Mauerschützen e a Fórmula de Radbruch como evidência da transcendência do Direito pelo Direito

03/10/2015

Por Laura Mallmann Marcht - 03/10/2015

Muito se discute sobre a relação entre direito e moral, se há presença de moral no direito ou o inverso. O caso relatado a seguir é perfeito para a explanação dessa relação tendo por base a dissertação de Mestrado da Profª. Roberta Magalhães Gubert, orientada pelo Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, pesquisa fundamentada a partir da teoria de Robert Alexy. Mauerschützen, ou o caso dos atiradores do muro, julgado em 03 de novembro de 1992, pelo Tribunal Supremo Federal alemão.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha se divide em duas: de um lado estão os alemães orientais condenados a repararem os danos causados pela guerra, e de outro, os alemães ocidentais, território ocupado pelos Estados Unidos, Reino Unido e França. Dessa forma, o território alemão se polariza em socialistas e capitalistas, respectivamente.

É criada a República Democrática Alemã, devastada pela pobreza e com sequelas profundas da guerra. Um movimento, de cunho tradicionalista – bem como aquele evidenciado na Escola Histórica Alemã – enseja uma das maiores tragédias da história europeia. Em 13 de agosto de 1961, é construído o muro de Berlim. Muro criado com pretexto de proteger a Alemanha oriental da ocidental. Os cidadãos germânicos torturados pela pobreza e fome, tentavam incessantemente fugir daquela funesta realidade e pela restrição de saída imposta, buscaram diversos meios para atravessar o muro.

Cabe ressaltar, entretanto, que aqui não se discute a ideologia adotada pelos polos. Discute-se assim, as medidas (e apenas isso) adotadas para a execução dos governos. Nesse sentido, a República Federal da Alemanha ao perceber o que o Muro de Berlim significava, buscou ajudar (mesmo que silenciosamente) aqueles que pretendiam atravessar o muro. O pretexto ensejava a ideia de que o socialismo presente naquele território seria perfeito, pois qualquer um poderia estar no poder, mesmo os mais pobres. Essa ideologia causou forte tradicionalismo na Berlim oriental, incentivando os alemães a protegerem a RDA dos fugitivos – encarados como “criminosos”.

Dessa forma foi dada a ordem – e daí decorre a justificação – para conter as fugas por meio da força, porquanto o muro não estava mais “protegendo” aqueles cidadãos de forma efetiva. Estima-se que mais de 2 milhões de cidadãos fugiram da RDA em busca de uma vida mais digna e nesse processo, centenas morreram. Com a queda do muro em 1989, a dissolução da RDA e a reunificação da Alemanha, os tribunais começam a julgar diversos dos casos de fuga, desses, um em especial de grande notoriedade jurídica e acadêmica. Foi denominado pelo Tribunal de “caso dos atiradores do muro”.

Em 1984, um homem está fugindo da Berlim oriental para a ocidental, sendo alvejado por dois soldados. Michael-Horst Schmidt atravessa o muro de Berlim com uma escada, mas é avistado e ferido pelos militares que se encontravam a 130 metros de distância, vigiando o local.

Devido ao grande investimento da RDA na construção do muro, “para alcançar a Berlim ocidental ainda seria necessário cruzar uma faixa de terra de 29 metros de largura, um alambrado de 2,5 metros de altura, que emitia sinais visuais e sonoros, além de mais um muro.” (GUBERT, 2006). Michael ignorou diversas vezes os chamados dos militares e a única forma de impedi-lo de fugir seria atirando, em tese. Cumprindo ordens, o cabo e o soldado dispararam sem parar na direção do sujeito.

Michael foi ferido nas costas e joelhos, os soldados alegam que miraram apenas nas pernas para impedir a fuga. Ao chegar a Berlim ocidental, a responsabilidade passou a ser desta. Através de perícias, foi constatado que a vítima, se tivesse sido socorrida prontamente, não teria morrido. A questão torna-se pertinente ao notar que os militares repeliram a fuga do sujeito, mas em momento algum socorreram este para que após, o prendessem pelo crime de fuga (crime previsto no direito vigente à época). Michael foi deixado para sangrar até a morte.

