Meu mundo caiu: o direito acabou

16/09/2017

Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 16/09/2017

Meu mundo caiu! Em razão de tudo que vem ocorrendo na República, especialmente, sob o manto da midiática Operação “Lava Jato”, chego a triste conclusão - após trinta anos de exercício da advocacia criminal e de exercício de magistério superior - que, desgraçadamente, o direito acabou.

Quando vejo delações (mentiras) premiadas suprindo a prova, quando observo prisões sendo decretadas a rodo e sem qualquer fundamentação jurídica, quando percebo que o processo penal do espetáculo vem sobrepujando o processo penal democrático, quando me deparo com atropelos de direitos e garantias fundamentais e quando observo a Constituição da República sendo rasgada, só me resta admitir que o direito acabou.

No último dia 13 (quarta-feira) além do interrogatório do ex-presidente LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, realizado perante a 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba sob a condução do incompetente e suspeito juiz Federal SÉRGIO MORO, chamou a atenção o julgamento do recurso do ex-ministro JOSÉ DIRCEU, condenado a 20 (vinte) anos e 10 (dez) meses de prisão, perante o Tribunal Regional da 4ª Região (TRF4). O desembargador relator JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, em atitude midiática e desmedida propôs aumentar a pena de JOSÉ DIRCEU para 41 (quarenta e um) anos e 4 (quarto) meses de prisão, no âmbito da Operação “Lava jato”. Por seu turno, o desembargador revisor LEANDRO PAULSEN sugeriu que a pena seja aumentada para 27 (vinte e sete) anos e 4 (quatro) meses. Após as aberrações teratológicas, o julgamento foi interrompido com pedido de vista do desembargador VICTOR LAUS.

O ex-ministro Chefe da Casa Civil JOSÉ DIRCEU apelou da decisão do juiz Federal de primeiro grau que o condenou a pena de 20 (vinte) anos e 10 (dez) meses,  pelo suposto recebimento de propinas da Engevix. O dinheiro teria sido repassado pelo ex-diretor de Serviços da Petrobrás RENATO DUQUE e pelo ex-gerente da estatal PEDRO BARUSCO. Para o juiz Federal SÉRGIO MORO, o ex-ministro JOSÉ DIRCEU cometeu cinco vezes o crime de corrupção passiva.

O Ministério Público Federal com sua fúria punitivista e com nítido interesse no espetáculo midiático apelou da sentença requerendo uma pena maior para o ex-ministro.

Sem submergir no mérito em relação à responsabilidade ou não do ex-ministro JOSÉ DIRCEU, evidenciado está que a condenação de JOSÉ DIRCEU e de outros condenados se deu, exclusivamente, com base na palavra isolada de delatores em troca da concessão de privilégios por parte do Estado.

Necessário salientar que a Lei nº 12.850/13 é expressa, quando estabelece, no parágrafo 16 do seu art. 4º, que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”,

Em relação especificamente à palavra de coréu ou cúmplice como meio de prova – mutatis mutandis se aplica ao delator - valiosa é a lição de MITTERMAYER, in verbis:

O depoimento do cúmplice apresenta graves dificuldades. Têm-se visto criminosos que, desesperados por conhecerem que não podem escapar à pena, se esforçam em arrastar outros cidadãos para o abismo em que caem; outros denunciam cúmplices, aliás, inocentes, só para afastar a suspeita dos que realmente tomaram parte no delito, ou para tornar o processo mais complicado ou mais difícil, ou porque esperam obter tratamento menos rigoroso, comprometendo pessoas colocadas em altas posições. [1]

No que se refere à banalizada e aclamada delação premiada de hoje, Beccaria em 1764 já observava que:

Alguns tribunais oferecem a impunidade àquele cúmplice de delito grave que denuncie seus companheiros. Tal expediente tem seus inconvenientes e suas vantagens. Os inconvenientes são que a nação autoriza a traição, detestável mesmo entre os celerados, porque não menos fatais a uma nação os delitos de coragem que os de vileza: porque a coragem não é frequente, já que só espera uma força benéfica e diretriz que faça concorrer ao bem público, enquanto a vileza é mais comum e contagiosa, e sempre mais se concentra em si mesma. Ademais o tribunal revela a sua própria incerteza, a fraqueza da lei, que implora ajuda de quem a ofende (...)[2]

Como já venho apontando há tempos, o instituto da delação ou colaboração premiada se baseia na lógica perversa e eficientista  de que “os fins justificam os meios” em que a liberdade é objeto de negociação e moeda de troca. Na delação o Estado trabalho com a lógica do “criminoso”, em completo desprezo a ética.

Como se não bastasse uma condenação sem provas, talvez com “convicções”, pretende-se em clara violação de princípios constitucionais, notadamente o da proporcionalidade e do respeito à dignidade da pessoa humana, a aplicação de pena superior ao tempo de vida que resta a vários condenados, entre eles o ex-ministro JOSÉ DIRCEU.

RUI BARBOSA já observou que a pena de 30 (trinta) anos - pena máxima cominada para crime com violência e morte – é eufemismo da pena de morte. Não é despiciendo destacar que a Constituição da República veda a prisão perpétua e a pena de morte.

No que se refere a prisão MICHEL FOUCAULT observa que

Na prisão o governo pode dispor da liberdade da pessoa e do tempo do detento; a partir daí, concebe-se a potência da educação que, não em só um dia, mas na sucessão dos dias e mesmo dos anos pode regular paro o homem o tempo de vigília e do sono, da atividade e do repouso, o número e a duração das refeições, a qualidade e a ração dos alimentos, a natureza e o produto do trabalho, o tempo da oração, o uso da palavra e, por assim dizer, até o do pensamento, aquela educação que, nos simples e curtos trajetos do refeitório à oficina, da oficina à cela, regula os movimentos do corpo e até nos momentos de repouso determina o horário, aquela educação, em uma palavra, que se apodera do homem inteiro, de todas as faculdades físicas e morais que estão nele e do tempo em que ele mesmo está.[3]

O que se pode esperar de procuradores que se travestem em meros acusadores ou de juízes que se transformam em verdugos? O que se esperar de uma República que aplaude e se conforma quando um juiz de piso “grampeia” a Presidenta da República e divulga a interceptação?  Como confiar em um juiz-inquisidor? Comor crer no sistema de justiça criminal quando o ato de “acusar” e “julgar” se confundem numa relação promiscua? O que falar da relação espúria entre procuradores da República e acusados de crime? O que dizer do assalto a Constituição da República quando em nítida violação a Lei Maior passa-se admitir a odiosa “execução provisória da pena” em atropelo ao sagrado princípio da presunção de inocência? O que pensar da criminalização da advocacia?

Estas inquietações revelam que vivemos em “Tempos Sombrios” (HANNAH ARENDT), em tempos “Pós-Democrático”, expressão utilizada por RUBENS CASARA, em tempos de exceção e em tempos de autoritarismo.

Ao referir-se ao sistema de justiça criminal e sua tradição autoritária, em livro recém-lançado RUBENS CASARA observa que:

Em sistemas de justiça de viés autoritário, como aqueles que exigem no marco do Estado Pós-Democrático em nome do “combate ao crime” ou de outro slogan simpático à população, o órgão encarregado da acusação e o órgão encarregado do julgamento passam a atuar em conjunto, de maneira promiscua, ignorando ilegalidades, afastando direitos e garantias fundamentais, bem como desconsiderando as formas processuais, que deveriam ser empregadas como limites ao arbítrio, sempre na busca por confirmar a hipótese acusatória. Com isso, ilegalidades são praticadas, ou toleradas, em nome do combate à ilegalidade, da mesma maneira que o julgamento do caso penal se torna um simulacro de julgamento em meio a um simulacro de democracia.[4]

Desgraçadamente, sou forçado a dizer que o Estado Democrático de Direito se encontra em ruínas, que os Poderes da República vêm sendo carcomidos pelo autoritarismo e pelo fascismo. Por fim, como disse no início e como diz a bela música, “Se meu mundo caiu, Eu que aprenda a levantar”.


Notas e Referências:

[1] Tratado das provas em direito criminal.

[2] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Giudicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão.  Trad. Lígia M. Pondé Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987.

[4] CASARA, Rubens R. R. Estado democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 112.


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. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Doutor em Ciências Penais pela UFMG. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Dark side of the moon // Foto de: Clare Black // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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