Modularidade mental: A “mente moral” (Parte 2)

21/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 21/05/2015

    Leia a Parte 1 aqui

«La duda no es una condición agradable, pero la certeza es una condición absurda.»

Voltaire

Parte 2

A resposta para todas estas perguntas parece ser afirmativa. O cérebro alcança sua maturidade durante a ontogenia também pelo que diz respeito a qualquer outro módulo ou “órgão” mental, e não somente o da linguagem. E o interessante para o que interessa é que a analogia nos permite compreender que deve haver módulos específicos ou constrições inatas no pensamento moral que restringem de forma similar o conjunto dos sistemas morais (e jurídicos) humanamente possíveis a um subconjunto relativamente pequeno de sistemas lógicos possíveis, posto que a seleção natural modelou nosso cérebro com o resultado de que nos importam mais umas coisas que outras.

Dito de outro modo, nossa arquitetura cognitiva modular impõe constrições fortes e significativas para a percepção, o armazenamento e a transmissão discriminatória de representações socioculturais, demarcando o rol das variações culturais possíveis. Esta determina, condiciona e limita aquilo que percebemos, o modo de processar a informação e o como a interpretamos: “qué información se toma, cómo se transforma, cómo se almacena y se transmite, y cómo afecta al organismo (es decir, la forma en que el organismo percibe, interpreta y actúa) todo depende de la organización innata del organismo” (S. Pinker). Os limites observados na diversidade dos enunciados éticos e normativos são os reflexos da estrutura e funcionamento de nossa arquitetura cognitiva. As características biológicas de nosso cérebro estabelecem o espaço das normas de conduta (morais e jurídicas) que nos são possíveis aprender e seguir.

De ser assim, parece razoável admitir não somente que o comportamento moral e social está guiado, em termos profundos, por uma mente integrada funcionalmente em módulos funcionais ou domínios específicos (sempre que entendamos estes – repito - como redes neuronais que envolvem zonas diversas do cérebro), senão também que nossas valorações são, em boa medida, o resultado de dois domínios em permanente estado de interação: (i) um conjunto de determinações genéticas e neurobiológicas que nos estimulam a manter atitudes morais, a avaliar e preferir, e que pertence ao genoma comum de nossa espécie; e (ii) um conjunto de valores morais do grupo que é uma construção cultural, de tal forma que dita construção (e transmissão) dos valores tem lugar de maneira histórica em cada sociedade e em cada época.

Desta interação resulta um universo de preferências que não é livre de tomar qualquer caminho. Nossas valorações são dirigidas e estão condicionadas a grandes traços pela tendência inata a determinadas condutas, que pode considerar-se a verdadeira fonte dos valores humanos. E é importante ter esta circunstância em conta porque as valorações morais e jurídicas compartidas são as que têm mais probabilidades de êxito no contexto (humano) de uma existência essencialmente social. Ademais, resulta conveniente aproveitar este fato, na medida do possível, à hora de elaborar e adequar os preceitos éticos e normativos a sua sólida realidade se queremos que funcionem, mais do que extrair-lhes de voláteis e contingentes verdades morais e jurídicas que se criam a um nível de pura abstração mental e que não escapam às limitadas e dominantes categorizações filosóficas.

Como sustenta Antonio Damasio, os valores éticos constituem estratégias adquiridas para a sobrevivência dos indivíduos de nossa espécie, mas tais habilidades adquiridas encontram um apoio neurofisiológico nos sistemas neuronais de base que executam as condutas instintivas. Os processos cerebrais que têm uma relação com as emoções estão profundamente articulados com os que realizam cálculos de avaliação, mediante o estabelecimento de redes neuronais que conectam o lóbulo frontal com o sistema límbico. Assim que se o juízo moral (e ético-jurídico) está  baseado em razoamentos de avaliação, mas também em emoções e sentimentos morais produzidos pelo cérebro, não pode ser considerado como totalmente independente da constituição e do funcionamento deste órgão adquirido na história evolutiva própria de nossa espécie.[1]

