MORITFICAÇÃO DO EU E BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA SAÚDE MENTAL DAS MULHERES PRIVADAS DE LIBERDADE

03/04/2020

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

O sistema carcerário é predominantemente masculino. Tal fato se deve, até mesmo, em razão da própria natureza do homem, mais agressiva. As mulheres, por outro lado, são ensinadas a se portarem de forma mais passiva, não violenta, tanto é verdade que a maioria dos crimes cometidos por mulheres são crimes sem violência ou grave ameaça[1].

Ocorre que ainda sendo os homens a grande maioria da população carcerária[2], segundo levantamento nacional de informações penitenciárias - INFOPEN, publicado em 2018, 42.355 mulheres encontram-se privadas de liberdade no país, apresentando-se um crescimento de 656% entre os anos de 2000 a 2016 (SANTOS, 2018, p. 14), o que pode ter por justificativa diversos fatores, como, por exemplo, a crescente participação da mulher no mercado de trabalho, e, por conseguinte, uma maior responsabilidade sócio econômica.

Assim, a partir do momento que a mulher se tornou mais independente, ela assumiu não só maiores responsabilidades no mercado de trabalho, mas também quanto ao custeio do lar. Aquela mulher antes submissa, que não trabalhava e que dependia da renda do marido ou companheiro para a própria sobrevivência e dos filhos, vem dando espaço à mulher ativa no mercado de trabalho e que necessita da sua renda para o sustento da família.

Nesse sentido “é possível dizer que à medida em que as disparidades sócio-econômico-estruturais entre os sexos diminuem, há um aumento recíproco da criminalidade feminina” (LEMGRUBER, 1999, p. 06).

Essa maior independência somada às responsabilidades financeiras, vem fazendo com que a mulher, muitas vezes sem outras oportunidades de emprego, tenha que se debandar para a criminalidade como único meio de sobrevivência.

Esse novo cenário, como visto, gerou um aumento vertiginoso no número de mulheres encarceradas, mas o meio ambiente carcerário não foi preparado para tanto. As unidades prisionais não foram pensadas para as mulheres, haja vista que grande parte delas ocupam alas em presídios masculinos e outras unidades que eram masculinas simplesmente foram destinadas às mulheres, sem que qualquer tipo de adaptação fosse feita.

Assim, ao entrar para o Sistema prisional a mulher não tem respeitada a sua individualidade, sendo que o próprio Regulamento de Normas e Procedimentos do Sistemal Prisional (RENP) de Minas Gerais, em poucos pontos diferencia o tratamento destinado aos homens e às mulheres privados de liberdade. Um desses pontos é a não obrigatoriedade do corte de cabelo para as mulheres[3], o que de fato, geraria uma anulação ainda maior daquela que já perde a identidade ao ser encarcerada.

Essa anulação do eu, ou como preferiu Goffman a “mortificação do eu”, não é algo que acontece somente nas prisões femininas, mas em qualquer tipo de instituição total, que pode ser entendida “como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (GOFFMAN, 1987, p. 11), podendo citar como exemplos as prisões, os conventos, os quarteis e os manicômios.

A prisão é uma instituição total na medida em que toda a vida se passa em um espaço minimamente delimitado. É na prisão que o indivíduo trabalha, estuda, se relaciona amorosamente, seja relações homo afetivas dentro da própria unidade, ou até mesmo em razão das visitas, sejam elas sociais ou íntimas. Ainda é nesse espaço delimitado que acontecem os momentos de lazer, como banhos de sol e atividades esportivas, essas últimas quando existentes.

Esse confinamento, em qualquer ser humano, gera uma série de consequências, afinal, deixa de se ter autonomia sobre o que comer, quando comer, o que vestir, quando tomar banho, onde e como estudar ou trabalhar.

Se para qualquer homem essa mortificação já se mostra presente, imagine para mulheres, que têm mortificada não só a sua condição humana, mas também a sua condição feminina. A vaidade das mulheres é muitas vezes desconsiderada nos presídios. Em Minas Gerais, o uniforme vermelho que é cedido aos presos homens pela Subsecretaria de Administração Prisional (SUAPI), é o mesmo que é cedido às mulheres: calças, bermudas e camisas largas, o que, possivelmente, é incompatível com as vestimentas que aquelas mulheres estão acostumadas extramuros.

