Modulação: um olhar a partir da Lei 13.655/2018

05/05/2018

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro/Coordenador Gilberto Gomes Bruschi

Sumário: 1. Sobre a modulação - 2. Súmula 343 – além de inconstitucional, perdeu sua utilidade - 3. Lei 13.655/2018 (alterações na LINDB). 

  1. Sobre a modulação

Nossos tribunais, tradicionalmente, não admitem ação rescisória para desconstituir coisa julgada produzida em processo resolvido com base em orientação jurisprudencial superada, para que se faça, assim, a adequação da solução jurídica que se deu à situação, à nova posição jurisprudencial, com base na Súmula 343.

Segundo a Súmula 343 do STF, por nós sempre ampla e insistentemente criticada, não é cabível ação rescisória com base no art. 966, V, do CPC, quando, à época da prolação da decisão que se pretende rescindir, a jurisprudência era controvertida.

A Súmula 343, a nosso ver, compromete os princípios da legalidade e o da isonomia, do mesmo modo que ocorria com a Súmula 400 do Supremo Tribunal Federal, que vem sendo, felizmente, cada vez menos invocada pelos nossos Tribunais Superiores.

A Súmula 343 afasta a isonomia impedindo que duas situações idênticas sejam resolvidas da mesma forma, com base em critério não jurídico, sequer racional. O princípio da isonomia é aquele segundo o qual o direito deve atingir a todos do mesmo modo, e, quando isso não ocorrer, a discriminação não pode ser feita arbitrariamente, sendo vantajosa ou desvantajosa para os atingidos.

Deve haver, portanto, possibilidade de se justificar racionalmente o porquê da discriminação. Deve existir uma correlação racional entre os discriminados, tipo de discriminação e a razão de esta ter sido feita.

Por isso é que, em nossa opinião, não tem sentido diferenciar situações a partir do “acaso”, ou de quaisquer outros critérios que não justificam tal discriminação. É este o defeito da Súmula 343: baseia-se num “critério” que não é racional. Assim, se A foi prejudicado por certa decisão que encampou certa posição da jurisprudência, tendo-se, em seguida, pacificado a jurisprudência em sentido contrário, deve ter direito ao uso da ação rescisória. O fato de haver jurisprudência conflitante à época da prolação da decisão não é critério racional para privar A da possibilidade do uso da ação rescisória.

Embora a ação rescisória deva ser considerada cabível, nunca obstada por esta súmula que não se afeiçoa à Constituição Federal, há casos, sim, em que devem ser prestigiados outros princípios, que autorizam o afastamento da necessidade de isonomia.

Quando se entende dever ser preservada a decisão que se pretende rescindir em função de outras razões, de outros critérios, que afastem a necessidade de respeito à isonomia, diferentes dos que estão na base da súmula 343, deve mesmo a rescisória ser obstada. Esses outros valores, que justificam racionalmente a necessidade de preservação de algumas situações, ligam-se ao princípio da confiança e à necessidade de que o direito proporcione previsibilidade.

Compreende-se, portanto, o raciocínio que se desenvolveu no caso, em certas situações como a retratada no RExtr. 590.809/RS – 2014.[1] Trata-se de extenso acórdão em que se pretendeu rescindir acórdão que acompanhou jurisprudência do próprio STF (portanto, pauta de conduta confiável, à época), e se disse ter-se, para isso, usado a Súmula 343, quando, na verdade, não foram os fundamentos desta súmula os adotados na conclusão do acórdão.

Neste acórdão, abordam-se valores que apontariam para o não cabimento da ação rescisória, mencionando-se, para isso, a Súmula 343. Não foram, entretanto, como se observou, os pressupostos de incidência da Súmula 343 que levaram à sua aplicação! Ao contrário, já que aqui, tratava-se de decisão proferida com base em entendimento pacificado do STF, que, ao depois, se quis rescindir, porque alterada a posição do STF. Ou seja, a jurisprudência não era controvertida à época em que foi proferida a decisão.

Mais acertado teria sido fazer-se a modulação dos efeitos da mudança, quando da mudança, e não o recurso à infeliz Súmula 343, mesmo antes de haver previsão expressa deste instituto no CPC de 2015. É a solução que consta do art. 927, § 3.º do CPC.

