Mercado de trabalho e transexualidade: algumas ponderações sobre a proteção à identidade de gênero no ambiente laboral

19/07/2016

Por Guilherme Wünsch – 19/07/2016

O artigo 1º da Convenção nº 111 da OIT define discriminação como: “a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam e outros organismos adequados”.[1] Todavia, de acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% das travestis e transexuais no Brasil estão no mercado da prostituição. [2]

Brito Filho compreende que é na relação de emprego que é encontrada a condição ideal para quem vai discriminar, pois nela existe, geralmente, a sujeição de uma pessoa pela outra, devido à necessidade do primeiro de trabalhar para garantir seu sustento e de sua família. Portanto, nessa relação de poder que é a relação de emprego, com base na liberdade do tomador dos serviços de contratar e manter o contrato, não é difícil demonstrar atitudes discriminatórias.[3] É imprescindível para a pessoa travesti e transexual viver como realmente identifica-se, como realmente quer ser reconhecida no meio social e no seu local de trabalho pelo seu nome social ou até mesmo no direito de utilizar o banheiro correspondente à sua identidade de gênero.

O mundo sindical (sindicatos, centrais sindicais, organizações ligadas aos sindicatos e suas lideranças) está cada vez mais cauteloso ao assunto dos direitos humanos LGBT, seja por saber de sua importância ou por demandas dos/as trabalhadores/as transexuais e travestis, como se pode verificar no exemplo: “Minuta de acordo coletivo de trabalho de adesão, com ressalvas, à minuta de reivindicações da categoria bancária para convenção coletiva de trabalho – CCT Fenaban/Contraf – 2013/2014 e de cláusulas específicas celebrado entre Banco do Brasil S/A, Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro, Federações e Sindicatos de Trabalhadores em Estabelecimentos Bancários Signatários – cláusula 43: nome social – O Banco disponibilizará em seus regulamentos internos o direito a utilizar nome social a todas as pessoas que utilizam nome distinto do registro civil, dentro da política de respeito à diversidade, para acabar com a discriminação a colegas LGBT.”[4]

Mesmo que o nome seja um elemento que diferencia o trabalhador diante de seus colegas, seu maior atributo não está no grupo, mas sim no seu interior. É através do nome que este indivíduo se identifica, com as características que tal nome representa para si.De acordo com Tereza Rodrigues Vieira: “Esse indivíduo quer viver em sociedade, quer continuar seus estudos, e a educação não existe sem convívio social. Contudo, indaga-se: de que adianta um diploma se não se pode trabalhar? O que pensará o funcionário dos recursos humanos ao receber para entrevista uma mulher que enviou curriculum com nome masculino? Se a vaga for para pessoa do sexo masculino ele a admitirá? Certamente não, pois de masculino ela possui apenas os cromossomos, e estes, ninguém vê a olho nu.”[5]

O empregado transexual e travesti quer ingressar na vida profissional e manter-se como qualquer pessoa, sendo respeitado no ambiente laboral, não sofrendo discriminação cada vez que é chamado no departamento pessoal, cada vez que precisa ir ao banheiro da empresa, e antes mesmo, quando na entrevista para contratação, que seu nome consta diferente do seu corpo ou de suas atitudes e muitas vezes perdendo uma vaga por ser de “sexo diferente” do que precisa a empresa, por seu nome não estar adequado. Muitas oportunidades de emprego lhe são recusadas por causa da sua imagem e aparência, como se viver de forma diversa dos modelos sexuais impostos, lhe impossibilitasse profissional ou intelectualmente.

Os órgãos públicos reconhecendo formalmente o nome social, além de proteger a dignidade das pessoas transexuais e travestis, também causa a inserção social delas, em razão da interrupção dos constrangimentos ocasionado com o uso do seu nome civil. Promove-se, assim, a cidadania concreta para os transexuais e travestis, tendo em vista que muitos deixavam de exercer seus direitos civis e sociais, como o direito à educação, ao trabalho, à saúde, por recearem ser discriminados socialmente.[6] Todos os trabalhadores têm acesso a uma série de direitos sociais. Negar às pessoas transexuais e travestis que buscam uma oportunidade profissional, o direito fundamental ao uso do nome social, é como negar a dignidade, o valor social do trabalho ou o trabalho digno.

Conforme o princípio 12, “O Direito ao Trabalho” dos Princípios de Yogyakarta, em que o Brasil fez parte juntamente com outros países, “todos têm direito a um trabalho honesto, em condições justas de trabalho e à tutela contra o desemprego, sem discriminação por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero.” Além do caput do princípio acima, as letras “a” e “b” referem-se que os Estados devem tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras que sejam necessárias para remover e proibir a discriminação por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero no emprego público e privado, inclusive no treinamento, capitação profissional, contratação, promoção, demissão, condições de trabalho e remuneração. Devendo também, extinguir a discriminação por estes motivos, a fim de assegurar iguais oportunidades de emprego e superação em todas as áreas do serviço público, incluindo todos os níveis do serviço governamental e o emprego em funções públicas, inclusive servindo nas forças policiais e armadas, e promover programas de formação e de sensibilização adequadas para combater atitudes discriminatórias.[7]

Diante da dificuldade que o indivíduo transexual e travesti tem de conseguir emprego no mercado formal, muitos acabam se prostituindo ou ficam limitados à profissão de cabeleireiro ou operador de telemarketing, pois no caso deste último, não são vistos, ficam atrás de um telefone. Por este motivo, um grupo de transexuais criou o site www.transempregos.com.br[8], onde empresas de todo o Brasil se cadastram para anunciar vagas a serem preenchidas por profissionais transexuais e travestis.[9]

A discriminação relacionada à identidade de gênero também pode ser marcada como causa provável do baixo índice de contratações de travestis. Wiliam Peres expõe que: “devido às características estéticas das travestis e o preconceito da sociedade, torna-se difícil às mesmas conseguirem empregos para cuidar de suas subsistências, restando na maioria das vezes, a prostituição como forma de sobrevivência”.[10] Stuart Hall entende que a identidade é como uma construção em permanente processo: “a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros”.[11] Estas modificações auxiliam na composição da pessoa, formando a identidade que não é única, inata ou completa. Ao contrário, está sempre em construção, passando pelas influências das próprias variações e adaptações de comportamento e das outras pessoas. Assim sendo, é desta mesma forma que se institui a identidade do trabalhador, em um ambiente de trabalho que está em constante formação e transformação.


Notas e Referências:

[1] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Escritório no Brasil. Convenção nº 111: discriminação no emprego e profissão. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.oit.org.br/node/472>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

[2] COSTA, Andriolli. Fazendo gênero. Nossos corpos, nossas regras. Entrevista com Lucas Goulart [20 abr. 2015]. IHU On-Line Revista Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, ano XV, n. 463, p. 21, 20 abr. 2015. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=463>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

[3] BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Discriminação no trabalho. São Paulo: LTr, 2002. p. 43.

[4] CONTRAF. Minuta de acordo coletivo de trabalho de adesão, com ressalvas, à minuta de reivindicações da categoria bancária para convenção coletiva de trabalho – CCT FENABAN/CONTRAF – 2013/2014 e de cláusulas específicas celebrado entre banco do Brasil S/A, Confederação nacional dos trabalhadores do ramo financeiro, federações e sindicatos de trabalhadores em estabelecimentos bancários signatários. Disponível em: <http://www.bancariosabc.org.br/wp-content/uploads/2013/07/554.pdf>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

[5] VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e Sexualidade. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004. p. 117.

[6] HOGEMANN, Edna Raquel. Direitos humanos e diversidade social: o reconhecimento da identidade de gênero através do nome social. Disponível em: <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/508/392>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

[7] PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Principios sobre la aplicación de la legislación internacional de derechos humanos en relación com la orientación sexual y la identidad de género. Principio 12 - EL DERECHO AL TRABAJO - Toda persona tiene derecho al trabajo digno y productivo, a condiciones equitativas y satisfactorias de trabajo y a la protección contra el desempleo, sin discriminación por motivos de orientación sexual o identidad de género. Los Estados: Adoptarán todas las medidas legislativas, administrativas y de otra índole que sean necesarias a fin de eliminar y prohibir la discriminación por motivos de orientación sexual e identidad de género en el empleo público y privado, incluso en lo concernente a capacitación profesional, contratación, promoción, despido, condiciones de trabajo y remuneración; Eliminarán toda discriminación por motivos de orientación sexual o identidad de género a fin de garantizar iguales oportunidades de empleo y superación en todas las áreas del servicio público, incluidos todos los niveles del servicio gubernamental y el empleo em funciones públicas, incluyendo el servicio en la policía y las fuerzas armadas, y proveerán programas apropiados de capacitación y sensibilización a fin de contrarrestar las actitudes discriminatorias.Yogyakarta, julho de 2007. Disponível em: <http://www.yogyakartaprinciples.org/>. Acesso em: 16 de julho de 2016..

[8] TRANS emprego. Onde Gente Talentosa se encontra. Disponível em: <http://www.transempregos.com.br/>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

[9] SINDICATO DOS COMERCIÁRIOS DE SÃO PAULO. Site ajuda busca por empregos de transexuais. São Paulo, 05 maio 2015. Disponível em: http://www.comerciarios.org.br/index.php/post/3972-Site-ajuda-busca-por-emprego-de-transexuais. Acesso em: 16 de julho de 2016.

[10] AGNOLETI, Michelle; MELLO NETO, José Baptista de. Família, Escola, Mercado de Trabalho – há lugar para as travestis? Disponível em: http://www.catedraunescoeja.org/gt03/com/com052.pdf. Acesso em: 16 de julho de 2016.

[11] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Thomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP& A, 2006. p. 39.

AGNOLETI, Michelle; MELLO NETO, José Baptista de. Família, Escola, Mercado de Trabalho – há lugar para as travestis? Disponível em: http://www.catedraunescoeja.org/gt03/com/com052.pdf. Acesso em: 16 de julho de 2016.

BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Discriminação no trabalho. São Paulo: LTr, 2002.

CONTRAF. Minuta de acordo coletivo de trabalho de adesão, com ressalvas, à minuta de reivindicações da categoria bancária para convenção coletiva de trabalho – CCT FENABAN/CONTRAF – 2013/2014 e de cláusulas específicas celebrado entre banco do Brasil S/A, Confederação nacional dos trabalhadores do ramo financeiro, federações e sindicatos de trabalhadores em estabelecimentos bancários signatários. Disponível em: <http://www.bancariosabc.org.br/wp-content/uploads/2013/07/554.pdf>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

COSTA, Andriolli. Fazendo gênero. Nossos corpos, nossas regras. Entrevista com Lucas Goulart [20 abr. 2015]. IHU On-Line Revista Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, ano XV, n. 463, p. 21, 20 abr. 2015. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=463>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Thomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP& A, 2006.

HOGEMANN, Edna Raquel. Direitos humanos e diversidade social: o reconhecimento da identidade de gênero através do nome social. Disponível em: <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/508/392>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Escritório no Brasil. Convenção nº 111: discriminação no emprego e profissão. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.oit.org.br/node/472>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Principios sobre la aplicación de la legislación internacional de derechos humanos en relación com la orientación sexual y la identidad de género. Disponível em: <http://www.yogyakartaprinciples.org/>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

SINDICATO DOS COMERCIÁRIOS DE SÃO PAULO. Site ajuda busca por empregos de transexuais. São Paulo, 05 maio 2015. Disponível em: http://www.comerciarios.org.br/index.php/post/3972-Site-ajuda-busca-por-emprego-de-transexuais. Acesso em: 16 de julho de 2016.

TRANS emprego. Onde Gente Talentosa se encontra. Disponível em: <http://www.transempregos.com.br/>. Acesso em: 16 de julho de 2016.

VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e Sexualidade. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004.


Guilherme WunschGuilherme Wünsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) foi assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, é advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS e professor convidado dos cursos de especialização da UNISINOS, FADERGS, FACOS, FACENSA, IDC e VERBO JURÍDICO.


Imagem Ilustrativa do Post: Festival Sem Preconceito | Belo Horizonte-MG | 26/09/2014 // Foto de: Circuito Fora do Eixo // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/foradoeixo/15366429155

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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