Ministério Público é Ministério Público. Polícia é Polícia - Por Afrânio Silva Jardim

18/10/2016

1- Breve introdução.

Inicialmente, desejo esclarecer alguns conceitos básicos. Polícia Judiciária não é um órgão ou instituição estatal. Polícia Judiciária é uma atividade persecutória e de investigação de infrações penais e as respetivas autorias e participações.

Em nosso sistema político e jurídico, temos as seguintes polícias: Polícia Federal, Polícia Civil do Estados, Polícia Militar e Guarda Municipal, Polícia Rodoviária Federal, dentre outras menos relevantes.

A função principal das polícias, não exclusiva, é exercer a atividade de polícia judiciária. Entretanto, nem sempre há esta coincidência. Por exemplo, Guarda Municipal e a Polícia Rodoviária não têm atribuição para investigar as infrações penais. A Polícia Militar somente pode investigar crimes militares da competência da Justiça Militar Estadual, etc.

Desta forma, fica claro que a atividade de polícia judiciária não é peculiar da Polícia Federal ou da Polícia Civil. Tal atividade investigatória se materializa através de diversos procedimentos, sendo o inquérito policial o mais comum.

2) A função principal do Ministério Público em nosso sistema processual penal.

Como se sabe, tendo em vista diversas regras constitucionais e o disposto no respectivo código, o nosso processo penal tem viés acusatório. Vale dizer, o processo penal é instaurado apenas em face do exercício do direito de ação. O processo penal depende de ação da parte, não podendo o juiz instaurá-lo de ofício, nem provocar a sua jurisdição, ainda que de forma indireta.

Ademais, o juiz não deve participar da investigação preliminar ao processo e, mesmo no processo, sua atuação probatória há de ser supletiva à atividade das partes, que realizam o necessário contraditório processual.

Cabe salientar que o nosso sistema acusatório não é “puro”, ainda existindo alguns resquícios inquisitórios em vários dispositivos do atual código de processo penal, que não chegam a comprometer a imparcialidade do órgão julgador, se bem utilizados, se utilizados com moderação. Algumas regras do Código de Processo Penal, que ferem diretamente o sistema acusatório, não foram recepcionadas pela Constituição de 1988 e, por ela, estão revogados.

Neste contexto, avulta de relevância a atividade do Ministério Público, como instituição que veicula a pretensão punitiva do Estado perante o Poder Judiciário, nos crime de ação pública, que são a grande maioria.

Pelo nosso sistema normativo, o Ministério Público é o destinatário do inquérito policial e tem a exclusividade da ação penal pública.

Em um primeiro momento, tendo em vista o princípio da obrigatoriedade do exercício desta ação, o Ministério Público deve apresentar a sua denúncia ao Poder Judiciário, desde que disponha de prova mínima de um crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade) e de sua autoria ou participação. Ao final da instrução processual, como fiscal da correta aplicação da lei penal, o Ministério Público opina livremente pela procedência de seu pedido condenatório, feito na denúncia, ou pela improcedência do pedido de condenação e consequente absolvição do réu, nos termos do art.385 do Cod. Proc. Penal. Lógico que este “parecer” do Ministério Público não vincula o juiz, pois o pedido de condenação continua posto na denúncia e a ação penal pública é indisponível.

Ao membro do Ministério Público, enquanto pessoa, e ao Estado de Democrático de Direito não interessa a condenação de um inocente ou a condenação do culpado a uma pena maior do que a merecida, vale dizer, uma pena injusta. Nobre, pois, a função do Ministério Público, atuando perante o Poder Judiciário, inclusive nos tribunais de segundo grau ou superiores.

Por tudo isso, os casos de suspeição e impedimento dos magistrados são inteiramente aplicados ao membros do Ministério Público, pois deseja-se preservar a sua independência funcional e a sua imparcialidade. Daí a construção doutrinária e jurisprudencial do princípio constitucional do “Promotor Natural”, já que todos têm o direito de não serem acusados por um promotor de justiça ou procurador da república “encomendado”, ou seja, escolhido casuisticamente, seja para beneficiar, seja para prejudicar qualquer réu que seja.

3 - O controle externo da atividade policial e a investigação direta do Ministério Público.

A Constituição Federal de 1988 consagrou expressamente uma nova atribuição para o Ministério Público, qual seja, o controle externo da atividade de polícia judiciária. A função administrativa e preventiva das polícias deve ser fiscalizada pelos seus superiores hierárquicos.