Trata-se de instituto que se traduz na possibilidade de os tribunais decidirem expressamente, quando alteram a orientação antes seguida, a respeito de aspectos temporais, territoriais etc... ligados à “eficácia” da decisão. Com isso quer-se dizer que os Tribunais podem, por exemplo, dizer que só vão decidir com base no novo entendimento a partir do ano seguinte, ou a partir daquele momento etc...

Se se quer, realmente, prestigiar o princípio da confiança e da segurança jurídica, a modulação é instrumento que se presta a fazê-lo de forma extremamente satisfatória.

Explicamos: se os tribunais entendem que há razões para preservar as decisões, transitadas em julgado, que foram tomadas à luz da posição que anteriormente era considerada a correta, podem, com base na modulação, que terá sido feita na decisão em que se alterou posição anterior, não admitir a ação rescisória.

A modulação, então, pode gerar consequência idêntica à da aplicação da Súmula 343: o não cabimento da ação rescisória. Porém, com apoio em fundamentos diversos, harmônicos com o direito contemporâneo.

Com a modulação, entretanto, pode-se fazer mais. Não se trata de instituto cuja função é, apenas, a de evitar rescisórias. A modulação é porta aberta para que se estabeleça que a alteração de posição adotada por certo tribunal venha a atingir APENAS os processos derivados de fatos que ocorreram já à luz do novo entendimento.

Assim, se evita o indesejável efeito retroativo da mudança da jurisprudência, nos casos em que haja valores que recomendem que a situação anterior seja mantida.

Explicamos: se A deixa de recolher certo tributo, porque o STF entende, pacificadamente, que o tal tributo não incide na atividade que A realiza e, de repente, este mesmo tribunal passa a entender que o tal tributo INCIDE, à luz do MESMO TEXTO DE LEI, deve usar este novo entendimento apenas para decidir processos oriundos de casos fáticos POSTERIORES à alteração de posição. Caso contrário, A será julgado com base num padrão normativo que não existia quando praticou sua conduta: praticou sua conduta em conformidade COM O DIREITO. 

  1. Súmula 343 – além de inconstitucional, perdeu sua utilidade

A modulação não pode ter o condão, apenas, de evitar a rescisória. Entendemos, que esta deve ser feita de molde a evitar que a nova posição adotada afete NÃO SÓ SITUAÇÕES em que tenha havido processos e trânsito em julgado, mas também aqueles em que o indivíduo agiu de boa-fé, em absoluta conformidade com o direito “em vigor”, com a pauta de conduta tida por correta,

A modulação não pode desempenhar única e exclusivamente papel de “jurisprudência defensiva”.

Vê-se, pois que a modulação substitui com vantagens a súmula 343. Primeiro, seus fundamentos são razoáveis: preservação de segurança jurídica, resposta adequada ao princípio da confiança. Não é, como se quer com a Súmula 343, querer-se fazer crer que a decisão estaria “correta” só porque teria sido proferida num momento histórico em que ainda se discutia qual deveria ser a tese jurídica adotada, a partir do sentido da norma se viesse a adotar. A Súmula 343 elege critério não jurídico e tampouco razoável para sujeitar a decisão à rescindibilidade: o “acaso” de a discussão existir, ou não, quando da prolação da decisão.

Aliás, de rigor, o contrário é que deve gerar a não rescindibilidade: a decisão rescindenda estar em absoluta consonância com a jurisprudência pacificada de um Tribunal Superior.

Entretanto, a modulação permite, como se viu, que se faça muito mais do que isso. Pode-se até julgar certo caso x, de acordo com entendimento jurisprudencial que havia à época em que ocorreu o caso x, mesmo que este entendimento já esteja superado no STJ ou no STF.

Assim, pois, que a modulação é instituto versátil, flexível, que se presta, de modo muito mais completo, a realizar, concretamente, a segurança jurídica. 

  1. Lei 13.655/2018 (alterações na LINDB)

A Lei 13.655, recentemente aprovada, devendo entrar em vigor 180 dias após sua publicação, trata também deste tema.

A redação dos seus dispositivos não é das mais claras. É, exageradamente, permeada de conceitos vagos, apresentando, portanto, a potencialidade de gerar profundas discrepâncias interpretativas.

Entretanto, nos arts. 23 e 24, a nova lei diz algo de extrema relevânciae quanto à alteração de posição da jurisprudência. O art. 23 estabelece a decisão, a respeito do tema x, que adota orientação diferente daquela que vinha sendo adotada pelas decisões anteriores do mesmo órgão, deve conter, em si mesma, regime de transição quanto à incidência dos efeitos que dela decorrem, quando isto for indispensável para concretização do princípio da confiança e da segurança jurídica.

