Morte ao WhatsApp, e vamos trocar o sofá da sala

19/07/2016

Por Charles M. Machado – 19/07/2016

Em mais uma decisão judicial, que transfere o problema de uma investigação para todos os brasileiros, a Justiça do Rio, em decisão monocrática, determina mais uma vez, o bloqueio do aplicativo WhatsApp.

A juíza da Vara de Execuções Penais (VEP) Daniela Assumpção Barbosa argumenta que o Facebook, empresa proprietária do WhatsApp, foi notificado por três vezes para interceptar mensagens que seriam referentes a uma investigação criminal em Duque de Caxias. De acordo com a decisão da magistrada Daniela, as operadoras de telefonia já foram notificadas e devem suspender o serviço imediatamente.

Segunda a magistrada: “Nosso povo reclama tanto da violência, da polícia, da Justiça. É preciso saber que as prisõezinhas do dia a dia não vão resolver os problemas de segurança pública. O crime evoluiu e a Justiça precisa evoluir também.”

De acordo com a magistrada, a decisão foi tomada ainda nesta segunda-feira e as operadoras não possuem um prazo específico para cumprir o bloqueio. A suspensão entrará em vigor conforme aspectos técnicos de cada empresa sejam adaptados.

Ainda segundo ela: “Essa história de que o usuário do WhatsApp perderá a confiança no serviço é balela. Ligações de telefone são interceptadas e os usuários não perderam a confiança nas operadoras, não é mesmo? Questiona a magistrada, que critica o fato de o aplicativo ser um "refúgio seguro para bandidos"

Por fim, Daniela acredita que “é preciso que a população encare a decisão como uma forma de fazer com que a empresa respeite as instituições brasileiras. O WhatsApp desrespeita o brasileiro. É preciso respeitar nossas leis, deixar a Justiça trabalhar e dar sequências às investigações.”

O que diz a decisão:

A juíza diz em sua decisão que o procedimento é sigiloso. Ela afirma ainda que "determinou o cumprimento da quebra do sigilo e interceptação telemática das mensagens compartilhadas no aplicativo WhatsApp em relação aos terminais-alvos indicados no ofício", sob "pena de aplicação de multa coercitiva diária no valor de R$50.000,00,"

Daniela ainda revela que o Facebook respondeu às notificações em inglês "em total desprezo às leis nacionais". Na decisão, ela mostra cinco perguntas enviadas em inglês aos representantes do aplicativo sobre a investigação em andamento e critica: "Ora, a empresa alega, sempre, que não cumpre a ordem judicial por impossibilidades técnicas, no entanto quer ter acesso aos autos e à decisão judicial, tomando ciência dos supostos crimes investigados, da pessoa dos indiciados e demais detalhes da investigação".

E acrescenta: "O Juízo fica curioso em saber como estas informações auxiliariam os representantes do aplicativo WhatsApp a efetivar o cumprimento de ordem judicial vez que, segundo esta, o motivo dos reiterados descumprimentos, repita-se, são puramente técnicos". Ela enfatiza a brecha que permite ao aplicativo ferir a legislação brasileira: "Não pode um serviço de comunicação de tamanho alcance, ser oferecido a mais de 100 (cem) milhões de brasileiros sem, no entanto, se submeter às Leis do País".

A juíza destaca ainda, na decisão, que em nenhum momento pediu o envio de mensagens do passado nem o armazenamento de dados - material que o WhatsApp alega não ter acesso, mas que desvie as mensagens antes da criptografia ou que o Facebook crie uma tecnologia para rever o processo de codificação.

Finalizando: "Concluir que o serviço não poderá mais ser prestado, sob pena de privilegiar inúmeros indivíduos que se utilizam impunemente do aplicativo Whatsapp para prática de crimes diversos, orquestrar execuções, tramar todos os tipos de ilícitos, sempre acobertados pelos responsáveis legais do aplicativo Whatsapp, que insistem em descumprir as decisões judiciais, tornando estas condutas impossíveis de serem alcançadas pela Justiça."

Decisões nessa magnitude de afetação exigem uma reflexão profunda, afinal no centro do debate, existem inúmeros valores Constitucionais.