Sempre fui um entusiástico defensor deste controle outorgado ao Ministério Público, tendo escrito sobre ele trabalho doutrinário e proferido várias palestras, buscando explicitar as formas de sua efetivação.

O constituinte “fechou” o nosso sistema processual pois, se o Ministério Público é o destinatário da investigação policial, deve ter condições concretas para nela interferir e buscar as provas de que precisa para o exercício da ação penal, que é regida pelo princípio da obrigatoriedade. Sem prova mínima não se pode acusar.

Sucede que, como sabemos, o Ministério Público foi mais longe e passou ele mesmo a investigar alguns crimes que seleciona, vale dizer, passou a desempenhar a atividade de polícia judiciária, em procedimento investigatório que instaura e dirige.

Não quero aqui discutir a legalidade ou não desta nova atribuição do Ministério Público. Sobre isto há inúmeros estudos e livros. Ademais, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que não há óbice constitucional ou legal para tal prática, embora a sua extensão ou amplitude ainda seja controvertida.

Desta forma, a minha apreciação aqui tem outra perspectiva. Com a experiência de 31 anos de Promotor e Procurador de Justiça e de 36 anos como professor de Direito Processual Penal, me sinto autorizado a uma outra análise crítica. Indago: para a instituição do Ministério Público é interessante ou salutar fazer o papel de polícia, desempenhando a atividade de polícia judiciária? Confesso que, neste aspecto, nunca fui um entusiasta. Sempre fui crítico, cético e mesmo pessimista. Cheguei a dizer que tinha feito concurso público para o cargo de Promotor de Justiça e não para o cargo de Delegado de Polícia (sem qualquer demérito à absolutamente necessária polícia em nossa sociedade).

Agora, aposentado que estou, há seis anos, examino a questão com maior distanciamento de toda esta problemática institucional, despido de qualquer influência corporativa.

Julgo que o Ministério Público está correndo sério risco de “perder sua identidade”, de provocar um retrocesso constitucional em suas relevantes atribuições.

Os fatos amplamente noticiados pela imprensa, mormente os resultantes das chamadas “forças-tarefas”, tornam necessárias novas reflexões.

A instituição, a qual destinei grande parte de minha vida, está virando “uma polícia de luxo”. Está virando uma polícia com outro nome. Hoje, tida como a “salvadora da pátria”, por grande parte da população. Amanhã, como não vai e não pode acabar com a corrupção, poderá ser tida como “vilã”, por ter tido atuações de legalidade discutível e de alguma tendência política ou ideológica. O que se diz hoje da polícia, com ou sem razão, será dito do Ministério Público, quando acabar esta euforia persecutória e condenatória que reina em nossa sociedade.

Se os membros do Ministério Público passam a desempenhar a própria atividade de polícia judiciária, não podem desempenhar a função constitucional de controlá-la. É intuitivo. Em outras palavras: o controle externo pressupõe que a atividade controlada seja desempenhada por outra instituição e não pelo próprio Ministério Público.

Se os membros do Ministério Público praticam atos investigatórios com os agentes policiais, não vão fiscalizá-los e buscar anulá-los em juízo, questionando a sua ilegalidade. É até mesmo intuitivo.

Se os membros do Ministério Público ficam sabendo de técnicas investigatórias não muito “ortodoxas” ou antiéticas, não vão censurá-las, pois se tornam partícipes de tais expedientes. Por exemplo: como proceder diante de uma prova obtida de um X-9 (informante) que recebe indevidas vantagens da polícia? etc., etc., etc.

Por outro lado, não podemos desconsiderar o risco pessoal, pois que os membros do Ministério Público não dispõem dos aparatos de segurança pessoal, diferentemente das corporações policiais. No interior do Estado, isto se torna dramático. Desnecessário falar que os promotores e procuradores não fizeram cursos especializados nesta área de segurança e não dispõem de treinamento específico a respeito.

Se os membros do Ministério Público dirigem as investigações inquisitórias, como manter o necessário equilíbrio emocional e a necessária impessoalidade para fazer a sua acusação formal em juízo? Ninguém gosta de reconhecer eventual fracasso investigatório .

Por tudo isso, mantida que seja a criticada investigação direta, entendemos que o membro do Ministério Público, que a tenha presidido ou dela participado ativamente, deve ficar impedido de atuar na fase processual, em juízo.

Ressalvo a possibilidade, até prevista no Cod. Proc. Penal, de o membro do Ministério Público praticar, pessoalmente, atos isolados de investigação ou requisitá-los à autoridade policial, no curso do inquérito, tendo em vista a necessidade que vislumbrar para o oferecimento de sua denúncia. Trata-se de atividade investigatória supletiva e não presidência da investigação.

