Minha casa, meu lar

06/11/2015

Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 06/11/2015

 

São casas simples com cadeiras na calçada E na fachada escrito em cima que é um lar Pela varanda, flores tristes e baldias Como a alegria que não tem onde encostar” (Chico Buarque)

 

A maioria do STF (Supremo Tribunal Federal) negou nesta quinta-feira (5/11) recurso extraordinário em caso que discute se policiais podem entrar em domicílios para fazer buscas de drogas, sem mandado judicial.

Prevaleceu a tese, com repercussão geral, que estabeleceu que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões devidamente justificadas posteriormente que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

Seguiram o relator do recurso extraordinário, ministro Gilmar Mendes, os ministros Celso de Mello, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber e Dias Toffoli. O ministro Marco Aurélio, que votou pelo provimento do recurso, ficou vencido no julgamento.

O caso que chegou até o STF em razão de Recurso Extraordinário (RE 603.616) versa sobre um homem condenado a sete anos de prisão pelo crime de tráfico de drogas. Consta que a PF (Polícia Federal) apreendeu cerca de 8 kg de cocaína dentro de um carro estacionado na garagem de sua casa. No ano de 2007, depois de uma denúncia anônima (como sói acontecer), a PF passou a investigar uma transportadora de Rondônia e decidiu abordar um dos caminhões que seguia pela BR-364.  Na carroceria do veículo foram encontrados quase 25 kg de droga. O motorista do caminhão (corréu) apontou o dono da empresa como o responsável pelo fornecimento e disse que só havia sido contratado para levar o produto até Goiânia. Em seguida, os policiais, sem mandado de busca e apreensão, foram então à casa do proprietário da transportadora, depois das 19h, onde encontraram mais cocaína e sacos de linhagem semelhantes aos flagrados no caminhão.

O ministro Marco Aurélio, único a votar contrário à tese vencedora, afirmou que os policiais deveriam, antes de fazer buscas na casa, pedir à Justiça autorização para o procedimento.

Por seu turno, o decano Celso de Mello, em seu voto, afirmou que se tratando de delito permanente, na forma de ter ou manter drogas ilícitas em depósito, a prisão em flagrante é permitida nos termos do artigo 303 do Código de Processo Penal.

Em razão do mencionado Recurso Extraordinário, uma vez mais, o STF, dentro da sua competência e como guardião da Constituição da República, foi chamado para se manifestar sobre ofensa a direitos e garantias fundamentais. Trata-se da inviolabilidade do domicílio.

No Título que trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” da Constituição da República (CR) está assentado que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (art. 5, inc. XI da CR).

Como é sabido, os direitos e garantias fundamentais devido a sua natureza e a sua importância fazem parte do que alguns constitucionalistas costumam chamar de cláusula pétrea (art. 60, $ 4º da CR).

Os direitos fundamentais, sob a ótica de uma “nova hermenêutica”, segundo o constitucionalista Paulo Bonavides[1], “são a sintaxe da liberdade nas Constituições. Com eles, o constitucionalismo do século XX logrou a sua posição mais consistente, mais nítida, mais característica. Em razão disso, faz-se mister introduzir talvez nesse espaço teórico, o conceito do juiz social, enquanto consectário derradeiro de uma teoria material da Constituição, e sobretudo da legitimidade do Estado social e seus postulados de justiça, inspirados na universalidade, eficácia e aplicação imediata dos direitos fundamentais. Coroam-se, assim, os valores da pessoa humana nos seu mais elevado grau da juridicidade e se estabelece o primado do Homem nos seio da ordem jurídica, enquanto titular e destinatário, em última instância, de todas as regras do poder”.

Na Carta Imperial de 1824 já havia previsão, na esfera dos direitos civis e políticos dos brasileiros (art. 179, VII), que “todo o Cidadão tem em sua casa um asylo inviolavel. De noite não se poderá entrar nella, senão por seu consentimento, ou para o defender de incendio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela maneira, que a Lei determinar”.

A Constituição Republicana, de 1891, em linhas gerais, repetiu os termos da Carta de 1824, pois de acordo com o art. 72, § 11, da Constituição de 1891, “a casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode aí penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir as vítimas de crimes, ou desastres, nem de dia senão nos casos e pela forma prescritos na lei”.

De igual modo a Constituição de 1934, segundo a qual “a casa é o asilo inviolável do indivíduo. Nela ninguém poderá penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir a vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei” (art. 113, n. 16).

Já a Constituição do Estado Novo, de 1937, apesar de assegurar a inviolabilidade do domicílio ao lado do sigilo da correspondência, o fez genericamente, não proibiu o ingresso durante o período noturno e deixou para o legislador regulamentar as hipóteses que autorizavam a intervenção no direito mesmo sem o consentimento do seu titular. Assim, de acordo com a referida Constituição, assegura-se “a inviolabilidade do domicílio e de correspondência, salvas as exceções expressas em lei” (art. 122, n. 6).

Com a redemocratização, a proteção do domicílio voltou a ser assegurada devidamente, de tal modo que a Constituição de 1946 dispôs que “a casa é o asilo inviolável do indivíduo. Ninguém poderá nela penetrar à noite, sem consentimento do morador, a não ser para acudir a vítimas de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e pela forma que a lei estabelecer” (art. 141, § 15).

A Constituição de 1967, ainda que elaborada na época do regime militar (art. 150, § 10) e a Emenda n. 1 de 1969 (art. 153, § 10), mantiveram em geral os termos da proteção assegurada pela Carta de 1946, pois ambos os dispositivos referidos (1967 e 1969) dispunham que “a casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer”. Embora seja evidente que durante a ditadura militar, como salientam Ingo Wolfgang Sarlet e Jayme Weingartner Neto[2], constantemente os direitos e a própria Constituição eram olvidados.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conforme já visto, proclama que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (art. 5, inc. XI da CR).

De acordo com o magistério de José Afonso da Silva[3], ao declarar que a casa é o asilo inviolável do individuo, “a Constituição está reconhecendo que o homem tem direito fundamental a um lugar em que, só ou com sua família, gozará de uma esfera jurídica privada e íntima, que terá que ser respeitada como sagrada manifestação da pessoa humana”. Mais adiante, ao tratar do direito à segurança, o ilustre constitucionalista proclama que o recesso do lar é o “ambiente que resguarda a privacidade, a intimidade, a vida privada (...) o objeto da tutela não é a propriedade, mas o respeito à personalidade, de que a esfera privada e íntima é aspecto saliente”. Aqui, a proteção constitucional é dirigida essencialmente contra as autoridades, visando impedir a invasão do lar.

A Constituição da República excepcionalmente autoriza a entrada na casa, sem o consentimento do morador ou autorização judicial, “em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro”.

É evidente que quando se trata de salvar a vida de alguém, às vezes do próprio dono (morador) da casa ou de seus familiares, é dispensável a autorização, até porque em muitos casos o morador está impossibilitado de autorizar.

Contudo, no que diz respeito à hipótese de “flagrante delito”, necessário uma análise mais cuidadosa e restrita. Apesar do art. 303 do Código de Processo Penal dispor que “nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência”, deve-se interpretar o citado artigo de modo restrito e sempre, evidente, de acordo com a CR. Existem flagrantes e flagrantes. O fato de alguém, por exemplo, manter (possuir) sem autorização arma de fogo em casa e, portanto, em estado de permanência, por si só, não justifica a invasão e violação do domicílio. De igual modo, não se justifica a invasão da casa porque nela o proprietário mantém uma ave (arara) silvestre, sem a devida autorização. Em tais casos não há, como exige a jurisprudência espanhola, o imediatismo temporal, o imediatismo pessoal e a necessidade urgente. Segundo o Tribunal Supremo Espanhol “a necessidade deixará de existir quando a natureza dos fatos permita recorrer à autoridade judicial para obter o mandado respectivo”.[4]

Em se tratando de direitos e garantias fundamentais não se pode ficar adstrito a uma interpretação lógica-formal. Conforme salienta Cláudio do Prado Amaral[5], há que se buscar o espírito da garantia inscrita no art. 5º XI da CR. “A orientação lógico-formal que autoriza a promiscuidade do ingresso em domicílio alheio pela polícia, sem mandado, em caso de crimes permanentes, acobertado pelo acima citado art. 303 do CPP, por existir estado permanente de flagrância, deve ser apreciado com reservas. Há que se distinguir teleologicamente os casos emergenciais, daqueles que não apresentam urgência. Se utilizada indistintamente aquela orientação fechada e formal adota-se interpretação perigosa, porque abre espaço para a arbitrariedade”.

É bom que se diga e que se deixe bem claro que as maiores arbitrariedade, os maiores abusos e violência são cometidos contra os mais vulneráveis. Contra os pobres, negros, favelados... As violações de domicílio com os arrombamentos ocorrem e são corriqueiras nos barracos das favelas e nos casebres da periferia e do subúrbio. As coberturas do Leblon ou do Morumbi e seus moradores estão livres da truculência policial.

Quando se trata das garantias e dos direitos fundamentais os fins jamais poderão justificar os meios. A luta pelos direitos não termina nunca. Não basta derrubar o fascismo, não basta conquistar direitos e garantias, é necessário uma vigilância e uma luta permanente para que o fascismo não recrudesça e que os direitos e garantias fundamentais sejam mantidos mesmo em “tempos sombrios”.


[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

[2] SARLET, Ingo Wolfgang.  WEINGARTNER NETO, Jayme. Inviolabilidade do domicílio e seus limites: o caso do flagrante delito. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 544-562, julho/dezembro de 2013.

[3] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional. 22ª ed. São Paulo: Malheiro, 2002. [4] PITOMBO, Cleunice A. Valentim Bastos. Da busca e apreensão no processo penal. São Paulo: RT, 2005. [5] AMARAL, Cláudio do Prado. Inviolabilidade do domicílio e flagrante de crime permanente. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 20, vol. 95, março/abril de 2012


Sem título-1 . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). .


Imagem Ilustrativa do Post: Valle dei Templi // Foto de: Stefano Montagner // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/stemonx/8689378358/in/photostream/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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