Em um primeiro momento pode parecer algo muito pequeno, principalmente partindo-se da perspectiva masculina, mas não é. A feminilidade também está nas roupas, no cuidado com os cabelos, com a pele, com as unhas, na maquiagem. Enquanto presa a mulher perde todos esses “pequenos” cuidados, que acabam contribuindo para a anulação da sua condição de mulher.

Contribui ainda para a mortificação do eu a exposição da mulher nos centros prisionais e a vigilância constante. Diferentemente do homem, a mulher foi criada com maior acatamento, orientada a não se despir em público ou mesmo a se utilizar de banheiros com as portas fechadas para evitar exibições, enquanto nos banheiros públicos masculinos, não há nenhum pudor entre os homens de urinarem em mictórios e serem observados por outros, na mesma condição.

Quando a mulher ingressa na unidade, essa intimidade também é perdida. Primeiro porque todos os locais de convívio são compartilhados, as mulheres fazem as atividades de lazer juntas, almoçam juntas, dormem juntas e muitas vezes umas tem que presenciar os banhos e outras atividades fisiológicas das demais, porque nem mesmo portas existem nos banheiros, dadas as condições precárias das unidades prisionais.

Não bastasse isso, as revistas das mulheres acontecem de forma indiscriminada e sem o mínimo de pudor. Elas têm que se despir na frente das agentes e demais detentas e passam por procedimentos vexatórios, como agachar de frente e de costas, totalmente nuas, para averiguar se não estão guardando celulares, drogas ou outros instrumentos ilícitos ou proibidos dentro do próprio corpo.

Aliado a isso, ainda há a vigilância constante. A estrutura de Panóptico, pensada por Jeremy Bentham, ainda no século XXVIII, e utilizada como modelo em muitas das unidades prisionais, facilita o modelo disciplinar. A estrutura do Panóptico foi por Foucault assim apresentada:

(...) na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente cobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. (FOUCAULT, 2011, p. 190).

A partir dessa estrutura é possível manter as detentas sob vigília constante, ou mesmo que não estejam sendo vigiadas, pensam que estão a todo tempo. “Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, 2011, p. 191).

Apesar de a vigília ser uma necessidade em qualquer instituição total, até mesmo em face de proteção dos próprios internos, em caso de agressões ou mesmo rebeliões, por exemplo, ela também atua de forma negativa na psique dos internos, ainda que inconscientemente.

Não basta estar cercado o tempo todo de pessoas que não se escolheu conviver, as presas ainda têm que se adaptar às imposições do meio e são constantemente vigiadas para que as regras sejam efetivamente cumpridas, sob pena de punições administrativas ou até mesmo judiciais, em caso de cometimento de falta grave ou novo crime no interior da unidade prisional.

 Vê-se que a mulher aprisionada perde sua autonomia, afinal, o eu precisa dar lugar aos objetivos da instituição. Toda a rotina do preso é direcionada por terceiros, que precisam manter a ordem e disciplina.

Lemgruber, que fez um estudo junto ao Talavera Bruce, presídio situado no Rio de Janeiro/RJ, trouxe em sua obra um depoimento importante, que demonstra claramente a anulação da mulher privada de liberdade. Segundo a interna: “tu vem preso, mas o teu corpo só é que tá preso. Mas eles não se conformam com isso, querem mudar tudo em você. Querem mudar tua vida, querem mudar o que pensa, querem te transformar em outra pessoa” (LEMGRUBER, 1999, p. 38).

Além de toda a mortificação causada pelo Sistema, as presas ainda sofrem com o abandono dos familiares e amigos. Como se verifica pelos dados apresentados pelo INFOPEN (SANTOS, T., 2018, p. 27) a média de visitas para mulheres é de 5,9 visitas por mulher a cada seis meses[4]. Ou seja, as mulheres privadas de liberdade, recebem, em média, menos de 1 (uma) visita mensal.

Várias internas são praticamente abandonadas. Visitas, às vezes frequentes no início, vão aos poucos rareando até serem definitivamente interrompidas. Muito comuns são os casos em que a família custeia inicialmente os honorários do advogado e, após algum tempo, interrompe o pagamento deixando as mulheres à sua própria sorte (LEMGRUBER, 1999, p. 97).

