Medida provisória e estado de coisas permanente

01/06/2023

O longa-metragem brasileiro “Medida Provisória” foi lançado para o cinema em 2022 e foi o grande vencedor da 26º edição do Inffinito Film Festival, de Miami. Conta com atores do porte de Taís Araújo, Adriana Esteves e Seu Jorge. A direção é um dos pontos fortes da obra e ficou nas mãos de Lázaro Ramos. Trata-se de uma adaptação de "Namíbia, Não!", peça de Aldri Anunciação em que o ator Lázaro Ramos dirigiu para o teatro em 2011.

O filme trata sobre um futuro distópico. O governo brasileiro criou um programa chamado “Resgate-se” para que os negros pudessem resgatar a si mesmos. De que forma? O governo dá oportunidades para os negros retornarem ao continente africano, embora ninguém seja obrigado a ir. O plano “Resgate-se” é apenas para aqueles que desejam aderir a ele de forma voluntária.

Os negros são chamados melaninados. Um epíteto que qualifica os que possuem um grau maior de melanina gravada na pele. Uma forma mais suave para denominar esses estratos populacionais. De praxe, a linguagem sendo instrumentalizada para etiquetar coisas, lugares, pessoas.

A medida provisória 1888 - uma referência muito clara ao ano em que a escravidão foi abolida no Brasil -, ato aprovado pelo Congresso Nacional, determina que os melaninados devem, obrigatoriamente, ser devolvidos para os países da África. Até mesmo um ministério foi criado para promover esse remanejamento. O ministério da devolução. Um cenário orwelliano.

A aprovação da Medida Provisória afeta diretamente a vida do casal formado pela médica Capitú (Taís Araújo) e pelo advogado Antonio (Alfred Enoch), bem como a de seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), que mora com eles no mesmo apartamento.

Forças de segurança são acionadas para, em certo momento da trama, deter pessoas negras. Um ato estatal similar ao de capatazes do período escravocrata que capturavam indivíduos escravizados. Mutatis mutandis, temos a reprodução de uma época em outra. Uma epocalidade replicada.

Diversos melaninados são exterminados pelas forças securitárias do Estado. A mídia noticia que a comunidade internacional está dividida, sendo que alguns órgãos internacionais repudiam essas ações repressivas do governo brasileiro. A população negra revive a caça que sofreu durante o período mais tenebroso da história humana: a escravidão.

Um dos atos de resistência da população negra é criar espaços em que podem servir de refúgio para os melaninados. Uma espécie de (neo)quilombo. A denominação para essas estruturas físicas é afrobunker. Um retoque linguístico para suavizar esses novos espaços.

O ministro da devolução, numa conversa ao telefone, declara que sai mais barato recolher um cadáver a deportar alguém. Um exemplo de como a lógica do capital supera, e muito, o direito à vida. A necropolítica deixa um rastro de destruição por onde passa, sobretudo, um rastro de morte em locais habitados por pessoas negras, pobres e estigmatizadas.

Viver, para a população negra, sempre foi um ato de rebeldia. Sobreviver é a ordem dada pelo Estado aos grupos melanizados. A negritude deve resistir. Como de há muito tem resistido. Tem batalhado com bravura contra os necropoderes constituídos. Infelizmente é assim que o povo negro é historicamente marginalizado, vulnerabilizado, descartado etc.

A medida criada pelo governo brasileiro, no filme, é provisória. Mas o status de inferiorização do negro é duradoura. Um estado de coisas permanente. O filme, querendo ou não, transmite essa mensagem. Oxalá isso seja um soco no rim. Precisamos acordar. A situação de discriminação perpétua em nosso país deve ficar gravada apenas nos nossos livros de história. Ela deve ser varrida do nosso cotidiano. É isso o que espero. De forma permanente.

 

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