familiar e do melhor interesse da criança e do adolescente.
Notas e Referências
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Direitos da criança- legislação - Brasil 2. Direitos da criança - jurisprudência - Brasil I. Digiácomo, Ildeara Amorim CDU 347.63(81)(094.46)
_______, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/1990, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil, volume 6: direito de família/Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho.-7.ed.-São Paulo:Saraiva,2017.
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Nucci, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: em busca da Constituição Federal das Crianças e dos Adolescentes / Guilherme de Souza Nucci. – Rio de Janeiro : Forense, out./2014.
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