De um lado, a necessidade de investigação criminal, para melhor apuração do crime, do outro, os avanços tecnológicos nos métodos de encriptação, que visam proteger a privacidade dos milhões de usuários, de uma permanente tentativa de invasão por hackers aos aparelhos, no furto de dados bancários, fotos, entre outros.

Para aprofundarmos esse debate, é fundamental iniciar com pontos que são a referência dele.

Onde mora sua privacidade? Qual o limite dela? Qual o limite para o conhecimento de terceiros sobre ela?

No mundo moderno ela pode ser invadida por um hacker, ou pode ser estraçalhada por uma publicação equivocada em rede social ou outros meios noticiosos.

Da adolescente que temos em casa, que compra uma briga se souber que leram o diário dela, seja no papel ou nas páginas eletrônica da sua agenda.

Lembro que, a privacidade é um direito fundamental. Privacidade não pode ser confundida com privativo, nem tudo que é privativo está no campo da privacidade, ou melhor, privatividade. A mesma é um direito subjetivo fundamental, apresentando em sua estrutura básica três elementos: sujeito, conteúdo e objeto, sendo sujeito o titular do direito. O conteúdo da privatividade, como direito, a faculdade de constranger os outros ou de resistir-lhes (caso dos direitos pessoais), ou de dispor, usufruir. O objeto é o bem protegido, que pode ser uma coisa ou um interesse. No direito a privatividade, o objeto, é a integridade moral do sujeito.

Dentro da privatividade, encontramos a intimidade, a mais preciosa joia do conjunto valorativo da pessoa, seja ela física ou jurídica. Nem sempre o interesse da autoridade pode ser confundido com o interesse público, e quem pode sopesar esses valores constitucionais, é o neutro poder judiciário, guardião do princípio mater da isonomia, formador e norteador de uma sociedade justa e igualitária no Estado de Direito

Lembro que, no momento que você iniciou a leitura deste artigo, fez uma escolha privativa, de dedicar alguns minutos do seu dia para a obtenção de informações que sejam do seu interesse. Ao mesmo tempo, diversas outras pessoas iniciam a mesma leitura por razões próprias, que podem ou não ser comuns e iguais as suas, mas se você não externa esses motivos, eles permanecem sendo propriedade do seu íntimo.

A proteção a essas razões é garantida na Constituição Federal no artigo 5°, X. Naquele inciso, protege-se a intimidade, como um valor inalienável, cuja disponibilidade permissiva só você pode autorizar. Na sala ao lado o colega atestou o recebimento do artigo, mas no momento não faz ideia se você o está lendo ou não, afinal a portas fechadas à leitura é um ato privativo seu, e somente passa a ser disponibilizado, se você resolve deixar a porta aberta. No momento em que se abre a porta, disponibiliza-se mais um direito previsto no texto constitucional, o da inviolabilidade da privatividade, artigo 5°, X da Constituição. Nota-se que a simples leitura desse artigo implica no perfeito delineamento das duas esferas circundantes da personalidade garantida na nossa Carta.

A abertura da porta fez com que o ato de ler o artigo, fosse por você retirado da esfera da privatividade, mas as razões que motivam a leitura permanecem na esfera da intimidade, dela só saindo com a sua autorização. Seu colega ao ver você lendo o artigo pode ter diversas conclusões, sobre as razões que motivam a sua leitura, que certamente não saíram do campo quase que especulativo das presunções. As conclusões por ele tiradas podem por certo, serem as mais estapafúrdias, ou até mesmo, correr-se o risco de estarem corretas. O fato é que qualquer que seja a presunção especulativa, não terá força alguma para dela se extrair a verdade, como um valor que permitisse construir qualquer proposição, apenas a de que você passa os olhos sobre um artigo em um site jurídico, afinal concluir pela leitura, seria mais um elemento de presunção. Afinal, infinita é a distância entre ver e ler.

Quando se realiza a criptografia dos dados, busca-se proteger a sua intimidade, uma garantia da Magna Carta, de quase todos os países democráticos.

