Coluna Por Supuesto
No final da última semana recebi o convite do professor Walter Rothenburg para participar de um debate sobre a efetividade dos direitos sociais, que contou com a intervenção especial do Professor moçambicano Carlos Pedro Mondlane, presidente da União Internacional dos Juízes de Língua Portuguesa. Tratou-se de uma oportunidade interessantíssima para abordar, ante uma plateia animada de estudantes de mestrado e doutorado do Centro Universitário de Bauru, temas referentes à América Latina e África, e em especial ao Brasil e a Moçambique, país que até 1975 esteve sob o domínio de Portugal.
O primeiro que me pareceu significativo do convite foi a aproximação acadêmica de pensamentos e experiencias jurídicas de países do denominado Sul global. De fato, intercambiar conhecimentos jurídicos entre países periféricos - mesmo que tenham dimensões e população como a brasileira, o que sem dúvida torna o Brasil muito menos periférico que muitos outros – nos ajuda a concretizar aquilo que Boaventura de Souza Santos denomina de Epistemologias do Sul, é dizer, uma orientação epistémica que procura reconhecer e validar o conhecimento produzido ou a produzir por aqueles e aquelas que tem sofrido sistematicamente as injustiças , as opressões, a dominação, a exclusão, causadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado, os três principais modos de dominação moderna. [1]
De maneira que me preparei para escutar e aprender e não saímos nem um pouco decepcionados. Conforme o Dr. Mondlane, a edificação do Direito em Moçambique, passa por compreender o período em que proclama a independência, dentro da onda de descolonização que caracteriza a chamada terceira crise geral do capitalismo. Destarte, deu-se a promulgação da Constituição de 1975 que tem um vigoroso preâmbulo. A direção do Estado seguiu os rumos de uma revolução socialista, sendo prontamente nacionalizados os serviços de saúde e educação e promovidas jornadas de alfabetização e socialização das relações de produção no campo. Essa Constituição foi modificada em 1978 e logo em 1990 foi promulgada uma nova, que precedeu à que atualmente está em vigor, promulgada em novembro de 2004.
Mas, vale a pena a leitura do preâmbulo da Constituição de 1975 que, em nosso juízo, tem um valor histórico-político incalculável e que se manteve na Constituição de 1990:
“A zero hora do dia 25 de junho de 1975, o Comité Central da Frente de Libertaçao de Moçambique (FRELIMO) proclamou soIenemente a independência nacional de Moçambique e a sua constituiçao em República Popular de Moçambique. Era o culminar de um processo secular de resistência à dominação colonial. Foi a vitória inesquecível da Luta Armada de Libertação Nacional, dirigida pela FRELIMO, que congregou todas as camadas patrióticas da sociedade moçambicana num mesmo ideal de liberdade, unidade, justiça e progresso. A Constituição então proclamada consagrou o papel determinante da FRELIMO como legítimo representante do povo moçambicano. Sob a sua direcção iniciou-se o processo excitante de exercício do poder de Estado assente na expressão da vontade popular. O Estado que criamos possibilitou ao povo moçambicano o aprofundamento da democracia e, pela primeira vez na sua história, o exercicio do poder político e a organização e direcção da vida económica e social a escala nacional. A prática do funcionamento das instituisões do Estado e a prática democrática dos cidadãos impôs novas definições e desenvolvimentos. Após quinze anos de independência o povo moçambicano, usando do seu direito inalienével de soberania, decidido a consolidar a unidade nacional e dignificar o homem moçambicano, adopta e proclama esta Constituição que é a lei basiea de toda a organização política e social na República de Moçambique. As liberdades e os direitos, as liberdades e os direitos fundamentais que a Constituição consagra são conquistas do povo moçambicano na sua luta pela construção de uma sociedade de justiça social, onde a igualdade dos cidadãos e o imperativo da lei sao os pilares da democracia”.
A Constituição de 2004, modificou o preâmbulo, que hoje determina, entre outras manifestações:
“Esta Constituição reafirma, desenvolve e aprofunda os princípios fundamentais do Estado moçambicano e consagra a soberania do Estado Democrático de Direito, assente no pluralismo de expressão e organização partidária e no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.”
Logo, há algumas questões que chamam poderosamente a atenção. Por exemplo, o artigo 4º que estabelece o pluralismo jurídico, nos termos seguintes; “O Estado reconhece os diferentes sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, desde que não sejam contrários aos princípios e valores fundamentais da Constituição.”
Um pouco mais adiante, o artigo 14 nos traz a figura da resistência antiga, manifestando que a República “estima a luta heroica e a resistência secular do povo moçambicano contra a dominação estrangeira”. E ainda, um artigo que vale a pena sugerir para Estados como o colombiano, que firmou um Acordo de Paz no 2016, e que expõe a situação de Deficiência a Guerra, consignando que o Estado assegurará proteção especial aos deficientes durante o conflito armado que terminou com a assinatura do Acordo Geral de Paz em 1992, bem como aos órfãos e demais dependentes diretos. Igualmente, que o Estado também protegerá aos deficientes no desempenho do serviço público ou humanitário.
Igualmente, o artigo 80 consagra o direito de resistência, e destarte “todos os cidadãos tem direito de não cumprir ordens ilegais ou que infrinjam seus direitos, liberdades e garantias”
E finalmente, sem pretender em momento algum ser exaustivo, o tema abordado pelo Dr. Modlani sobre a propriedade da terra. Com efeito, o artigo 109 determina que “toda a propriedade da terra pertence ao Estado. 1. Os terrenos não podem ser vendidos ou alienados de outra forma, nem podem ser hipotecados ou sujeitos a penhora. 2. Como meio universal de criação de riqueza e de bem-estar social, o uso e aproveitamento da terra é direito de todo o povo moçambicano”.
Veja-se que há muito a ser considerado. Mas o tema da resistência é especialmente interessante. A desobediência à lei injusta é algo que encontramos já exposto por Sófocles na sua clássica Antígone, e, de fato, para os governantes a obrigação dos súditos é atrelar a conduta á lei. Contudo, para os governados, em mais de uma oportunidade, o dever de obediência se torna o direito de resistir diante da opressão.
Entretanto, essa obrigação jurídica e política de resistência somente pode ser invocada por razões substantivas, em situações de anormalidade, de quebra da democracia. A hostilidade sem fundamento político consiste em exercício de força, antijurídico e ancorado no abstrato ou em teses mais assemelhadas à rebeldia infantil exacerbadas pelo descontentamento conjuntural diante de opções desesperadoramente contrárias aos desejos. Tais condutas são promovidas na banal expectativa de fazer retroceder a dignidade da legislação, da jurisprudência ou da própria soberania popular. Nestes casos os imperativos pessoais devem ceder diante da decisão majoritária e coletiva ou carregar o fardo da responsabilização por seus atos.
Bela conferência do jurista moçambicano, Carlos Mondlane, muitos ensinamentos e temas de fato importantes e atuais. Resta, por supuesto, agradecer ao professor Rothenburg, pela gentileza do convite.
Notas e Referências
[1] Souza Santos, Boaventura. Na oficina do Sociólogo Artesão. São Paulo. Cortes editora. 2018. P. 24.
Imagem Ilustrativa do Post: MOÇAMBIQUE // Foto de: Rui Ornelas // Sem alterações
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