Assim, a mulher é duplamente punida, a prisão já a anula, e o afastamento da família, e, principalmente, dos filhos, agrava ainda mais o sofrimento das presas, o que acaba desencadeando um quadro de ansiedade ou depressão.

Devido ao confinamento, as mulheres possuem uma dimensão de conflitos que, de modo sobreposto e multifatorial, desencadeia uma série de situações relacionadas que afetam negativamente as condições de saúde e de vida. As entrevistadas deixaram claro que estavam em um período de grande estresse. Seus relatos evidenciam situações que caracterizam estados de depressão e ideação suicida, conforme depoimentos a seguir: [...] me deparo no tempo sozinha. [...] me bate a depressão do abandono. [...] tem hora que eu me acho péssima. [...] vontade de morrer, [...] parar de sofrer [...]; [...] estressada [...] desconto na polícia [agentes penitenciárias] meus problemas [...] (SANTOS, M., et al, 2017. p. 05) – destaque no original.

Segundo estudo realizado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas/SP, a partir de amostragens em uma unidade prisional feminina do interior de São Paulo, 19,1% das detentas declararam usar tranquilizantes e 62,3% declararam terem usado drogas no último anterior à prisão (AUDI, et al, 2016, p. 119-120).

Diante desse quadro é preciso que existam políticas públicas efetivas que visem a maior qualidade da saúde mental das mulheres privadas de liberdade, mas, para tanto, não bastam que sejam disponibilizados nas unidades prisionais profissionais de saúde mental e medicação apropriada. O problema precisa ser corrigido na origem, se possível antes mesmo dessas mulheres ingressarem no cárcere.

Como visto grande parte presas são usuárias de drogas, o que é um fator preponderante para o cometimento de delitos, afinal, essas mulheres precisam de renda não só para subsistência da família, mas para o próprio vício. Trata-se de uma questão de saúde pública.

Ao ingressarem na prisão, outro trabalho deve ser feito por parte do Estado, o de conceber condições dignas de cumprimento de pena para essas mulheres. É necessário que o público carcerário feminino seja visto como tal, ou seja, que tenha respeitado as suas individualidades enquanto mulher. Submeter a mulher às condições degradantes do sistema carcerário atual intensifica todo um sofrimento já previamente existente em razão de fatores sociais, o que só agrava a mortificação do eu no interior da unidade.

Uma vez estabilizadas emocionalmente, na prisão, as mulheres devem receber cursos de formação profissional, o que, sem dúvidas, diminuiria o ócio, mas também daria a essas mulheres possibilidades de trabalho lícito e de reinserção social, fim tão almejado da execução penal.

 

Notas e Referências

AUDI, Celene Aparecida Ferrari, et al. Inquérito sobre condições de saúde de mulheres encarceradas. Revista Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 109, p. 112-124, 2016. Disponível em:  http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v40n109/0103-1104-sdeb-40-109-00112.pdf. Acesso em 13 mar 2020.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2011.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1987.

LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Defesa social. Regulamentos e Normas de Procedimento do Sistema Prisional de Minas Gerais- ReNP. 2016.

SANTOS, Thandara. BRASIL. Ministério da Justiça. INFOPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça, 2018. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf. Acesso em 10 mar. 2020.

SANTOS, Marcia Vieira dos, et al. Saúde mental de mulheres encarceradas em um presídio do Estado do Rio de Janeiro. Revista Texto e Contexto – Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 02, p. 01-10, 2017. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/tce/v26n2/pt_0104-0707-tce-26-02-e5980015.pdf. Acesso em 15 mar 2020.

[1] “De modo geral, podemos afirmar que os crimes relacionados ao tráfico de drogas correspondem a 62% das incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em 2016, o que significa dizer que 3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes ligados ao tráfico” (SANTOS, T., 2018, p. 53).

[2] No segundo período de 2016, época do estudo realizado pelo INFOPEN, a população carcerária masculina era de 665 mil (SANTOS, T., 2018, p. 14-15).

[3] § 2º O corte de cabelo não será obrigatório para mulheres e para as pessoas de orientação sexual prevista na Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril de 2014. (MINAS GERAIS, 2016, p. 161)

[4] “Nos estabelecimentos masculinos, foram realizadas, em média, 7,8 visitas por pessoas ao longo do semestre” (SANTOS, T., 2018, P. 27).

 

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