Em outras palavras o governo está pedindo que o Facebook, do do WhatsApp crie crie uma backdoor no programa, a empresa não possui, e também é considerado muito perigoso para ser criado. A criação desse software, que por sinal ainda não existe, teria o potencial de desbloquear qualquer usuário do programa, que esteja em meio físico qualquer (telefone e outros aplicativos), em posse física de alguém, oferecendo ao mercado uma ferramenta que nesse momento ainda não existe.

Os riscos tecnológicos, elevam o nível da discussão, pois prevalecendo a decisão judicial equivaleria a desabilitar os antigos sistemas de cibersegurança e ciberdefesa, o que em análise extremada, pode conduzir ao horizonte próximo a ciberguerra.

O curioso é que se utiliza de uma norma de 1789, para discutir a

O caso, levanta muitas questões, afinal, além da privacidade e da intimidade, estão também protegidos na nossa Magna Carta a propriedade intelectual, que estaria sendo flexibilizada na abertura desses códigos.

A Constituição Federal assim faz previsão:

“ Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

….

Nota-se que a propriedade, seja ela material ou intelectual está protegida pelo legislador constituinte. O que fica ainda mais claro em seus incisos:

“ XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

Nesse inciso pela primeira vez o legislador Constituinte, incluiu um dos direitos morais fundamentai, o chamado direito de divulgação, onde está implícito o direito de inédito e de tirar de circulação.

Nota-se que os inventos patenteados, reservam ao autor (criador ou desenvolvedor) o Direito único de Divulgação, de colocar ou retirar tal invento de circulação.

Tais Direitos encontram-se também protegidos na Declaração dos Direitos Universais do Homem de 1948, assegurando a proteção aos interesses morais e materiais dos autores nas obras, literárias, artística e científica…….

A Magna Carta ainda no mesmo artigo vai adiante: …

“XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; ”

O Princípio da Exclusividade de Utilização está disposto nesses dispositivos Constitucionais, em sendo os inventos, uma propriedade intelectual é de destacar-se que a exclusividade, não se exaure apenas no conteúdo patrimonial, no que se refere a exploração econômica, logo flexibilizar os códigos e as programações, de invento científico, que resultam nos programas que protegem os dados do nosso smartphone, fere as faculdades de ordem extrapatrimonial porque visam defender a personalidade do autor do invento, pois cabe somente a ele ou à quem dela for proprietário, a divulgação e ou sua modificação. Ainda que em um processo crime, a tentativa de produção de prova, não pode passar pela desfiguração do invento sem a autorização do seu autor.

Outro Princípio alcançado e que devemos destacar é o Princípio da Pessoalidade e Transmissibilidade, prevista em nosso ordenamento desde a Carta de 1934, decorrência do direito de propriedade, a pessoalidade da transmissibilidade é propriedade jurídica exclusiva do autor, logo a decisão judicial que pretende a flexibilização da propriedade intelectual como objetivo à produção de prova em processo crime exige o sopesamento desse outro princípio constitucional, que delineia os direitos do autor de inventos industriais. Tal garantia é estendida aos herdeiros, sendo o Direito do autor um direito de conteúdo econômico patrimonial. Logo um Direito sobre um ativo Intangível, porém passível de valoração e transmissível aos herdeiros. Por isso a quebra da proteção de tais inventos em processo investigativo, coloca também em risco um direito de herança, cabendo até mesmo ao autor do invento restringir a transferibilidade. Sua transferência só pode ocorrer com a autorização do autor.

Imagine que, ao quebrar a patente para um processo de investigação criminal no Município de Cobras, a autoridade judicial poderia bem, estar quebrando além da patente, e dos direitos do autor, efetuar um considerável prejuízo aos herdeiros, reforçando aí a necessidade do sopesamento da decisão que deve com cautela mensurar os riscos patrimoniais envolvidos, identificando outros caminhos possíveis que não resultem na quebra de direitos de terceiros.

Logo a quebra de patente, para aferição investigativa de processo crime desrespeita garantias constitucionais, afinal, no artigo 5° da Constituição Federal, estende-se a proteção patrimonial às pessoas jurídicas da propriedade de marcas, nome comercial e outros signos distintivos, a flexibilização de detentores de patentes, quando o que está em jogo é a privacidade e intimidade de pessoas, pode acarretar em prejuízo a marca, e logo pode o prejudicado se socorrer do judiciário, para tal reparo.