Mesmo que os membros do Ministério Público, que presidiram a investigação, não venham a atuar nas esferas judiciais, não participem do atos processuais, fácil é compreender o certo constrangimento que terão os seus colegas em censurar em juízo algum ato da investigação preliminar. Alguém pode dizer, com o mínimo de seriedade, que nossas instituições não são corporativas???

Note-se, outrossim, que a constituição de “forças-tarefas” ou mesmo a investigação direta individual acaba prejudicando a aplicação prática do importante princípio do “Promotor Natural”, o qual visa garantir a independência funcional dos membros do Ministério Público, sendo também um direito dos indiciados de não serem acusados por promotores ou procuradores “encomendados”.

Sempre sustentamos que os membros do Ministério Público só devem desempenhar suas atribuições quando lotados em um determinado órgão de atuação, cuja atribuição esteja previamente determinada em lei. Quando necessária uma designação específica, por ausência do titular do órgão de atuação, tal designação deve obedecer critério prévio, genérico e abstrato, previsto em ato normativo que assegura o princípio da impessoalidade.

Por outro lado, várias outras indagações seriam pertinentes:

1) Por que estão investigando estes e não os outros tipos de crimes?

2) Por que não estão os membros do Ministério Público investigando os latrocínios e os homicídios qualificados e tanto outros crime hediondos??? Por 16 anos, atuei no Tribunal do Júri da Capital do ERJ e posso afirmar que apenas cerca de 2% dos homicídios resultam em efetiva condenação...

3) O Direito Penal se preocupa apenas com a gravidade do resultado de delito ou também opera com o desvalor da conduta?

4) Mesmo que seja justiçada a preocupação do Ministério Público em combater os prejuízos para os cofres públicos, pergunto: por que ele não tem “forças- tarefas” para combater a sonegação fiscal e as fraudes do INSS?

5) A escolha dos crimes que vai investigar não fragiliza a Instituição perante a opinião pública, como ocorre com todo o poder discricionário nesta área?

6) Será que esta seletividade não pode restar influenciada por aspectos ideológicos, políticos, religiosos etc, em detrimento do interesse público?

Por derradeiro, não se pode negar que a maioria da pessoas sente uma certa atração pela notoriedade e pela exposição através meios de comunicação. Negar isso é negar o óbvio. A seletividade na escolha dos crimes a serem investigados pode resultar influenciada por este fator não muito salutar.

Ademais, quando estão presentes interesses políticos, religiosos e outros aspectos que nos envolvam emocionalmente, a total imparcialidade se torna muito difícil ou mesmo impossível. Ao menos a população se sente autorizada a dela suspeitar ...

Tenho dito que poder demasiado, ao invés de fortalecer o Ministério Público, acaba por fragilizá-lo mais adiante, mormente quando se importam institutos próprios do sistema norte-americano que outorgam, cada vez mais, poderes discricionários aos órgãos responsáveis pela investigação criminal.

Fica aqui o alerta de quem “viveu” o Ministério Público por longos anos e teve e tem vários parentes como seus membros. Alguém que acredita na importância desta Instituição para a melhoria do convívio social e não quer vê-la acuada e denegrida por grande parte da nossa população.

Estamos correndo riscos concretos de termos importantes atribuições constitucionais do Ministério Público drasticamente reduzidas ou mutiladas. Também no futuro código de processo penal, cujo projeto tramita no Congresso Nacional, pode o Ministério Público ter amesquinhadas as suas funções em nosso sistema processual.

Na minha “velha” concepção, a nobreza do Ministério Público está em sua importante atuação perante os tribunais de nosso país, apresentando suas peças processuais, interpondo recursos e os sustentando oralmente.

Não me “enche os olhos” vê-lo colhendo depoimento de testemunhas, como faz a polícia, vê-lo participando de buscas domiciliares, como faz a polícia, e vê-lo dando entrevista para as páginas policiais dos jornais ou demais noticiários sensacionalistas.

Enfim, Polícia é Polícia, Ministério Público é Ministério Público. Não há hierarquia entre estas instituições, mas elas são diferentes, porque desempenham atribuições diferentes e assim deve continuar.

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Rio, Primavera de 2016. .


Imagem Ilustrativa do Post: "Copa sem povo, tô na rua de novo" em Belo Horizonte (MG) // Foto de: Mídia NINJA // Sem alterações

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