Marquinhas de biquini

13/04/2022

Só há prazeres pelos cinco sentidos. Seria, pois o mundo exterior só nos entra no cérebro pelos sentidos. Seria, mas não é, porque, além de sermos animais com sentidos, temos a especificidade da cultura. A cultura (valores, normas, religiões, deuses, hierarquias sociais etc.), subjetivada, nos “compõe” o cérebro; ela nos move, nós nos movemos por ela.

A antropologia nos ensina que parte do cérebro evoluiu quando o animal humano já produzia cultura. Então, eu me relaciono com o mundo não só com o que os sentidos registram, mas com a "leitura" do que é registrado informada pela cultura. Os meus sentidos percebem o mundo; os meus conteúdos culturais "leem" ideologicamente o que é percebido.

E por que uma mesma coisa é "lida" de forma diferente por diferentes pessoas? Pela razão apontada: ideologia: os diferentes "óculos" que são usados para "ler" essa mesma coisa. Estes "óculos" são o conjunto de ideias que eu tenho e com as quais eu "leio" o mundo. Ideias diferentes "leem" diferentemente as coisas e os fatos que acontecem.

É exatamente a isso que se nomeia ideologia. Comparando com o computador, a máquina (hardware) é o cérebro "vazio"; os programas (software) que recebem textos são a cultura; a ideologia são as ideias inscritas na máquina; é com elas que o computador “pensa”. Os computadores, então, começam iguais, mas logo se tornam diferentes, digamos, individuais.

Os computadores humanos têm um “problema”: a máquina humana responde emocionalmente a tudo. A "aparelhagem" emocional do cérebro evolui há milênios e influencia cada atitude nossa. A "aparelhagem" racional é novíssima na evolução, e não temos familiaridade suficiente com ela. Usamo-la muito mal. De fato, a própria racionalidade é emocionada.

Sobra, daí, que de racionalidade mesmo temos muito pouco. Então, não há argumento (razão) que vença certas coisas. Às vezes, nem nós nos entendemos. Amplas campanhas publicitárias avisam que fumo faz mal à saúde; não faltam recomendações sobre o mau uso da bebida; bem se sabe que açúcar é maléfico. A informação pouco pode.

Se a razão fosse prevalecente na conduta humana, será que se usaria salto alto, comer-se-ia em excesso, nos excederíamos na exposição ao sol? Será que cultivaríamos ódio pela vida afora? Faríamos a guerra? Sabemos racionalmente o que nos faz mal, mas seguimos com maus hábitos. Emoções são complexas; para muito\as, são complicadas.

Em resumo, os cérebros normais são iguais, mas as culturas não o são, nem as ideias (ideologia). E as expressões emocionais também são diferentes. As emoções se desenvolvem com a vida de cada pessoa. Ademais, somos seres desejantes. Os desejos nos movem de uma maneira muito particular, em geral de modo desconhecido de nós mesmo\as.

Também não são as mesmas coisas que causam medo ou felicidade em cada qual. Como ensina Grúchenka (Os irmãos Karamázov, Dostoiévski), “Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa”. Há coisas e coisas. E cada coisa, para cada um, tem seu próprio significado. O significado das coisas é o tempero da cultura, da ideologia, da história individual.

Nascemos com tudo isso dado. Misturando as coisas todas e trazendo-as coisas para a luz do sol. Vem o verão: racionalmente, sol em excesso não faz bem, mas há o culto ao corpo, um desejo de estar bem delineado\a. Nos nossos cultivados modos de praia, as meninas acham-se mais bonitas (entre si mesmas) se estiverem com marquinhas de biquíni.

Aqui, questão importante: há uma História Social do Bronzeado – Como surgiu a moda da marquinha de biquíni, ( https://bityli.com/OTBId, A Modista do Desterro): houve um tempo (até o início do século XX) em que a pele alva era o valor prevalente, associado ao fato de que só a\os dispensada\os do trabalho braçal ao sol – brancos e ricos – poderiam ostentá-la.

Depois, com o operariado trabalhando em fábricas fechadas, a descoberta da importância do sol para a saúde e o fato de Coco Chanel haver-se, ainda que acidentalmente, se bronzeado, instaurando moda, o valor predominante veio a ser a pele tostada, sinal de disponibilidade de tempo suficiente para deixar-se amorenar, seja em piscina, seja na beira do mar.

A coisa se democratizou bastante; o sol, afinal, não é de tão difícil acesso. Sendo de quem o queira, o é de qualquer classe econômica e de toda a diversidade corporal. Está na piscina, na praia, na laje ou por processo artificial. No Rio de Janeiro, nas comunidades, desenvolveu-se a tecnologia da fita isolante, que garante marquinhas com precisão.

“Vai malandra \ Na favela, onde tá tudo no grau \ O Brasil inteiro tá sentindo” que se instaurou a marquinha de biquini em irrestrita diversidade racial; dá prestígio e vale a ostentação. Sumidade popular, a cantora Anitta emprestou seu prestígio à moda em seu clip oficial (Anitta, Mc Zaac, Maejor feat. Tropkillaz & DJ Yuri Martins – Vai Malandra).

Moral da história: corpos amanhados e expostos, corpos que podem e gostam de se mostrar. Numa cultura que valorize umas e outras coisas, uma menina bronzeada e com marquinhas de biquíni, enquanto valer a moda, namora com mais prazeres (o de ver a si e o de se ver sendo vista) do que uma desbotada sem registros de frequentar o astro rei.

Valores vigentes, sentidos atentos, afetos emocionados: corpos desejantes vão namorar, aí, de todos os prazeres, mesmo o orgasmo, que seria natureza pura, é temperado: um bom jantar, média luz, bebida adequada, lençóis talvez de cetim, tez morena e marquinhas de biquíni. Tudo, para o gozo conforme a moda, será gozado com mais de gozar.

 

Imagem Ilustrativa do Post: ocean wave // Foto de: Mourad Saadi // Sem alterações

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