O art. 23,[2] cujo conteúdo foi resumido acima, usa expressões ambíguas e não usuais, ao menos, na linguagem dos processualistas. Faz, também, uma distinção que seria dispensável: diz que a regra se aplica quando a nova interpretação recair sobre norma de “conteúdo indeterminado”. Provavelmente, o que o legislador quis dizer, é que as normas que ensejam alterações interpretativas, cujos efeitos devem ser modulados, seriam apenas aquelas que contêm conceitos vagos. Todavia, sabe-se que a indeterminação dos conceitos envolve graus: quase todos os conceitos têm certa dose de vaguedad. Basta-se pensar na palavra “mãe”, que pode abranger a mãe natural, a mãe adotiva, a mãe biológica e etc., dependendo do contexto em que se encontre. A nova regra, óbvia e evidentemente, não se aplica, “apenas”, aos casos em que as normas, cuja interpretação foi alterada, contenham conceitos vagos. O legislador, portanto, disse menos do que queria.

O art. 24,[3] por sua vez, tem o alcance que, a nosso ver, deve ser efetivamente atribuído ao instituto da modulação. Diz que, quando o Judiciário revê certo ato, contrato, ajuste etc., que tenha se completado à luz de “orientações gerais da época”, para se verificar da sua validade, devem-se levar em conta, como parâmetro, exatamente as orientações urgentes à época da ocorrência do ato, do contato etc. e não aquelas decorrentes de mudança de posicionamento posterior.

No parágrafo único desse mesmo dispositivo, consta que estas “orientações gerais” compreendem a “jurisprudência judicial”. Parece-nos, portanto, que este dispositivo significa que, aquele que agiu reiteradamente com base em orientação pacificada dos tribunais, a respeito do sentido de certa norma jurídica, quando tem seus atos avaliados pelo Judiciário, quanto à sua validade, faz jus a que seja julgado à luz dos parâmetros existentes à época em que a conduta se realizou, ainda que a orientação deste mesmo tribunal tenha sido alterada.

Portanto, apesar dos sérios problemas de redação apresentados por esta Lei, inclusive nos dois dispositivos aqui mencionados, a nosso ver, duas relevantes dimensões do instituto da modulação foram abarcadas por esses arts. 23 e 24: (i) tanto a possibilidade de que não se rescinda sentença proferida com base em orientação jurisprudencial superada, quando era esta a predominante na época da prática do ato ou da conduta sub judice, (ii) quanto a necessidade de que a regularidade dos atos ou das condutas das partes sejam avaliadas em conformidade com as normas jurídicas existentes à época em que praticados. Quando nos referimos, aqui, à norma jurídica, queremos significar a lei interpretada pelos tribunais, de acordo com a doutrina.

Assim, exatamente no sentido das observações feitas nos itens anteriores, a modulação serve para que aquele que pagou certo tributo, durante um tempo x, por que a orientação dos tribunais, ao interpretar a lei, era a de que o tributo era realmente devido, uma vez alterada a posição dos tribunais, não pode intentar ação contra o fisco repetindo o indébito. Do mesmo modo, não pode o Fisco cobrar de quem não pagou certo tributo, reconhecido como não devido, conforme jurisprudência pacificada.

Os dispositivos legais aqui constados contêm permissão para que o julgador exerça juízo de valor quanto à necessidade de se modular.[4] Todos os argumentos, de que acima se tratou, nada têm a ver com a situação de certo recurso individual ser julgado do modo X, sobre certo tema, e de, na semana seguinte, haver um repetitivo, do mesmo tribunal, sobre o mesmo tema, decidindo do modo Y. A nosso ver, em casos como este, a situação do recurso individual deve ser corrigida, ou pela via dos embargos de declaração, se houver tempo, ou pela rescisória. Em casos como estes, prevalece o princípio da isonomia, não o da confiança. 

 

NOTAS

[1] Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 22/out/2014.

[2]Art. 23.  A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”.

[3]Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público”.

[4] Também o art. 927, § 3.º, se utiliza da expressão “pode (pode haver modulação). 


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Imagem Ilustrativa do Post: Abstract 1.1 // Foto de: Steve Snodgrass // Sem alterações

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