Por outro lado, e não menos importante, isto também explica, como mínimo, que o suposto implícito em muitas teorias da criação e transmissão cultural de que a mente é um processador de informação equipotencial – o suposto de que as representações mentais com distintos conteúdos são igualmente fáceis de ser  transmitidas – é falso. Primeiro, porque as representações cujo conteúdo encaixa em um módulo ou domínio específico para o qual temos mecanismos especializados são transmitidas de  modo muito distinto daquelas que não encaixam nesse domínio. Em segundo lugar, porque acaba com a grande dúvida sobre se o indivíduo é um receptor passivo da transmissão cultural (tal como defendido pelo relativismo cultural, no sentido de que todos os aspectos da conduta humana se aprendem, diferem e podem diferir por completo em distintas culturas), o que, de fato, não o é (D. Sperber).

Tudo isto indica que nos encontramos com um papel importantíssimo da convivência social: o de dirigir o componente inato humano em direção a certos domínios particulares[2]. Cabe imaginar numerosos guiões evolutivos nos quais um esquema assim, de interação entre a natureza individual de seres que vivem em grupo e a presença de valores culturais coletivos, proporciona vantagens adaptativas ingentes. E dentro deste acúmulo de hipóteses há uma que não podemos elidir, que estamos obrigados a considerar como algo irrefutável: a do direito como parte desse entorno cultural.

A origem e evolução de nosso “comportamento contratual”, quer dizer, do direito como artefato da cultura, não é um produto cultural que responde muito direta e racionalmente às condições totalmente recentes, senão um aspecto intrinsecamente humano e tão próprio de nossa espécie que, expandido múltiplas vezes a uma dimensão coletiva, evolucionou em preceitos que deram lugar a nossa atual e aparentemente mais ampla riqueza moral e jurídico-normativa. Isto permite entender que os normas morais e jurídicas são o resultado de um longo e complexo caminho de adaptação ao largo do tempo transcorrido desde o aparição de nossa espécie.

O mesmo é dizer que a natureza humana - definida como um conjunto de mecanismos psicobiológicos comum de nossa espécie que são o resultado de um largo caminho evolutivo, marcado pelos imperativos da seleção natural - resulta indispensável para compreender as possibilidades e os limites da cultura humana, isto é, que funciona como indispensável fator possibilitador e determinante restritivo de toda variação cultural possível; variação que remete, em última instância, a dois tipos de fatores explicativos: a própria arquitetura mental modular (de conteúdo próprio ou específico) e as condições ambientais locais nas quais se desenvolve.

E uma vez que a complexidade da mente não se deve à cultura, senão que a cultura se deve à complexidade da mente humana, a criação, a acumulação e a transmissão cultural são adaptativas desde sua própria origem ao permitir que os indivíduos diminuam o tempo e os custos necessários para a aquisição ou o aprendizado (individual e social) de uma conduta em termos de eficácia evolutiva (R. Boyd & P. J. Richerson). A respeito do artefato cultural denominado direito cabe dizer o mesmo.


Notas e Referências:

[1] O cérebro humano não caiu do céu nem é um artefato inescrutável de origem desconhecida. Portanto, já não há nenhum motivo sensato para estudá-lo deixando de lado o processo causal que lhe deu origem. Os mecanismos cognitivos em desenvolvimento que constituem coletivamente a arquitetura da mente humana adquiriram sua organização funcional particular a partir do processo de evolução: os mecanismos de domínio próprio ou específico, que corresponde a toda informação que o módulo cognitivo tem que processar por ser essa sua função biológica, são adaptações produzidas pelo processo evolutivo que atuou sobre nossos ancestrais caçadores e recoletores (L. Cosmides & J. Tooby).

[2] Tanto temos instintos sinistros como instintos luminosos: os seres humanos têm alguns instintos que fomentam a virtude e o bem comum e outros que favorecem o comportamento egoísta e antisocial. Precisamos planejar uma sociedade que estimule aqueles e desencoraje estes (M. Ridley). Nas palavras de Michael Sandel: na presença de indivíduos dotados de certas qualidades de caráter, de certas disposições morais que os levam a identificar com a sorte dos demais e, em definitiva, com os destinos de sua comunidade, o melhor será deixar de lado a ideia liberal do Estado neutral para substitui-la por um Estado ativo em matéria moral, e decidido a “cultivar a virtude” entre seus cidadãos.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


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