Mulheres negras periféricas e a migração feminina internacional como (não)alternativa de sobrevivência: reflexos e reflexões ao Poder Judiciário - Por Fernanda Ely Borba

04/11/2017

[1] 

Diariamente o Poder Judiciário é provocado a dar respostas às mais diversas expressões das violações dos direitos humanos e sociais. Um dos retratos que muito bem captura este verdadeiro caldeirão conformado por pessoas dos mais diferentes credos, raças, etnias, culturas, classes sociais em busca do acesso a um padrão de cidadania diz respeito às mulheres negras periféricas que emigram de seus países de origem impelidas a buscarem melhores condições de vida[2], aportando ao Brasil esperançosas de obter uma vida mais digna para si e para seus(suas) familiares.

Em estudo sobre a migração hatiana, Mejía et al (2015)[3] destacam que as expectativas diante do projeto migratório podem assumir contornos diferenciados conforme os gêneros. Ao passo que os homens haitianos almejam a formação educacional, a autonomia e a independência financeira, as mulheres haitianas emigram especialmente para oferecer melhores condições de vida para os filhos e demais familiares. Ou seja, para elas a migração conforma-se num projeto familiar, no qual aspiram ter renda suficiente para mantê-las no Brasil e enviar dinheiro à família no Haiti.

Assim sendo, as migrantes haitianas (e de outras nacionalidades) vivenciam as famílias transnacionais, isto é, agrupamentos familiares que embora distendidos em vários pontos do globo, não perdem os vínculos quando inseridos em novos contextos sociais. Pertencem ao referido agrupamento todas as pessoas envolvidas na situação de migração, sendo tanto os adultos quanto as crianças, tanto quem fica quanto quem migra, quem retorna e quem transita. Para enfrentar a dor da separação, as migrantes perseguem o objetivo de reunificação familiar num futuro próximo e de contribuir para a melhoria das condições de vida da família (MEJÍA ET AL, 2015).

Dentre tantos dramas que enredam os processos judiciais, é visível o crescimento de situações envolvendo mulheres negras periféricas, que emigram sobretudo de países latino-americanos e africanos para o Brasil. Uma das demandas judiciais – e talvez a mais paradigmática e comovente – corresponde ao afastamento do/a(s) filho/a(s) imposto pela aplicação de medida de acolhimento institucional[4] prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/90).

Por configurar uma das expressões mais contundentes da questão social na contemporaneidade, urge debruçarmo-nos ante às complexas e imbricadas feições do movimento migratório protagonizado por mulheres negras periféricas, com o intuito de trazer à baila alguns desafios enfrentados por migrantes na diáspora contemporânea[5].

Para Iamamoto (2006)[6], a questão social é indissociável da forma de organização da sociedade capitalista, e diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais nela engendradas. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho –, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. Expressa, portanto, desigualdades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural, atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e muda pela cidadania, no embate pelo respeito aos direitos civis, sociais e políticos e aos direitos humanos.

É sabido que os processos de recrudescimento das desigualdades sociais em escala mundial reverberam nos processos migratórios como estratégias de sobrevivência frente a realidades marcadas por conflitos/guerras, desastres ambientais e pelo escasso acesso à renda e oportunidades de vida.

Nesse panorama, sobrevém os processos de feminização das migrações internacionais, o qual segundo Ramos (2014)[7], é configurado como uma das nuances da migração contemporânea. Nesse sentido, cada vez mais mulheres emigram dos países de origem para fugir de problemas que afetam as mulheres de modo geral: a miséria, a violência, o reduzido acesso à educação, saúde e oportunidade de emprego e renda.

Uma vez sediadas no Brasil, é comum às migrantes negras periféricas depararem-se com obstáculos como a compreensão da língua portuguesa e o desenraizamento cultural e, paralelo a isso, a realidade socioeconômica brasileira caracterizada pela superexploração da força de trabalho, pelos baixos salários e pelo alto custo de vida.

Ademais, confrontam-se com políticas públicas precárias e incapazes de incorporar a diversidade cultural e as peculiaridades da condição da mulher migrante. É notável ainda as dissonâncias entre os diversos modelos de proteção social entre o país de origem e o país de acolhida, e diante disso, muitas vezes a mulher migrante não dispõe de repertório cultural para compreender os requisitos da política pública no país em que se estabelece.

Acima de tudo, e diretamente articulada aos óbices supramencionados, ganham força as expressões do racismo e da xenofobia em desfavor de tais migrantes[8]. Werneck (2016, p. 541, apud JONES, 2002)[9] explicita que o racismo configura-se num amplo e complexo sistema, dado o seu modo de organização e desenvolvimento por meio de “estruturas, políticas, práticas e normas capazes de definir oportunidades e valores para pessoas e populações a partir de sua aparência, atuando em diferentes níveis”. A autora reflete ainda que, muito embora a intensidade dos efeitos do racismo, prevalece a naturalização do fenômeno, relegando-o à invisibilidade.  

Desse modo, torna-se recorrente subestimar a força do componente racial na geração e reprodução dos altos níveis de desigualdade racial observados no Brasil. Não obstante as reiteradas disparidades étnico-raciais postas no cotidiano dos(as) brasileiros(as), prepondera o mito de que as oportunidades são iguais para todos(as), independente da raça ou cor da pele.

Ocorre que o racismo não se reduz às relações interpessoais, sendo que especialmente no caso das migrantes negras periféricas, a faceta mais perversa se traduz no racismo institucional, à medida que as questões relativas a tal público são absoluta e reiteradamente invisibilizadas na agenda pública brasileira.

López (2012)[10] e Pace e Lima (2011)[11] assinalam que o racismo institucional é conceituado como o fracasso coletivo de uma organização em prover um serviço profissional e adequado às pessoas com certos marcadores grupais de cor, cultura origem étnica ou regional. O que caracteriza esse tipo de racismo é que ele extrapola as relações interpessoais e ocorre à revelia das boas intenções individuais, implicando o comprometimento dos resultados de planos e metas de instituições, gestões administrativas e de governo.

Ilustrada pela indisponibilidade ou acesso reduzido a políticas de qualidade, assim como pela escassez de recursos e prejuízo no acesso às informações e no exercício do controle social, o racismo institucional acarreta na exclusão seletiva e reiterada de grupos racialmente subordinados, reforçando a perpetuação dos processos de desigualdade social, conforme denotam as supracitadas autoras.

Observados do ponto de vista do racismo institucional, tais óbices são reveladores do histórico descaso do Estado brasileiro frente à população negra, sobretudo se considerarmos a sistemática omissão estatal em encampar o enfrentamento das desigualdades étnico-raciais – notadamente de mulheres negras – como responsabilidade pública das três esferas de poder.

Por todo o exposto, a saga materializada pelas migrantes periféricas negras que se fixaram no Brasil evidencia a histórica omissão deste país em enfrentar, de uma vez por todas, o regime escravocrata que se perpetua ao longo da história e as opressões decorrentes de uma sociedade estruturada em profundas desigualdades de natureza étnico-racial, de classe e de gênero.


[1] Este artigo tem como ponto de partida trabalho apresentado por esta autora no 13º Congresso Mundos de Mulheres e 11º Seminário Internacional Fazendo Gênero, realizados conjuntamente em Florianópolis/SC, entre os dias 30 de julho a 04 de agosto de 2017. Intitulado “Relato de Experiência: reconstruindo a saga de migrantes haitianas radicadas em Chapecó/SC em busca da convivência familiar com os filhos”, o mencionado trabalho foi apresentado no seminário temático Pensamento das Mulheres Negras na Diáspora, e baseia-se nas intervenções profissionais da servidora na Vara da Família, Infância e Juventude de Chapecó/SC.

[2] CFESS (2016, p. 8) analisa que a imigração e o refúgio são temas complexos e que devem ser compreendidos para além da escolha do indivíduo de sair de seu território para ter melhores oportunidades de vida. “Na verdade, expressam particularidades de classe, gênero, etnia e religião e estão inscritos nas alterações da geopolítica mundial”. IN: CFESS. Conselho Federal de Serviço Social. Série Assistente Social no Combate ao Preconceito: xenofobia. Caderno 5. Brasília/DF: CFESS, 2016.

[3] MEJÍA, Margarita Gaviria; BORTOLI, Jaqueline de; LAPPE, Emeli. Papel das mulheres migrantes nos projetos familiares que mobilizam a imigração haitiana para o Brasil. In: Anais do IV Simpósio Internacional Diálogos na Contemporaneidade: tecnociência, humanismo e sociedade. Lajeado: Univates, 2015. p. 154-159.

[4] Artigo 101, das medidas de proteção.

[5] Importante ressaltar que escrevo sobre o assunto a partir de uma perspectiva calcada em privilégios: sou uma mulher branca, cis, classe média, com ensino superior, cuja pretensão de expressar os dramas enfrentados pelas migrantes negras periféricas é, na sua essência, tarefa incompleta devido ao não pertencimento à condição ora analisada.

[6] IAMAMOTO, Marilda Villela. Questão Social, Família e Juventude: desafios do trabalho do Assistente Social na área sociojurídica. IN: SALES, Mione Apolinário; MATOS, Maurílio Castro de; LEAL, Maria Cristina (Orgs.). Política Social, Família e Juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2006.

[7] RAMOS, Maria Natália. Migração, maternidade e saúde. In: Repertório. Nº 18. Salvador, 2012. p. 84-93.

[8] Tendo em vista que a cultura brasileira é erigida sob o prisma do mito da democracia racial (FREYRE, 1992), a chegada em massa de tais migrantes pôs tal mito à prova, revelando a força com que o racismo ainda estrutura as relações sociais no Brasil. IN: FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1992.

[9] WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. IN: Saúde e Sociedade. v.25, n.3. São Paulo, 2016, p.535-549.

[10] LÓPEZ, L. C. O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. IN: Interface – Comunic., Saúde, Educ., v. 16, n. 40. Jan./mar, 2012. p. 121-134.

[11] PACE, A. F.; LIMA, M. O. Racismo Institucional: apontamentos iniciais. Revista do Difere, v. 1, n. 2, dezembro de 2011.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Darfurians refugees in Eastern Chad // Foto de: European Commission DG ECHO // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/eu_echo/8022566649

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura