Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
O tique-taque dos relógios parece, por vezes, não acompanhar a dinamicidade da vida nas grandes cidades, cada vez mais repletas de habitantes misturados ao soar dos carros, ao crescimento latente do concreto, vivendo entremeio à constante preocupação. Enquanto isso, as pessoas raramente escutam o cantar dos pássaros, sentem o soprar suave do vento ou se deixam levar pelo barulho tranquilizante da água em movimento. Essa parece ser a realidade da maioria da população do Brasil: em torno de 85% dos brasileiros vive em áreas urbanas[1].
Esse contexto influencia as vivências das crianças, privadas, em diversas situações, do contato com a natureza, do brincar na rua, da possibilidade de estabelecerem laços com a comunidade e terem uma infância mais plena. Vidas bastante diferentes das vividas pela maioria de seus pais e avós, os quais puderam aproveitar sua infância em plenitude com seus amigos na rua e com maior contato com a natureza.
Em um passado não muito distante, as crianças brincavam de pular corda, de casinha, de subir em árvores, de fazer piqueniques ou qualquer coisa que a imaginação pudesse alcançar, ao contrário do que ocorre nos dias hodiernos, nos quais o brincar, na maioria das situações, é facilitado por produtos patrocinados pelos consumidores e dentre os quais muitas vezes destacam-se aparelhos caros, videogames e Internet[2]. Isto é reflexo também da frustração de iniciativas de lazer coletivo e da erosão do signo brincar ante a inserção dos pequenos no consumismo de brinquedos, do que é ofertado pela televisão. São seres, normalmente, solitários. A cidade hodierna transformou-se em um espaço no qual impera a lógica comercial. Nela, a criança nada mais que é mais uma forma de rentabilidade[3].
Ademais, o êxodo rural motivou a criação de vastas periferias em torno dos núcleos urbanos tradicionais do Brasil, especialmente nas metrópoles. Muito embora tenha havido avanços, surgiram desigualdades e tensões que refletem na estrutura das cidades, na organização do cotidiano, nas grades das residências, na falta de convívio em espaços públicos, na violência latente. Nesse contexto, as crianças perdem a cidadania, perdem o direito à cidade[4].
As praças e os parques das cidades não são de fácil acesso para todos, aliás, nem sempre estão em condições adequadas de uso ante, por exemplo, a disputa por território, a falta de planejamento para expansão dos municípios ou a especulação do mercado imobiliário que refletem na diminuição de espaços públicos[5], mesmo quando essenciais à felicidade infantil. Mas eles não são vendidos e, consequentemente, não interessam ao mercado, na verdade os agentes comerciais pretendem a restrição desses espaços, assim podem vender similares, como o clube, a quadra particular, a academia de ginástica, salões de festas[6]. Assim, chegamos na eminência que “o ‘consumo’ invade toda a vida”, como lecionou Baudrillard [7].
Com o surgimento da pandemia causada pelo Coronavírus e a maioria das crianças isoladas em seus lares, ficou ainda mais latente a importância de haver espaços públicos para os pequenos terem contato com a natureza, brincarem ao ar livre e assim terem a possibilidade de se desenvolverem em plenitude.
Sobre esse tema, o recente filme “O Começo da Vida 2: Lá Fora”[8], produzido pela Maria Farinha Filmes em parceria com o Instituto Alana e Fundação Grupo Boticário, traz reflexões necessárias sobre a relação íntima das crianças com a natureza, enfatizando a importância do cuidado com a infância e o meio ambiente. A produção expõe diálogos e vivências de especialistas, famílias e crianças de diversas culturas (Brasil, México, Chile, Peru e Estados Unidos). No filme, o filósofo e escritor Tim Gill aponta a “redução dos horizontes da infância”, eis que se comparar os últimos 40 anos com dias atuais, em diversas cidades pelo mundo, as crianças têm menos liberdade em seu dia a dia: uma criança na década de 70 podia se locomover, passear pela vizinhança, visitar os amigos, ir à escola ou às lojas.
A situação é fruto do “[nosso] processo de urbanização, a lógica dele é de fato cimentar, verticalizar, diminuir as áreas verdes, reduzir as áreas de lazer. As crianças são as que mais sofrem”, aponta Laís Fleury, coordenadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.
Os relatos alertam que muitas crianças não tem onde brincar, não tem contato com a natureza e que a tecnologia acaba sendo o único recurso para entretê-las, o que causa danos como obesidade, déficit de atenção, depressão, problemas respiratórios, diabete e miopia. Ao mesmo tempo gera consequências nocivas para o meio ambiente, porque se as crianças não criam conexão com o meio em que habitam, acabam por não criar afeto e assim não cuidam da natureza.
O estar do lado de fora é importante para o desenvolvimento infantil em razão de melhor a qualidade de vida, a coordenação motora, o equilíbrio, a saúde mental, o sono, dentre outros imensuráveis benefícios. Assim, o filme estimula a reflexão sobre as cidades, a natureza e a infância proporcionada às crianças, bem como acerca da possibilidade de melhorar a coexistência entre estes.
Necessário pontuar que o filme não condena o uso da tecnologia, mas sugere que aumente o contato das crianças com o mundo lá fora. Embora as gravações tenham ocorrido antes do surgimento das medidas restritivas em razão do Covid-19, a produção é um convite, como ela mesma se intitula, para pensar o mundo que as pessoas querem após a pandemia. Como ensina Joaquín Leguía, fundador da Ania Asociación para la Niñez y su Ambiente: “ninguém, com toda a sua inteligência, tecnologia ou dinheiro, vai substituir o que uma criança sente quando sobe numa árvore”.
Por conseguinte, cabe a todos treinarem os olhares e a sensibilidade para as reais necessidades das crianças, refletindo sobre o que a Sociedade de Consumo está sugerindo e o que elas realmente precisam, para assim pensar em mais e melhores espaços públicos que possam propiciar a coexistência entre as crianças e o meio ambiente. Com efeito, mais contato com a natureza e menos consumismo, quiçá seja o presságio de uma infância mais saudável e feliz.
Notas e Referências
[1] IBGE. População rural e urbana. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18313-populacao-rural-e-urbana.html. Acesso em: 11 jan. 2021.
[2] BARBER, Benjamin. Consumido: Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2009.
[3] DOWBOR, Ladislau. Reflexões atuais sobre cidades, família e escola: impacto na vida das crianças e do planeta. In: FONTENELLE, Laís (Org.). Criança e consumo: 10 anos de transformação. São Paulo: Instituto Alana, 2016.
[4] DOWBOR, Ladislau. Reflexões atuais sobre cidades, família e escola: impacto na vida das crianças e do planeta. In: FONTENELLE, Laís (Org.). Criança e consumo: 10 anos de transformação. São Paulo: Instituto Alana, 2016.
[5] MOVIMENTO BOA PRAÇA. Por mais verde - e mais saúde. 2020. Disponível em: https://conexaoplaneta.com.br/blog/por-mais-verde-e-mais-saude/. Acesso em: 11 jan. 2021.
[6] DOWBOR, Ladislau. Reflexões atuais sobre cidades, família e escola: impacto na vida das crianças e do planeta. In: FONTENELLE, Laís (Org.). Criança e consumo: 10 anos de transformação. São Paulo: Instituto Alana, 2016.
[7] BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Trad. Artur Morão. Lisboa: Elfos, 1995. p. 18.
[8] O COMEÇO da Vida 2: Lá fora. Direção de Renata Terra. [S.I]: Marcos Nisti, Estela Renner, Luana Lobo, 2020.
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