O soldado disparou 25 vezes e o cabo, 27 vezes, ambos, initerruptamente. O art. 27 da Lei de Fronteiras da RDA autorizava repelir fugas com disparos de arma de fogo. Consoante o princípio da proporcionalidade, onde o soldado e o cabo agiram desproporcionalmente na medida do que o art. 27 da Lei de Fronteiras preconizava apenas a paralização do sujeito mediante força física, o Tribunal de Berlim condenou os militares, fundamentando concorrentemente com base no princípio do Estado de Direito. O cabo, por ser menor, recebeu uma pena de um ano e seis meses, o soldado, foi condenado a um ano e nove meses de prisão.

Revoltados com a decisão, os soldados interpuseram Recurso de Revisão ao Tribunal Supremo Federal, que negou provimento ao pedido do recurso. Formaram-se quatro grandes discussões nesse contexto: a discussão do direito positivo vigente na época; a análise da aplicação da Fórmula de Gustav Radbruch; a proibição da retroatividade das leis penais; e por fim, se os soldados são considerados culpados (GUBERT, 2006).

Dentre todas essas questões pertinentes e importantíssimas ao caso, nos deteremos a apenas uma: a análise da aplicação da Fórmula de Gustav Radbruch. A fórmula em questão foi criada para aplicação aos crimes cometidos no regime nazista, mas Alexy evidencia que pode ser aplicado em outros casos por analogia. Dessa forma, o Tribunal Supremo Federal necessitou analisar se o caso em particular se tratava de uma agressão injusta.

É importante ressaltar que a Fórmula de Radbruch não irá relativizar todo caso concreto como o panpriciologismo tem agido no caso brasileiro, citado e desenvolvido por Lenio Streck. No caso do regime nazista, foi evidenciado que os crimes eram considerados agressões injustas uma vez que todo sujeito, por meio da razoabilidade – e aqui aplica-se a moral – pode constatar a injustiça.

Injustiça extrema não é direito. Dessa forma, a lei que permitia repelir fugas com disparos de arma de fogo, não é direito, uma vez que a Berlim oriental proibiu saídas de cidadãos alemães, quase que completamente (com raras exceções). Logicamente, o que ocorreu em Berlim oriental não pode se comparar com os ocorridos no regime nazista, mas as ações dos soldados eram de injustiça extrema, de grave violação aos direitos humanos visto que havia outros meios de contenção desses sujeitos, como a simples prisão.

É verdade que o direito que conhecemos hoje surgiu da evolução do direito natural e das concepções morais. Sem essas primeiras evidencias o direito contemporâneo não teria respaldo, é necessário identificar a cisão entre a moral e o direito, uma vez que direito não é moral. Apesar de parecer óbvia essa afirmativa, muitos julgam as leis com a ótica do juízo moral em busca de uma bússola que indique o certo e o errado.

O direito pode (e deve, quando possível) ser valorado por questões supraestatais, para além do direito, como por exemplo, a ótica dos direitos fundamentais, hoje tão essenciais à aplicabilidade e efetividade da Constituição. O caso dos atiradores do muro é mais um exemplo da constante evolução do direito, sem o necessário discurso absolutista e jusnaturalista que ainda nos deparamos.


Notas e Referências:

GUBERT, Roberta Magalhães. Mauerschützen (o caso dos atiradores do muro) e a pretensão de correção do direito na teoria de Robert Alexy: aportes hermenêuticos ao debate acerca da relação entre direito e moral. Dissertação (Mestrado em Direito Público) - Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2006. 171 p.


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Laura Mallmann Marcht

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Laura Mallmann Marcht é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntária no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto.

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Imagem Ilustrativa do Post: Berlin Wall_1100405 // Foto de: Wynand van Poortvliet // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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