Tais inventos são protegidos, por prazos determinados, conforme o inciso XXIX, do artigo 5° da CF., e seus autores tem um privilégio de uso temporário do invento, esse dispositivo estabelece o Princípio da temporalidade da propriedade intelectual. Durante esse período somente o autor do invento pode liberar seu uso.

A relação do usuário com o seu aparelho telefônico, é uma relação de Direito, onde diversos valores estão e devem ser protegidos, afinal, cada vez mais os novos aparelhos se constituem como ferramentas de trabalho. Neles, além da intimidade, estão guardados sigilos profissionais que quem adquiriu o aparelho pretende ver protegidos.

Essa garantia também está prevista no artigo 5°da Constituição Federal:

“XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

Portanto além do sigilo profissional do conteúdo, que está no aparelho é portador dos segredos e intimidades do seu proprietário, naquele aparelho repousa também o segredo profissional de inúmeras patentes registradas pelos desenvolvedores e que devem ser tutelados.

É sempre bom repetir o exemplo: Imagine que uma pessoa solicitou ao Google a exclusão do seu nome das pesquisas efetuadas por ele. A empresa prontamente atendeu ao pedido do usuário, porém esse usuário sofre um processo crime. Como não encontrará nenhum registro na internet através da pesquisa no Google, o Ministério Público, autor da denúncia, inconformado, solicita a autoridade judiciária, que mande ao Google que efetue a pesquisa? O juiz prontamente atendendo ao MP solicita que o Google proceda a pesquisa. A empresa, com toda razão do mundo não disponibiliza a pesquisa. Como pena, sentindo-se desrespeitado a autoridade judiaria manda suspender os serviços do Google no Brasil. O argumento da empresa é de que não pode quebrar o anonimato de quem o solicitou. Inconformado o Juiz vai além, solicita que aos criadores do Google seja disponibilizado para instrumento de pesquisa, por parte de uma comissão de técnicos de informática de uma universidade, o algoritmo que norteia seu sistema de pesquisas?

A história pode parecer surreal, mas não é, ela está acontecendo diariamente, porém com atores e programas distintos, pois a criptografia que nos protege é a mesmo que nos ameaça, e o mundo derrete debaixo dos nossos pés.

São novos desafios para o velho Direito…

As invenções fazem parte do nosso patrimônio Cultural, algo que a Magna Carta protegeu:

“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – …….;

II –      ;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; ”

O Patrimônio Cultural não é um bem que pode ser fragilizado a todo momento, por conta de decisões apressadas. É preciso evitar o abuso de Direito, previsto no Código Civil art. 187.

A economia Globalizada faz crescer a propriedade intangível, os novos valores são contados em bits e não mais em toneladas, é o livre comércio; ofertando um novo e imenso desafio.

O fato é que decisões, que retiram do ar um meio de comunicação de mais de 100 milhões de brasileiros deve muito bem ser sopesado, pois não se pune comercialmente somente o Facebook (WhatsApp), está se punindo milhões de pessoas que utilizam o paliativo para marcar consultas, se comunicar com filhos, grupos de estudos, grupo de amigos além de ser uma ferramenta que barateia a comunicação de milhões de brasileiros. Certamente não é o melhor caminho e nem muito menos o único para uma melhor investigação criminal.

Quando vejo decisões como essa, de extrema radicalidade, eu lembro da história do marido que ao chegar em casa se depara com a esposa em tórridos enlaces corporais com o vizinho. Ele incomodado com a situação esbraveja discute com ambos e resolve tomar uma medida radical, que vai afetar à todos. Tira o sofá da sala!


Charles M. MachadoCharles M. Machado é Professor nos Cursos de Extensão da ESPM, Escola Superior de Propaganda e Marketing, em Direito das Marcas e Direito do Intangível, é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha, Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também já foi  palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito. Email: charles@charlesmachado.adv.com.br


Imagem Ilustrativa do Post: spy-whatsapp-messages // Foto de: Sam Azgor // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/samazgor/9344676230

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura