Por Gabriela Essig e Grazielly Alessandra Baggenstoss - 09/09/2016
A situação das mulheres a quem são imputados os cometimentos de infrações é desoladoramente instigante. As primeiras mulheres consideradas infratoras, no século XI, eram condenadas por delitos ligados a bruxaria e a prostituição, ou seja, eram aquelas que desviavam o papel socialmente esperado, em nítida dissonância com os homens infratores. As “bruxas’’ foram muito perseguidas e sofriam intensos castigos corporais, eram torturadas e queimadas vivas. Já em 1943, sobre as detenções policiais no estado de São Paulo, foi relatado que a maioria das detenções de mulheres eram causadas por alcoolismo, 31,2% do total[1]. Quase todos os delitos tiveram uma incidência maior entre os homens. A única conduta responsável por um número maior de mulheres detidas era a de causar escândalo – cujo significado urge de necessária definição. Esse dado está provavelmente relacionado com a expectativa social de que mulheres tenham posturas contidas no espaço público.
Com relação aos espaços destinados ao encarceramento das mulheres, a história também nos fornece elementos desumanos. No período colonial do Brasil, homens e mulheres ficavam nas mesmas celas – situação que gerava diversos problemas graves, como a transmissão de doenças e abuso sexual[2]. A ideia de que mulheres instigariam os instintos masculinos dos homens[3] - o que tumultuaria o ambiente da prisão - fomentou a separação dos presos[4] e, na década de 1930, foram criadas as primeiras prisões exclusivamente femininas. Em 1937, surgiu o Instituto Feminino de Readaptação Social no Rio Grande do Sul e, em 1941, o Presídio das Mulheres em São Paulo. Esses dois lugares já existiam e apenas foram adaptados para abrigarem as presas. Já a Penitenciária Feminina do Distrito Federal foi construída do zero em 1942.
O cenário atual trata das mulheres autoras de infrações nos termos legais e, conforme mencionado, a partir de uma pretensão igualdade. Atualmente, 68% das mulheres presas respondem por crimes relacionados ao tráfico, segundo o relatório do Departamento Penitenciário Nacional de 2014. A maioria delas cumpria papéis secundários, como o transporte e o pequeno comércio, e poucas exerciam funções de gerência.
Atualmente, com a igualdade permeando o sistema penal, ainda são visíveis tratamentos androcêntricos às mulheres encarceradas, apesar de a Lei de Execução penal (Lei n°7.210, de 11 de junho de 1984) determinar que as mulheres devem cumprir a pena em estabelecimento próprio – ou seja, que estejam estruturados para receber as demandas à condições essenciais das mulheres. Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária nacional para as questões femininas, oferece-nos um panorama nefasto sobre a presença da mulher no cárcere: "para o Estado e a sociedade, parece que existem somente 440 mil homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28 mil desses presos menstruam"[5]. Estatisticamente, o Levantamento Nacional de informações penitenciárias de 2014 mostra que o Brasil tem uma população carcerária de 579.781 pessoas, cujo número de mulher alcança 37.380[6].
Entre 2000 e 2014, a população carcerária feminina cresceu 567,4%. Esse aumento, porém, não foi acompanhado de uma adequação do sistema penitenciário, ou seja, as mulheres estão se inserindo nas prisões e o Estado continua falhando em atender suas necessidades básicas.
No Brasil, existem 239 unidades prisionais mistas e 103 femininas. Vários desses estabelecimentos são negligentes com os direitos das mulheres encarceradas. Por exemplo, o art. 5º, inciso L da Constituição Federal garante que as presidiárias podem permanecer com o filho na unidade, enquanto estiverem amamentando. No entanto, apenas 32% das unidades femininas e 3% das mistas possuem berçário ou centro de referência materno infantil.
Além disso, verifica-se, de forma amostral, de Relatórios de Sentenças, constantes dos Prontuários Criminais de mulheres detentas[7], documentação que demonstra um discurso jurídico indicando que se julga a mulher que comete um crime (como criminosa) e não o crime, de modo a transparecer as representações de gênero e aos estereótipos preestabelecidos no grupo social. Apesar do tratamento igual perante a lei, o discurso jurídico formatado majoritariamente por homens e declarando o androcentrismo demonstra sistemas de valores preconceituosos que são impostos às mulheres em julgamentos.
Em tal conjuntura, exalta-se o comportamento da mulher, sua personalidade, seus ante cedentes, a conduta e comportamentos sociais, considerando que “mulheres violentas, vingativas, perigosas são alguns adjetivos sublinhados e reforçados ao longo dos Relatórios de Sentenças pela justiça criminal” (PRIORI).
Nesses documentos, ventila Priori que as mulheres foram processadas, julgadas e condenadas também por terem “atravessado as fronteiras da docilidade, rompendo com as normas sociais definidas como essencialmente femininas, tais como mãe e esposa fiel, cuidadora dos afazeres domésticos, sóbria, honesta, pacífica, educadora, guardiã dos bons costumes, etc”. Além disso, a punição é mais do que a restrição da liberdade: é também ã privação a diversos bens fundamentais.
O cárcere reproduz também os referenciais externos, com as desigualdades de gênero na exigência de que as mulheres detentas apresentem uma conduta de resiliência na improvisação de prédios para abrigar as prisões femininas, ou na formatação destas conforme os moldes dos presídios masculinos.
No Rio de Janeiro, o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública realizou visitas às penitenciárias femininas para verificar a situação dos atendimentos ginecológico às mulheres encarceradas. Diante do averiguado, a Defensoria do Estado moveu ação civil pública a fim de garantir acesso a ginecologistas pelas presas, mas o pedido foi negado e a defensoria agora apela[8].
Esse processo é uma boa oportunidade para o Estado rever o modo como trata as mulheres encarceradas e adequar os estabelecimentos do sistema penitenciário, porém os resultados iniciais apenas refletem o descaso com essas questões fundamentais.
Em Foucault[9], encontramos o cárcere como o local do poder de punição do Estado, que o exerce por mecanismos de controle, investindo, nas pessoas detentas, relações de poder e de dominação por meio de disciplina, ordem, correção. Tudo isso, em tese, almejando docilização e normalização das pessoas encarceradas para a sua transformação em força produtiva. Além do questionamento sobre tal padronização (que é tema para outro momento), no caso das mulheres no contexto brasileiro, verifica-se que não há a normalização, mas sim a míngua de seus direitos básicos de dignidade e a inobservância do dever do Estado em sua responsabilidade sobre tais pessoas.
Notas e Referências:
[1] SÃO PAULO. A estatística policial-criminal do estado – ano de 1943.
[2] ANDRADE, Bruna Soares Angotti Batista de. Entre as leis da ciência, do Estado e de Deus: O surgimento dos presídios... Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-11062012-145419/pt-br.php> Acesso em 05 set. 2016.
[3] Ideia que não era contraposta ao pensamento de que os homens devem ser educados para serem respeitarem as outras pessoas, inclusive mulheres.
[4] PINHEIRO, Jorge Augusto de Medeiros. Mulheres privadas de liberdade: algumas... In: Problemas actuales del campo criminológico-forense em America Latina. Disponível em <http://dspace.uces.edu.ar:8180/dspace/bitstream/handle/123456789/1828/978-987- 1850-06-8_Texto.pdf?sequence=1#page=82> Acesso em 05 set. 2016.
[5] QUEIROZ, Nana. Presos Que Menstruam. Editora Record, 2015.
[6] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Departamento Penitenciário Nacional. Junho de 2014.
[7] Prontuários Criminais de detentas que passaram pela Penitenciária Feminina do Paraná entre os anos de 1970 e 1995. Cf. PRIORI, Claudia. Mulheres Detentas: o exemplo da Penitenciária Feminina do Paraná (1970-1995). Internacional Congress of History. DOI 10.4025. Disponível em <http://www.cih.uem.br/anais/2011/trabalhos/97.pdf>. Acesso em setembro 2016.
[8] Processo: 0220470-75.2014.8.19.0001, 4ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital.
[9] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 38. ed. Petrópolis/RJ, Vozes, 2010.
. . Gabriela Essig é Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres”. ...
Grazielly Alessandra Baggenstoss é Doutora e Mestra em Direito pela UFSC, Professora do Curso de Graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Modelagem e Compreensão dos Sistemas Sociais: Direito, Estado Sociedade e Política, Coordenadora e pesquisadora do Projeto de Pesquisa e de Extensão “Direito das Mulheres” da UFSC, Coordenadora do Projeto de Extensão Sociedade de Debates da UFSC.
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